segunda-feira, 18 de junho de 2018


A questão do corpo e sua relação com a responsabilidade em “Os Intocáveis”



O filme “Os Intocáveis, de Eric Oledano e Oliver Nakache, desenvolve uma temática de farto conteúdo filosófico, que nos leva a indagar: até que ponto o corpo constitui limitação para a alma? O que de fato importa como sentido de vida, na medida que a riqueza, o poder não imuniza o ser humano dos eventos trágicos que modificam radicalmente o seu modus vivendi? Que valores a vida nos convida a repensar a partir das experiências desafiadoras? Para responder a essas questões, busquei no texto “A identidade do sujeito moral”, um breve recorte sobre a filosofia de Espinosa para fundamentar as reflexões acerca do filme.                                
Fhillipe, o protagonista magnata, paraplégico por acidente em esportes radicais tem sua vida alterada quando perde a autonomia dos movimentos físicos. Até então, usufruía de todos os bens que a fortuna pode proporcionar, sobretudo prestígio e poder. Portanto, o sistema de valores que antecedem ao acidente faz dele um homem preocupado com a imagem, tanto física quanto cultural. Porte físico elegante, bem vestido, amante das artes, da leitura, de carros caros e velozes, passeios principescos, enfim, platonicamente, escravizado pelo sensível, pelo culto às formas de prazer que a riqueza permite.
Neste caso, é possível refletir sobre a relação corpo-espírito, proposta por Espinosa (1632-1677), uma vez que, antes da ação externa trágica, modificadora da vida de Fhillipe, não há uma relação corpo e espírito hierarquizada, ou seja, ambos se identificam e se expressam, indistintamente. Tanto o corpo quanto o Espírito são ativos, senhores da própria ação. Até que uma ocorrência externa e obriga a alma a voltar-se para si mesma. Ao perder os movimentos físicos, a personagem passa a se dedicar as atividades do pensamento, usufruindo o que os seus recursos sensoriais permitem: música, artes plásticas, silêncios, e escreve cartas de amor. No entanto, diz ainda Espinosa  "...a descoberta de sua impotência causa o sentimento de diminuição do ser e, portanto, provoca tristeza." (ARANHA; MARTINS, 2003, p. 7)
Fhillipe é um espírito triste. Talvez, por essa razão, tenha identificado no problemático cuidador Driss, a alegria e juventude que lhe falta. Esse encontro entre tristeza-solidão e a alegria-juventude ameniza o drama de ambos. Os dois aprendem as dimensões do corpo e do espírito, numa convivência de mútua afetividade e generosidade. Driss alimenta-lhe o corpo e Phillipe sensibiliza-lhe a alma com as delicadezas da arte.
     A convivência entre eles inicia-se como um choque de culturas e de valores, já que Driss é um jovem negro, pobre, desempregado, de família numerosa e problemática. Consciente de suas limitações, posiciona-se o quanto seu sistema de valores lhe permite executar, como por exemplo, recusa-se a vestir as meias terapêuticas porque isso é coisa de mulher. No entanto, a necessidade de fazê-lo, educa-lhe a rebeldia e aprende a se submeter ao que sua função lhe exige. Outro aspecto digno de observação é que Driss não vê Phillipe como alguém limitado, não o trata como um desventurado ou manifesta qualquer pena dele. Em vários momentos vamos encontrá-lo proporcionando ao magnata todas as formas de vida que conhece do seu próprio universo: cigarros, bebidas, sua música agitada, dança, velocidade ao dirigir, passeios radicais, mulheres.
        A presença de Driss devolve ao aristocrata outras possibilidades de existência, incluindo o amor e o casamento. Já Phillipe oferece a Driss condições para devolver dignidade à sua própria família. Ambos se responsabilizaram moralmente um pelo outro e por si mesmos. O filme mostra que as limitações do corpo não impossibilitam a realização moral. A percepção de que o corpo não impossibilita as paixões, o pensamento, a vida e o afeto incondicional, para além das diferenças, induz-nos a refletir que a causa de tudo é o ser interior.  De acordo com o filósofo da vida: “Somos autônomos quando o que acontece em nós é explicado pela nossa própria natureza. ”  (ARANHA; MARTINS, 2003 p.7)

Célia Firmino
Reflexões Filosóficas -  14.08.2013


Referência:

ARANHA, Maria Lúcia de Arruda; MARTINS,  Maria Helena Pires. Filosofando. São Paulo: Moderna, 3. ed. rev. 2003.



O “Conhece-te a ti mesmo” em defesa de uma nova Ética


Sócrates (470-399 a.C) é considerado o pai da Ética por defender, em sua filosofia, a necessidade do pensamento, da análise e investigação de nossas condutas e comportamentos, atribuindo-lhes juízo de valor em função do que é certo ou errado. Para esse pensador, só é possível a autonomia, na medida em que o homem aprende a examinar a si mesmo, como um processo contínuo de autoconhecimento. (CATANEO e SCHULZE, 2013, p. 36-37).
Na filosofia de Sócrates, o conceito de virtude resulta dessa capacidade de investigação que o homem desenvolve, de modo autônomo. O homem, verdadeiramente virtuoso, é sábio naturalmente porque percebe, ao examinar-se, que a sabedoria consiste no conhecimento de si mesmo. Exemplo clássico dessa postura ética pode ser observado no texto platônico Defesa de Sócrates (PLATÃO, 1987), quando o acusado relembra os fatos que poderiam ter gerado a animosidade de seus perseguidores. Acredita que tudo se origina quando Querofonte, em Delfos, consulta o oráculo para saber se havia alguém mais sábio que ele, Sócrates, ao que Pítia (a sacerdotisa) responde negativamente, atribuindo ao filósofo a verdadeira sabedoria. Ao refletir sobre a resposta, faz-se uma série de perguntas e recusa-se a aceitar o atributo: “Que quererá dizer deus? Que sentido oculto pôs na resposta? Eu cá não tenho consciência de ser nem muito sábio nem pouco; que quererá ele, então, significar declarando-me o mais sábio? ” (PLATÃO, 1987, p.8). Por meio das interrogações, dirigidas a si mesmo, verifica-se o exercício de autorreflexão que caracteriza a Ética socrática, já que o homem deve olhar para dentro de si em busca de respostas, com base em seu critério pessoal do que julga certo ou errado.
Sócrates duvidava das certezas. A dúvida é a base do processo de investigação, o caminho para a realização de sua areté (virtude).  Narra ainda Platão que o mestre, para averiguar o oráculo, vai ter com várias personalidades consideradas “sábias”, entre atenienses, políticos, artistas, submetendo-as ao exame e constata que ele, por que sabia que nada sabia, de fato, “compreendeu que sua sabedoria é verdadeiramente desprovida do mínimo valor”. Concluirá ele: “Dessa investigação é que procedem, Atenienses, de um lado tantas inimizades, tão acirradas e maléficas, que deram nascimento a tantas calúnias, e, de outro, essa reputação de sábio. ” (PLATÃO, 1987, p.10)
Aqui, temos a preocupação de Sócrates na busca pela verdade, mostrando que a origem do mal está no próprio homem que desconhece a si mesmo. No caso, a crença no falso saber gerou a rivalidade em relação a ele que tinha a consciência de nada saber. Novamente, em exame, a moral ateniense.
Outra referência importante para se analisar a ética socrática é a Denúncia de Meleto, constante da referida obra platônica: “Sócrates é réu de corromper a mocidade e de não crer nos deuses em que o povo crê e sim em outras divindades. ”(PLATÃO, 1987, p.11) Vale ressaltar que os gregos “comportavam-se moralmente em função de orientações metafóricas, linguagem que expressa uma explicação por meio de um exemplo, de uma analogia, apresentadas pelos mitos.” (CATÂNEO e SCHULZE, p. 38). Portanto, a acusação era grave do ponto de vista da orientação moral ateniense que acreditava na interferência dos deuses míticos gerindo os destinos. Pesava-lhe a contravenção de desrespeito às divindades gregas, de adotar outras e de levar os jovens a aderir às suas atitudes. Em síntese, evidencia-se a crítica dos conservadores, de modelo moral teocêntrico, em relação à Sócrates, que propunha, conforme Catâneo e Schulze (p.38), “pensar a moral de uma perspectiva antropocêntrica, isto é, considerando o próprio homem como agente fundamental que pensa como deve agir moralmente. ”
 Em relação a Meleto, Sócrates, com a serenidade que lhe caracteriza o comportamento ético, procura examinar detalhadamente a denúncia, sob a ótica do acusador. E, utilizando-se das perguntas, leva-o a manifestar suas próprias contradições:

“Diz que sou réu de corromper a mocidade. Mas eu, Atenienses, afirmo que Meleto é réu de brincar com assuntos sérios; por leviandade, ele traz a gente à presença dos juízes, fingindo-se profundamente interessado por questões que jamais fez o mínimo caso. Vou também procurar demonstrar-vos que assim é.” (PLATÃO,1987, p.11)

O diálogo que se desenvolve entre ambos é um exercício de reflexão sobre a moral defendida pelo acusador que finaliza por encurralar Meleto em suas próprias incoerências entre discurso e ações. O filósofo prova que as acusações imputadas a ele, na realidade, são atitudes características do próprio acusador. Dessa forma, o feitiço vira contra o feiticeiro e a moral ateniense é colocada em questão por fragilidade de virtudes legítimas, do ponto de vista socrático.
Meleto, por exemplo, atribuía a si mesmo virtudes que não se sustentaram ao exame lógico realizado por Sócrates. Ao refletir sobre os conceitos de bem e mal relacionados às ações humanas, silencia sem respostas, diante das perguntas sucessivas feitas pelo filósofo que, termina por provar a inversão de valores subjacentes à denúncia. Confrontando o significado de “corromper e juventude” com as ações empreendidas por Sócrates, compreende-se, à luz de sua maiêutica, que os jovens se beneficiaram de seus diálogos educativos (o suposto mal é, na verdade, um  bem), ao contrário da inércia de Meleto que nada fez para protegê-la, embora estivesse ali na condição de alguém que se preocupa e se interessa por ela (o bem, quando aparente e falacioso, resulta no mal).
Depreende-se, portanto, dos exemplos citados, que Sócrates vivenciou as regras de conduta nas quais acreditava. Pelo exemplo, foi agente de mudança da moral tradicional, fundamentada no teocentrismo mítico, para a moral antropocêntrica, fundamentada no homem como agente de transformações. Delfos simboliza, assim, o marco de uma nova forma de se pensar a moral e não faltam razões para justificar o imperecível aforismo “Conhece-te a ti mesmo” que consagrou a filosofia e a Ética de Sócrates. Por meio das perguntas habilmente elaboradas, provoca a parturição de ideias, coloca o homem no centro de sua própria busca, responsabiliza-o pelo desenvolvimento de sua própria consciência e conquista da autonomia. A partir desse filósofo, o homem compreenderá que a felicidade não pode ser dissociada da liberdade e que esta só é possível quando se assume a responsabilidade por conhecer a si mesmo.

Célia Firmino
Reflexões Filosóficas - 06.08.2013

Fontes:
CATÂNEO, Marciel Evangelista; SCHULZE, Carmelita. Ética Clássica e Medieval. 2ª.ed. Palhoça: UnisulVirtual, 2013.
PLATÃO. Defesa de Sócrates. In: SÓCRATES. Seleção de textos de José Américo Pessanha; Traduções de Jaime Bruna, Líbero Rangel de Andrade, Gilda Maria Reale Strazynski. 4.ed. São Paulo:  Nova Cultural, 1987. (Coleção Os Pensadores)



Paralelo entre o pensamento de Heráclito sobre o “devir” e a música “Metamorfose Ambulante”, de Raul Seixas.

  
“Prefiro ser essa metamorfose ambulante. Eu prefiro ser essa metamorfose ambulante. Do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo. ” Raul Seixas

A filosofia de Heráclito estabelece que vida é constante movimento e, portanto, transformação ou devir.  Para ele, a metáfora do rio representa a fluidez do curso existencial caracterizado pela impermanência. Com base nessa observação, esse filósofo considera que o verdadeiro conhecimento deve ser buscado além das aparências, das experiências, pois que elas são tão mutantes, quanto o rio. A razão, portanto, deve ser a fonte do conhecimento.
            As metamorfoses da vida, a impermanência, o eterno “devir” como lei da natureza aplica-se também ao ser. Para ele, não é possível “ser”, na medida em que o homem está em constante mutação. Lógico pensar que ser é, em última análise, não ser.
 Essa impossibilidade de se consolidar uma identidade permanente para o ser é o tema de Metamorfose ambulante, de Raul Seixas. Da mesma forma que para Heráclito nada existe concretamente, o autor da letra destaca essa impossibilidade de ser estável em relação às concepções existenciais, de se ter uma identidade definida: “Eu prefiro ser essa metamorfose ambulante. Do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo. Do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo. Sobre o que é o amor. Sobre o que eu nem sei quem sou.”
            Além disso, o “ser e não ser” de Heráclito evidencia a concepção de unidade composta pelos contrários, pela duplicidade, ou seja, tudo o que existe traz em si o verso e o reverso como verdadeira identidade de ambos: um depende do outro para identificarem-se.
            Observa-se que a metamorfose só é possível pela existência dos opostos: Se hoje eu sou estrela. Amanhã já se apagou. Se hoje eu te odeio. Amanhã lhe tenho amor. Lhe tenho amor.
O eu-lírico se manifesta sempre dual. Ele prefere viver “nessa metamorfose ambulante”, no devir que traz sempre o desafio do novo a estabilidade que o tempo envelhece.

Célia Firmino
Reflexões Filosóficas – 24.02.2013


Parmênides e Heráclito sobre o conhecimento, considerando o ceticismo e o dogmatismo como caminhos a serem evitados e a atitude de busca pelo conhecimento como desejável.



                   Para a filosofia assim como para a ciência, a busca o conhecimento é a busca da verdade. Isto posto e considerando a proposta de análise comparada entre os pré-socráticos Heráclito de Éfeso (540-470 a.C.) e Parmênides de Eléia (530 a 460 a.C), é importante estabelecer como ponto de partida os aspectos comuns entre ambos: a busca da realidade para além das aparências e a razão como fonte do conhecimento. (SELL, p. 62)
                   A partir das semelhanças, observa-se que essa busca do conhecimento, para além das aparências e pelo uso da razão são orientadas por diferenças conceituais que distinguem o pensamento de um e outro.
            Heráclito defende uma visão mobilista do universo, ou seja, tudo está em constante movimento, mudança a ponto de somente ser possível definir o ser a partir do não ser. Para ele, a realidade é, necessariamente a unidade de opostos, condição essencial para as constantes, ininterruptas transformações como lei universal. Essa é a realidade inexorável: tudo flui, tudo muda.
            Parmênides se posiciona pela imobilidade justificando que movimento, mudança não existem. Para ele, “ser” é o que existe, logo, a busca do conhecimento deve limitar-se apenas a existência do ser.
            Assim, enquanto o “ser” de Heráclito é contraditório, a realidade puro movimento e o tempo cíclico, para Parmênides o ser é uno, a realidade imóvel e o tempo eterno. (SELL, 2011, p. 62).
                 Analisando os dois filósofos, na perspectiva do ceticismo e dogmatismo, percebe-se que Parmênides, a semelhança de suas próprias ideias de imobilidade, apresenta uma postura mais dogmática do que Heráclito que defende o constante movimento do universo. A crença na  estaticidade de tudo o que existe tende a refletir no pensamento. Se a realidade não se altera, o pensamento não muda. Essa posição reflete o ceticismo e o dogmatismo tão prejudiciais não apenas à filosofia, mas em relação a qualquer forma de conhecimento.
                 Do ponto de vista da Filosofia como movimento, as ideias de Heráclito são as que mais se aproximam dessa concepção. Conforme ele mesmo propõe, tudo flui, tudo muda; as águas de um rio jamais é a mesma. Portanto, tanto pensamento, a razão deve acompanhar o fluxo do tempo, sejam quais forem as circunstâncias.
                 A atitude desejável para a busca do conhecimento está poetizada em Guimarães Rosa: “Quem elegeu a busca, não pode recusar a travessia.”

                                                                   Célia Firmino
                                                      Reflexões Filosóficas – 24.02.2013
Referência:
SELL, Sérgio. História da Filosofia I. Palhoça: UnisulVirtual, 2011.



Fundamentos de  Educação e Linguagem em DE MAGISTRO, de Santo Agostinho


          São inúmeras e inexauríveis as abordagens sobre o De Magistro, de Santo Agostinho, dada a profundidade do seu conteúdo. Distante da pretensão do ineditismo, este trabalho procurará tecer relações entre conhecimento, educação e linguagem e seus reflexos nas ciências modernas. Observar-se-á, por meio de leitura inferencial do Capítulo I - “ A finalidade da Linguagem”, como Agostinho, de forma assistemática, reflete acerca da finalidade da linguagem verbal e não verbal, desenvolvendo o conceito de signos em sua dimensão significante e significado a serviço de finalidades cognitivas da relação de ensino e aprendizagem, ou seja, aquisição do conhecimento.
         O diálogo intitulado De Magistro (sobre o mestre) é considerado uma das fontes mais profícuas de reflexão sobre Educação e Linguagem. Como neoplatônico, Santo Agostinho desenvolve os temas por meio de um processo de interlocução com Deodato, seu filho. Da perspectiva metodológica é possível identificar a dialética platônica, ou seja, o procedimento da interrogação para levar o interlocutor a pensar sobre o significado das palavras e encontrar suas próprias respostas. Ele, na condição de mestre, provoca o discípulo (1979, p. 349): “- Que te parece que pretendemos fazer quando falamos?” Ao que Deodato responde com dupla alternativa: ensinar ou aprender.
          Em De Magistro, Agostinho destaca o verbo ensinar como pretensão daquele que se serve da palavra, analisando-lhe o propósito comunicacional e cognitivo. O subtítulo do diálogo, sobre o mestre, corrobora o tema, pois a função do mestre é ensinar por meio da palavra ou sinais. Assim, o filósofo inquire Deodato e problematiza a função da linguagem verbal (a palavra): “— Vejo uma dessas duas coisas e concordo; com efeito, é evidente que quando falamos queremos ensinar; porém, como aprender?”
         Para Agostinho, as palavras verbalizadas ou pensadas não são neutras. Elas são tratadas como signos, ou seja, sinais exteriores (significantes) que carregam em si conteúdos (significados). Enquanto significantes ou sinais exteriores, as palavras são insuficientes para a significação das coisas. É necessário que elas comuniquem mais do que representam a fim de despertar, pela recordação, o ser interior ensinado pelo Cristo. Ao cumprir sua finalidade, as palavras e a memória das palavras se tornam instrumentos de ensino.
         Como neoplatônico, Agostinho difere de seu antecessor no que se refere à recordação ou o papel da memória.  Para o bispo de Hipona, a memória é uma faculdade da alma responsável por uma das dimensões da divina trindade. Em Santo Agostinho (1980, p.25) verifica-se que: “A memória, enquanto persistência de imagens produzidas pela percepção sensível, corresponderia à essência (Deus Pai), aquilo que é e nunca deixa de ser;(...). ” Nela está insculpido, indelevelmente, o endereço de Deus, de forma que as palavras acordam no interior da criatura humana significados divinos latentes. Dessa maneira, por iluminação, o homem realiza o verdadeiro conhecimento das coisas.
         Não por acaso, a questão permanece inconclusa ao final do diálogo. Eis a grandeza do filósofo. Temas universais não se restringem a uma época; devem seguir sua trajetória iluminando os séculos futuros. A produção intelectual do mestre de Hipona sobre a linguagem forneceu à Semiótica, à Linguística e à Comunicação fundamentos para a estruturação desses importantes campos de estudo. A educação deve-lhe importantes considerações acerca da aquisição do conhecimento por meio da mediação discursiva e sua função na relação ensino e aprendizagem. Por fim, a humanidade deve-lhe parte de sua própria história.

                                                                       Célia Firmino
                                                                  Reflexões Filosóficas
                                                                         16.03.2013

Referências:

SANTO AGOSTINHO (1980). Tópicos. São Paulo: Abril Cultural [Coleção Os Pensadores – volume Santo Agostinho].
________De Magistro. São Paulo: Abril Cultural [Os Pensadores – volume Santo Agostinho].


A Jornada do Herói Entre a Paideia Homérica e a Sofística


            Estudar a cultura grega significa  empreender a jornada do prisioneiro liberto da caverna[1] escura da  própria ignorância e limitações pela força da luz própria que emana dessa civilização. O esplendor dessa luz, em princípio, obscurece a visão habituada às sombras, mas,  pela insistência em buscá-la, desvela-nos um universo de descobertas.
            Assim, transitar da doxa[2] para episteme[3], como propõe o mito platônico, por meio de um processo educativo implica um atencioso trabalho de leitura e reflexão sobre as múltiplas possibilidades de abordagem que, qual um caleidoscópio, essa cultural se apresenta.
            Por essa razão, ao empreender essa primeira jornada como um exercício do olhar, buscamos por uma tímida fresta a perspectiva ainda nebulosa:  tentar compreender as relações entre a democracia grega e o trabalho dos sofistas, quais princípios defendiam, finalizando com uma breve comparação entre as paideias homérica e sofística, a fim de observar se, a exemplo da primeira, a paidéia sofísitca experimenta, de alguma forma, a força de agon.
            Grécia: berço da civilização ocidental. Uma saga que somam séculos de história. Do pensamento mítico ao surgimento e desenvolvimento da filosofia, bem como os sistemas organizadores do caos social estão imbricados, como um amálgama, história e sociedade.
            Eis um dos desafios com o qual o estudioso iniciante se depara: organizar de forma coerente o universo sociopolítico grego. Qualquer recorte filosófico que se faça para aprofundamento, não é possível compreendê-lo sem relacioná-lo a um contexto complexo construído em vertiginosa dinamicidade.
      Assim, não se pode compreender Democracia desvinculada do contexto político
que, por sua vez, responde pelo surgimento da filosofia. O cenário dessas reflexões iniciais remete-nos à história da formação da civilização helênica.
             Sabe-se que a Grécia não era, em sua origem, um país politicamente organizado. Os pequenos países, ou cidades-Estado, eram ligados por aspectos culturais comuns valorizados e cultivados: o idioma e os poemas e os mitos de Homero e Hesíodo que se constituíram em símbolos dessa rica civilização, recitados e perpetuados por aedos e rapsodos.
      Observa-se que organização sociocultural das cidades-Estado favoreceu o florescimento de uma sociedade livre do jugo absolutista que marcou algumas grandes civilizações como o Egito, a Pérsia etc.  Portanto, a liberdade de pensamento, o amor ao saber e ao conhecimento foram as condições primordiais para o nascimento da filosofia e da democracia.
      Para os gregos, a Democracia se assenta na ideia da supremacia da lei, ao contrário da monarquia que a tudo controla  e determina sem a possibilidade de questionamentos, própria dos grandes impérios. A liberdade de pensamento que gerou o nascimento da filosofia só foi possível no regime democrático que floresceu nas cidades-Estado, formando a antiga civilização grega.
      Outros fatores e condições sociopolíticas foram contributos para a mudança da  mentalidade mítica para o pensamento racional (CHAUÍ, apud SELL, p. 27), tais como: as viagens marítimas, a invenção do calendário, o surgimento da vida urbana, a invenção da escrita alfabética. Além disso e, sobretudo, a invenção da política favoreceu a transição do pensamento mítico para o pensamento filosófico.  O contexto de mudanças já não mais possibilitava ao homem compreender a vida pela mentalidade mítica veiculada pelos poemas homéricos. Hesíodo (séc. VIII a.C.) já anunciava algumas inovações importantes que aproximam o homem de sua realidade material:  “A busca da excelência (aretè) através do esforço pessoal é a única forma de que o ser humano agora dispõe para fugir aos infortúnios da vida. ” (SELL, 2013, p.26)
Cabe ao homem organizar seu “cosmos” social. Pelo esforço, pelo trabalho, pelo exercício do pensamento racional, ele deve gerir as transformações que se operam. Dentre elas, o surgimento da  política  trazendo como princípios a valorização do homem, do pensamento, da discussão, da  persuasão e da decisão racional. Tais elementos se constituem a base para a palavra filosófica.  (SELL, 2013, p. 28)
      Dessa constatação pragmática, as condições para a organização democrática das póleis estavam sedimentadas. Sem a intervenção dos deuses, o homem se percebe como agente transformador de sua própria condição. Descobre suas potencialidades produtivas, modificando as relações com o meio em que vive.  Diante do novo contexto, os séculos (IX ao VI a. C) de especulações filosóficas em torno da origem da natureza sob cujas leis o homem está submetido cedem lugar a uma nova ordem de raciocínio, na qual  ele passa a ser o centro e a medida de todas as coisas, como propõem os sofistas. Em função desse novo pensamento e das novas necessidades, o ambiente físico e social são reorganizados, conforme esclarece Chauí sobre a reforma de Clístenes, no século VI a.C. (apud SELL, 2013, p. 80):

[...]. Estabelece um espaço circular onde se reúnem a Boulé (que cuida das questões políticas  cotidianas) e a Ekklesia, a Assembleia Geral de todos os cidadãos atenienses, na qual se discutem e decidem-se publicamente os grandes assuntos da cidade, sobretudo as decisões de guerra e paz. Está inventada a democracia (demos, os cidadãos; kratos, o poder: o poder do demos ou dos cidadãos.)

      Como decorrência dessa organização política, a isegoria e a isonomia[4] se constituíram nos princípios básicos para o exercício da democracia grega que garantia ao cidadão ateniense igualdades, tanto de direitos quanto de uso da palavra ou discurso.
      Para uma sociedade de tradição mítica em que a retórica, o discurso era, até então, habilidade dos filósofos, as necessidades atuais exigiam que os demos aprendessem a manejar a palavra como condição sine qua non para o exercício do poder.
      Atenas, agora atraente sob todos os aspectos: cultural, artístico, econômico, esplendendo novidades,  lançava as bases para o Humanismo e Relativismo dos sofistas[5]  que encontravam na polis um amplo espaço para ensinar a sua arte:

   “Os Sofistas se aproveitaram enormemente do ambiente político ateniense do século V a.C, haja vista que, na Atenas de então, depois das reformas políticas instituídas por Péricles, as instituições políticas tinham uma característica eminentemente democrática, de forma que, teoricamente, todos os cidadãos tinham a possibilidade de falar nas assembleias públicas, fato esse bastante aproveitado pelo senso de oportunismo dos Sofistas”  (Luiz Roberto Alves dos Santos – UFS – Cadernos de Filosofia.)

      Mestres da retórica, esses filósofos trouxeram importantes contribuições para o desenvolvimento do pensamento racional. Ao proporem que o homem é o centro de tudo, base do princípio Humanista,  aprofundaram o hiato entre a realidade social e os deuses míticos de Homero. As leis que regem a sociedade dependem, essencialmente, da capacidade humana de geri-las e  harmonizá-las.
      O pensamento de Protágoras de Abdera (apud SELL, 1990, p.85) “O homem é a medida de todas as coisas, das que são, enquanto são e das que não são, enquanto não são” reflete a valorização do homem enquanto ser capaz de atribuir sentido para a realidade na qual está inserido. Na medida em que se percebe capaz de interpretar a realidade, as noções de doxa (opinião) e de logos[6] (o que pode ser provado ou defendido) são ressignificadas a serviço do desenvolvimento da linguagem que, no contexto sofista, é o  instrumento capaz de fazer o homem se relacionar com a realidade e com outros seres humanos.
      Para os sofistas, a democracia deve ser exercida por meio da erística, ou seja, do debate, da disputa verbal. Somente a  linguagem é capaz de instrumentalizar os adversários para vencê-la. Por essa razão, a democracia ateniense oferece a esses mestres da retórica  os fundamentos para que seus princípios sejam tão relevantes para a formação do homem grego.
      Ao valorizar a linguagem e o discurso como forma de vencer o adversário na disputa e, por esse meio, ganhar relevância e poder, os sofistas criticam as noções de força e de virtude (arethè)[7] simbolizadas  por Homero nos heróis míticos e atribuída aos nobres, os aristoi, como honra e dever recebidos, via de regra, como descendência dos antepassados. Nesse sentido, Jaeger (apud SILVA, 2010) afirma que:

O conceito do ideal aristocrático de formação dos gregos até o século V a.C. se fundamenta no conceito de arete, que é retratada nos poemas homéricos como um atributo da nobreza, como um conjunto de qualidades espirituais, morais e físicas desejáveis em um homem. A arete é o heroísmo, no seu sentido de ação moral e intimamente ligada à força, contendo em si a bravura, a coragem e a honra. Na arete se baseava a educação da nobreza, cuja "força educadora" reside no "fato de despertar o sentimento do dever em face do ideal, que deste modo o indivíduo tem sempre diante dos olhos."

      Em Hesíodo, estas noções são modificadas. De acordo com Sell (2011, p.26), as noções de virtude assumem uma concepção mais humanista, ao considerar que a única forma que o ser humano dispõe para fugir aos infortúnios da vida é buscar a excelência (aretè) pelo esforço pessoal. Ao colocar o homem como protagonista de si mesmo na busca da virtude, ao nivelar a espécie humana e distanciar os deuses, Hesíodo sedimenta as bases ideológicas para a democracia.  
      Consequência desse processo, o novo contexto sociopolítico de Atenas faz com que os sofistas desloquem o foco homérico do agon que privilegiava a luta, a disputa,  o embate para o desenvolvimento da habilidade discursiva. Para Santos:

A eloquência desenvolvida pelos Sofistas tinha sua justificativa mais importante na possibilidade do ensinamento da areté enquanto virtude política, já que era nesse tipo de virtude que se enquadrava o intuito da sofística (JAEGER, 1995), porquanto os sofistas afirmavam poder ensinar a excelência no discurso, com o cuidado de que essa excelência estivesse sempre voltada para a capacidade de governar os homens (PLATÃO, Menon, 73d). Nesse sentido,  a virtude política objetivada pelos sofistas tinha o seu fim no bem da sociedade, independente dos meios utilizados para alcançar esse bem.” (SANTOS)

      A educação é o meio pelo qual os valores são ensinados e preservados. Ressalte-se que os sofistas eram mestres, profissionais remunerados, portanto, o público-alvo de seu trabalho não eram os demos comuns, mas os que pudessem pagar, ou seja, a aristocracia privilegiada. Este é um detalhe  que não se pode desconsiderar. A paidéia[8] sofística está focada nas necessidades de uma Atenas política, democrática, mas ambiciosa pelo poder. Buscava a formação de homens capazes de governar, de liderar, de habilmente manejar as palavras, de disputar e vencer, como analisa Jaeger:

A difusão da democracia grega criava a demanda que os sofistas pretendiam suprir em sua capacidade de educadores profissionais. O caminho para o sucesso político estava aberto a qualquer um, contanto que tivesse a capacidade e o treino para sobrepujar seus competidores. A necessidade primordial era dominar a arte de falar persuasivamente. Em função disso, argumentou-se que todo o ensino dos sofistas se resume na arte retórica. (Adaptado de GUTHRIE, W. K. C. Os sofistas. Tradução João Rezende Costa. São Paulo: Paulus, 1995, p. 24).

A reflexão que se coloca é, em que medida, a paidéia sofística nos remete a paidéia homérica, considerando os aspectos de seleção “natural” dos heróis sociais. A jornada do herói de Homero deve ser marcada pelo esforço em desenvolver suas potencialidades como a força, a coragem, uso das armas, o poder de persuasão. Além disso, devem sempre lutar para estarem acima dos demais, para que sejam lembrados pela posteridade. Os deuses assumem a tutela de seus protegidos, conferem-lhes os poderes necessários para o enfrentamento dos desafios que, invariavelmente, vencem.
Excetuando a intervenção divina, podemos identificar nos sofistas os “deuses” produtores de heróis. Os aristoi, uma vez submetidos a paidéia sofística, dela devem sair instrumentalizados, com o poder da persuasão, para empreender uma jornada de poucos, da qual apenas os mais fortes são capazes de vencer. Ironicamente, talvez, esse é o fundamento da democracia.  Talvez esse seja o teor agonístico a que Jaeger se refere.


                                                           Célia Firmino
                                                      Ensaios filosóficos (26.02.2013)



Referências Bibliográficas:
JAPIASSÚ, Hilton. Dicionário Básico de Filosofia. 3ª ed.  Rio de Janeiro: Zahar, 2001.
JAEGER, Werner. Paidéia: a formação do homem grego. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes. 1984.
SELL, Sérgio. História da Filosofia I: livro didático.  Palhoça: UnisulVirtual, 2011.











[1] Alegoria da Caverna, de Platão.
[2] Sócrates utiliza Doxa para denominar o conhecimento ilusório, resultado de nossa experiência e percepção limitada da realidade, o qual se manifesta na forma de opinião (doxa). (SELL, 2013, p. 91)
[3] Tentar descobrir a verdade conduz a uma tentativa de se encontrar uma definição mais precisa e mais universal usando a razão. Ao conseguirmos definir um conceito universal, alcançamos a ciência (episteme), o verdadeiro conhecimento. (SELL ...cit, p. 91)
[4] Isegoria – palavra composta de dois elementos: “ise”, que vem de “isos” (igual), e “goria”, derivada do verbo agoureio (falar em público, falar numa assembleia, discursar em público). Isonomia – palavra composta por “isos” (igual) e “nomia”, vinda de nomos (regra, lei, norma). (SELL, 2013, p.81)
[5] Sofista (lat. sophista, do gr. sophistes) Na Grécia clássica, os sofistas foram os mestres da retórica e oratória, professores itinerantes que ensinavam sua arte aos cidadãos interessados em dominar melhor a técnica do discurso, instrumento político fundamental para os debates e discussões públicas, já que na pólis grega as decisões políticas eram tomadas nas assembleias. Contemporâneos de *Sócrates, *Platão e *Aristóteles, foram combatidos por esses filósofos, que condenavam o *relativismo dos sofistas e sua defesa da ideia de que a verdade é resultado da persuasão e do consenso entre os homens. (JAPIASSÚ; MARCONDES, 2001)
[6]  Górgias dá grande importância ao logos enquanto discurso argumentativo. Para ele, mais importante do que o verdadeiro é o ser provado ou defendido pelo discurso. (SEEL, 2013, p. 85)
[7] Em Homero, a noção de virtude (areté), ainda não atenuada por seu posterior uso puramente moral, significava o mais alto ideal cavalheiresco aliado a uma conduta cortesã e ao heroísmo guerreiro. Identificada a atributos da nobreza, a areté, em seu mais amplo sentido, designava não apenas a excelência humana, como também a superioridade de seres não-humanos, como a força dos deuses ou a rapidez dos cavalos nobres. Só algumas vezes, nos livros finais das epopeias, é que Homero identifica areté com qualidades morais ou espirituais. (SOUZA, p.11)
[8] Paidéia