A
Jornada do Herói Entre a Paideia Homérica e a Sofística
Estudar a cultura
grega significa empreender a jornada do
prisioneiro liberto da caverna escura da própria ignorância e limitações pela força da
luz própria que emana dessa civilização. O esplendor dessa luz, em princípio,
obscurece a visão habituada às sombras, mas,
pela insistência em buscá-la, desvela-nos um universo de descobertas.
Assim, transitar da doxa
para episteme,
como propõe o mito platônico, por
meio de um processo educativo implica um atencioso trabalho de leitura e
reflexão sobre as múltiplas possibilidades de abordagem que, qual um
caleidoscópio, essa cultural se apresenta.
Por essa razão, ao
empreender essa primeira jornada como um exercício do olhar, buscamos por uma
tímida fresta a perspectiva ainda nebulosa:
tentar compreender as relações entre a democracia grega e o trabalho dos
sofistas, quais princípios defendiam, finalizando com uma breve comparação
entre as paideias homérica e sofística, a fim de observar se, a exemplo da
primeira, a paidéia sofísitca experimenta, de alguma forma, a força de agon.
Grécia:
berço da civilização ocidental. Uma saga que somam séculos de história. Do
pensamento mítico ao surgimento e desenvolvimento da filosofia, bem como os
sistemas organizadores do caos social estão imbricados, como um amálgama,
história e sociedade.
Eis
um dos desafios com o qual o estudioso iniciante se depara: organizar de forma
coerente o universo sociopolítico grego. Qualquer recorte filosófico que se
faça para aprofundamento, não é possível compreendê-lo sem relacioná-lo a um
contexto complexo construído em vertiginosa dinamicidade.
Assim, não se pode compreender Democracia desvinculada do
contexto político
que,
por sua vez, responde pelo surgimento da filosofia. O cenário dessas reflexões
iniciais remete-nos à história da formação da civilização helênica.
Sabe-se que a Grécia não era, em sua origem,
um país politicamente organizado. Os pequenos países, ou cidades-Estado, eram
ligados por aspectos culturais comuns valorizados e cultivados: o idioma e os
poemas e os mitos de Homero e Hesíodo que se constituíram em símbolos dessa
rica civilização, recitados e perpetuados por aedos e rapsodos.
Observa-se que organização sociocultural
das cidades-Estado favoreceu o florescimento de uma sociedade livre do jugo
absolutista que marcou algumas grandes civilizações como o Egito, a Pérsia
etc. Portanto, a liberdade de
pensamento, o amor ao saber e ao conhecimento foram as condições primordiais
para o nascimento da filosofia e da democracia.
Para os gregos, a Democracia se assenta na
ideia da supremacia da lei, ao contrário da monarquia que a tudo controla e determina sem a possibilidade de questionamentos,
própria dos grandes impérios. A liberdade de pensamento que gerou o nascimento
da filosofia só foi possível no regime democrático que floresceu nas cidades-Estado,
formando a antiga civilização grega.
Outros fatores e condições sociopolíticas foram
contributos para a mudança da mentalidade mítica para o pensamento racional (CHAUÍ,
apud SELL, p. 27), tais como: as viagens marítimas, a invenção do calendário, o
surgimento da vida urbana, a invenção da escrita alfabética. Além disso e, sobretudo,
a invenção da política favoreceu a transição do pensamento mítico para o
pensamento filosófico. O contexto de
mudanças já não mais possibilitava ao homem compreender a vida pela mentalidade
mítica veiculada pelos poemas homéricos. Hesíodo (séc. VIII a.C.) já anunciava
algumas inovações importantes que aproximam o homem de sua realidade
material: “A busca da excelência (aretè)
através do esforço pessoal é a única forma de que o ser humano agora dispõe
para fugir aos infortúnios da vida. ” (SELL, 2013, p.26)
Cabe
ao homem organizar seu “cosmos” social. Pelo esforço, pelo trabalho, pelo
exercício do pensamento racional, ele deve gerir as transformações que se
operam. Dentre elas, o surgimento da
política trazendo como princípios
a valorização do homem, do pensamento, da discussão, da persuasão e da decisão racional. Tais
elementos se constituem a base para a palavra filosófica. (SELL, 2013, p. 28)
Dessa constatação pragmática, as condições
para a organização democrática das póleis
estavam sedimentadas. Sem a intervenção dos deuses, o homem se percebe como
agente transformador de sua própria condição. Descobre suas potencialidades
produtivas, modificando as relações com o meio em que vive. Diante do novo contexto, os séculos (IX ao VI
a. C) de especulações filosóficas em torno da origem da natureza sob cujas leis
o homem está submetido cedem lugar a uma nova ordem de raciocínio, na qual ele passa a ser o centro e a medida de todas
as coisas, como propõem os sofistas. Em função desse novo pensamento e das novas
necessidades, o ambiente físico e social são reorganizados, conforme esclarece
Chauí sobre a reforma de Clístenes, no século VI a.C. (apud SELL, 2013, p. 80):
[...].
Estabelece um espaço circular onde se reúnem a Boulé (que cuida das questões políticas cotidianas) e a Ekklesia, a Assembleia Geral de todos os cidadãos atenienses, na
qual se discutem e decidem-se
publicamente os grandes assuntos da cidade, sobretudo as decisões de guerra e
paz. Está inventada a democracia (demos, os
cidadãos; kratos, o poder: o poder do
demos ou dos cidadãos.)
Como decorrência dessa organização
política, a isegoria e a isonomia se constituíram nos
princípios básicos para o exercício da democracia grega que garantia ao cidadão
ateniense igualdades, tanto de direitos quanto de uso da palavra ou discurso.
Para uma sociedade de tradição mítica em
que a retórica, o discurso era, até então, habilidade dos filósofos, as
necessidades atuais exigiam que os demos
aprendessem a manejar a palavra como condição sine qua non para o exercício do poder.
Atenas, agora atraente sob todos os
aspectos: cultural, artístico, econômico, esplendendo novidades, lançava as bases para o Humanismo e
Relativismo dos sofistas que encontravam na polis um amplo espaço para ensinar a sua arte:
“Os
Sofistas se aproveitaram enormemente do ambiente político ateniense do século V
a.C, haja vista que, na Atenas de então, depois das reformas políticas
instituídas por Péricles, as instituições políticas tinham uma característica
eminentemente democrática, de forma que, teoricamente, todos os cidadãos tinham
a possibilidade de falar nas assembleias públicas, fato esse bastante
aproveitado pelo senso de oportunismo dos Sofistas” (Luiz Roberto Alves dos Santos – UFS –
Cadernos de Filosofia.)
Mestres da retórica, esses filósofos
trouxeram importantes contribuições para o desenvolvimento do pensamento
racional. Ao proporem que o homem é o centro de tudo, base do princípio
Humanista, aprofundaram o hiato entre a
realidade social e os deuses míticos de Homero. As leis que regem a sociedade
dependem, essencialmente, da capacidade humana de geri-las e harmonizá-las.
O pensamento de Protágoras de Abdera (apud
SELL, 1990, p.85) “O homem é a medida de todas as coisas, das que são, enquanto
são e das que não são, enquanto não são” reflete a valorização do homem
enquanto ser capaz de atribuir sentido para a realidade na qual está inserido.
Na medida em que se percebe capaz de interpretar a realidade, as noções de doxa (opinião) e de logos
(o que pode ser provado ou
defendido) são ressignificadas a serviço do desenvolvimento da linguagem que, no contexto sofista, é
o instrumento capaz de fazer o homem se
relacionar com a realidade e com outros seres humanos.
Para
os sofistas, a democracia deve ser exercida por meio da erística, ou seja, do debate, da disputa verbal. Somente a linguagem é capaz de instrumentalizar os
adversários para vencê-la. Por essa razão, a democracia ateniense oferece a
esses mestres da retórica os fundamentos
para que seus princípios sejam tão relevantes para a formação do homem grego.
Ao valorizar a linguagem e o discurso como
forma de vencer o adversário na disputa e, por esse meio, ganhar relevância e
poder, os sofistas criticam as noções de força e de virtude (arethè) simbolizadas por Homero nos heróis míticos e atribuída aos
nobres, os aristoi, como honra e
dever recebidos, via de regra, como descendência dos antepassados. Nesse
sentido, Jaeger (apud SILVA, 2010) afirma que:
O conceito do ideal
aristocrático de formação dos gregos até o século V a.C. se fundamenta no
conceito de arete, que é retratada nos poemas homéricos como um atributo
da nobreza, como um conjunto de qualidades espirituais, morais e físicas
desejáveis em um homem. A arete é o heroísmo, no seu sentido de ação
moral e intimamente ligada à força, contendo em si a bravura, a coragem e a
honra. Na arete se baseava a educação da nobreza, cuja "força
educadora" reside no "fato de despertar o sentimento do dever em face
do ideal, que deste modo o indivíduo tem sempre diante dos olhos."
Em Hesíodo, estas noções são modificadas.
De acordo com Sell (2011, p.26), as noções de virtude assumem uma concepção
mais humanista, ao considerar que a única forma que o ser humano dispõe para
fugir aos infortúnios da vida é buscar a excelência (aretè) pelo esforço pessoal. Ao colocar o homem como protagonista
de si mesmo na busca da virtude, ao nivelar a espécie humana e distanciar os
deuses, Hesíodo sedimenta as bases ideológicas para a democracia.
Consequência desse processo, o novo
contexto sociopolítico de Atenas faz com que os sofistas desloquem o foco
homérico do agon que privilegiava a
luta, a disputa, o embate para o
desenvolvimento da habilidade discursiva. Para Santos:
A eloquência
desenvolvida pelos Sofistas tinha sua justificativa mais importante na
possibilidade do ensinamento da areté enquanto
virtude política, já que era nesse tipo de virtude que se enquadrava o intuito
da sofística (JAEGER, 1995), porquanto os sofistas afirmavam poder ensinar a
excelência no discurso, com o cuidado de que essa excelência estivesse sempre
voltada para a capacidade de governar os homens (PLATÃO, Menon, 73d). Nesse sentido,
a virtude política objetivada pelos
sofistas tinha o seu fim no bem da sociedade, independente dos meios utilizados
para alcançar esse bem.” (SANTOS)
A educação é o meio pelo qual os valores
são ensinados e preservados. Ressalte-se que os sofistas eram mestres,
profissionais remunerados, portanto, o público-alvo de seu trabalho não eram os
demos comuns, mas os que pudessem
pagar, ou seja, a aristocracia privilegiada. Este é um detalhe que não se pode desconsiderar. A paidéia sofística está focada nas necessidades
de uma Atenas política, democrática, mas ambiciosa pelo poder. Buscava a
formação de homens capazes de governar, de liderar, de habilmente manejar as
palavras, de disputar e vencer, como analisa Jaeger:
A difusão da democracia grega criava a demanda que os
sofistas pretendiam suprir em sua capacidade de educadores profissionais. O
caminho para o sucesso político estava aberto a qualquer um, contanto que
tivesse a capacidade e o treino para sobrepujar seus competidores. A
necessidade primordial era dominar a arte de falar persuasivamente. Em função
disso, argumentou-se que todo o ensino dos sofistas se resume na arte retórica.
(Adaptado de GUTHRIE, W. K. C. Os sofistas. Tradução João
Rezende Costa. São Paulo: Paulus, 1995, p. 24).
A
reflexão que se coloca é, em que medida, a paidéia sofística nos remete a
paidéia homérica, considerando os aspectos de seleção “natural” dos heróis
sociais. A jornada do herói de Homero deve ser marcada pelo esforço em
desenvolver suas potencialidades como a força, a coragem, uso das armas, o
poder de persuasão. Além disso, devem sempre lutar para estarem acima dos
demais, para que sejam lembrados pela posteridade. Os deuses assumem a tutela
de seus protegidos, conferem-lhes os poderes necessários para o enfrentamento
dos desafios que, invariavelmente, vencem.
Excetuando
a intervenção divina, podemos identificar nos sofistas os “deuses” produtores
de heróis. Os aristoi, uma vez submetidos a paidéia sofística, dela devem sair instrumentalizados,
com o poder da persuasão, para empreender uma jornada de poucos, da qual apenas
os mais fortes são capazes de vencer. Ironicamente, talvez, esse é o fundamento
da democracia. Talvez esse seja o teor
agonístico a que Jaeger se refere.
Ensaios filosóficos (26.02.2013)
Referências Bibliográficas:
JAPIASSÚ, Hilton. Dicionário Básico de Filosofia. 3ª ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.
JAEGER,
Werner. Paidéia: a formação do homem grego.
2ª ed. São Paulo: Martins Fontes. 1984.
SELL, Sérgio. História da Filosofia I: livro didático. Palhoça: UnisulVirtual, 2011.
Sofista (lat. sophista,
do gr. sophistes) Na Grécia clássica,
os sofistas foram os mestres da retórica e oratória, professores itinerantes
que ensinavam sua arte aos cidadãos interessados em dominar melhor a técnica do
discurso, instrumento político fundamental para os debates e discussões públicas,
já que na pólis grega as decisões
políticas eram tomadas nas assembleias. Contemporâneos de *Sócrates, *Platão e
*Aristóteles, foram combatidos por esses filósofos, que condenavam o
*relativismo dos sofistas e sua defesa da ideia de que a verdade é resultado da
persuasão e do consenso entre os homens. (JAPIASSÚ; MARCONDES, 2001)
Em
Homero, a noção de virtude (areté), ainda não atenuada por seu posterior
uso puramente moral, significava o mais alto ideal cavalheiresco aliado a uma
conduta cortesã e ao heroísmo guerreiro. Identificada a atributos da nobreza, a
areté, em seu mais amplo sentido, designava não apenas a excelência humana,
como também a superioridade de seres não-humanos, como a força dos deuses ou a
rapidez dos cavalos nobres. Só algumas vezes, nos livros finais das epopeias, é
que Homero identifica areté com qualidades morais ou espirituais.
(SOUZA, p.11)