A questão do corpo e sua relação com a responsabilidade em “Os Intocáveis”
O
filme “Os Intocáveis, de Eric Oledano e Oliver Nakache, desenvolve uma temática
de farto conteúdo filosófico, que nos leva a indagar: até que ponto o corpo
constitui limitação para a alma? O que de fato importa como sentido de vida, na
medida que a riqueza, o poder não imuniza o ser humano dos eventos trágicos que
modificam radicalmente o seu modus vivendi?
Que valores a vida nos convida a repensar a partir das experiências
desafiadoras? Para responder a essas questões, busquei no texto “A identidade
do sujeito moral”, um breve recorte sobre a filosofia de Espinosa para
fundamentar as reflexões acerca do filme.
Fhillipe,
o protagonista magnata, paraplégico por acidente em esportes radicais tem sua vida
alterada quando perde a autonomia dos movimentos físicos. Até então, usufruía
de todos os bens que a fortuna pode proporcionar, sobretudo prestígio e poder.
Portanto, o sistema de valores que antecedem ao acidente faz dele um homem
preocupado com a imagem, tanto física quanto cultural. Porte físico elegante,
bem vestido, amante das artes, da leitura, de carros caros e velozes, passeios principescos,
enfim, platonicamente, escravizado pelo sensível, pelo culto às formas de
prazer que a riqueza permite.
Neste
caso, é possível refletir sobre a relação corpo-espírito, proposta por Espinosa
(1632-1677), uma vez que, antes da ação externa trágica, modificadora da vida
de Fhillipe, não há uma relação corpo e espírito hierarquizada, ou seja, ambos
se identificam e se expressam, indistintamente. Tanto o corpo quanto o Espírito
são ativos, senhores da própria ação. Até que uma ocorrência externa e obriga a
alma a voltar-se para si mesma. Ao perder os movimentos físicos, a personagem
passa a se dedicar as atividades do pensamento, usufruindo o que os seus
recursos sensoriais permitem: música, artes plásticas, silêncios, e escreve
cartas de amor. No entanto, diz ainda Espinosa
"...a
descoberta de sua impotência causa o sentimento de diminuição do ser e,
portanto, provoca tristeza." (ARANHA; MARTINS, 2003, p. 7)
Fhillipe
é um espírito triste. Talvez, por essa razão, tenha identificado no
problemático cuidador Driss, a alegria e juventude que lhe falta. Esse encontro
entre tristeza-solidão e a alegria-juventude ameniza o drama de ambos. Os dois
aprendem as dimensões do corpo e do espírito, numa convivência de mútua
afetividade e generosidade. Driss alimenta-lhe o corpo e Phillipe sensibiliza-lhe
a alma com as delicadezas da arte.
A convivência entre eles inicia-se como um
choque de culturas e de valores, já que Driss é um jovem negro, pobre,
desempregado, de família numerosa e problemática. Consciente de suas
limitações, posiciona-se o quanto seu sistema de valores lhe permite executar,
como por exemplo, recusa-se a vestir as meias terapêuticas porque isso é coisa
de mulher. No entanto, a necessidade de fazê-lo, educa-lhe a rebeldia e aprende
a se submeter ao que sua função lhe exige. Outro aspecto digno de observação é
que Driss não vê Phillipe como alguém limitado, não o trata como um desventurado
ou manifesta qualquer pena dele. Em vários momentos vamos encontrá-lo
proporcionando ao magnata todas as formas de vida que conhece do seu próprio
universo: cigarros, bebidas, sua música agitada, dança, velocidade ao dirigir,
passeios radicais, mulheres.
A presença de Driss devolve ao aristocrata outras
possibilidades de existência, incluindo o amor e o casamento. Já Phillipe oferece
a Driss condições para devolver dignidade à sua própria família. Ambos se
responsabilizaram moralmente um pelo outro e por si mesmos. O filme mostra que
as limitações do corpo não impossibilitam a realização moral. A percepção de
que o corpo não impossibilita as paixões, o pensamento, a vida e o afeto
incondicional, para além das diferenças, induz-nos a refletir que a causa de
tudo é o ser interior. De acordo com o
filósofo da vida: “Somos autônomos quando o que acontece em nós é explicado
pela nossa própria natureza. ” (ARANHA;
MARTINS, 2003 p.7)
Célia Firmino
Reflexões Filosóficas - 14.08.2013
Referência:
ARANHA, Maria Lúcia de
Arruda; MARTINS, Maria Helena Pires. Filosofando. São Paulo: Moderna, 3. ed. rev.
2003.
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