segunda-feira, 18 de junho de 2018


A questão do corpo e sua relação com a responsabilidade em “Os Intocáveis”



O filme “Os Intocáveis, de Eric Oledano e Oliver Nakache, desenvolve uma temática de farto conteúdo filosófico, que nos leva a indagar: até que ponto o corpo constitui limitação para a alma? O que de fato importa como sentido de vida, na medida que a riqueza, o poder não imuniza o ser humano dos eventos trágicos que modificam radicalmente o seu modus vivendi? Que valores a vida nos convida a repensar a partir das experiências desafiadoras? Para responder a essas questões, busquei no texto “A identidade do sujeito moral”, um breve recorte sobre a filosofia de Espinosa para fundamentar as reflexões acerca do filme.                                
Fhillipe, o protagonista magnata, paraplégico por acidente em esportes radicais tem sua vida alterada quando perde a autonomia dos movimentos físicos. Até então, usufruía de todos os bens que a fortuna pode proporcionar, sobretudo prestígio e poder. Portanto, o sistema de valores que antecedem ao acidente faz dele um homem preocupado com a imagem, tanto física quanto cultural. Porte físico elegante, bem vestido, amante das artes, da leitura, de carros caros e velozes, passeios principescos, enfim, platonicamente, escravizado pelo sensível, pelo culto às formas de prazer que a riqueza permite.
Neste caso, é possível refletir sobre a relação corpo-espírito, proposta por Espinosa (1632-1677), uma vez que, antes da ação externa trágica, modificadora da vida de Fhillipe, não há uma relação corpo e espírito hierarquizada, ou seja, ambos se identificam e se expressam, indistintamente. Tanto o corpo quanto o Espírito são ativos, senhores da própria ação. Até que uma ocorrência externa e obriga a alma a voltar-se para si mesma. Ao perder os movimentos físicos, a personagem passa a se dedicar as atividades do pensamento, usufruindo o que os seus recursos sensoriais permitem: música, artes plásticas, silêncios, e escreve cartas de amor. No entanto, diz ainda Espinosa  "...a descoberta de sua impotência causa o sentimento de diminuição do ser e, portanto, provoca tristeza." (ARANHA; MARTINS, 2003, p. 7)
Fhillipe é um espírito triste. Talvez, por essa razão, tenha identificado no problemático cuidador Driss, a alegria e juventude que lhe falta. Esse encontro entre tristeza-solidão e a alegria-juventude ameniza o drama de ambos. Os dois aprendem as dimensões do corpo e do espírito, numa convivência de mútua afetividade e generosidade. Driss alimenta-lhe o corpo e Phillipe sensibiliza-lhe a alma com as delicadezas da arte.
     A convivência entre eles inicia-se como um choque de culturas e de valores, já que Driss é um jovem negro, pobre, desempregado, de família numerosa e problemática. Consciente de suas limitações, posiciona-se o quanto seu sistema de valores lhe permite executar, como por exemplo, recusa-se a vestir as meias terapêuticas porque isso é coisa de mulher. No entanto, a necessidade de fazê-lo, educa-lhe a rebeldia e aprende a se submeter ao que sua função lhe exige. Outro aspecto digno de observação é que Driss não vê Phillipe como alguém limitado, não o trata como um desventurado ou manifesta qualquer pena dele. Em vários momentos vamos encontrá-lo proporcionando ao magnata todas as formas de vida que conhece do seu próprio universo: cigarros, bebidas, sua música agitada, dança, velocidade ao dirigir, passeios radicais, mulheres.
        A presença de Driss devolve ao aristocrata outras possibilidades de existência, incluindo o amor e o casamento. Já Phillipe oferece a Driss condições para devolver dignidade à sua própria família. Ambos se responsabilizaram moralmente um pelo outro e por si mesmos. O filme mostra que as limitações do corpo não impossibilitam a realização moral. A percepção de que o corpo não impossibilita as paixões, o pensamento, a vida e o afeto incondicional, para além das diferenças, induz-nos a refletir que a causa de tudo é o ser interior.  De acordo com o filósofo da vida: “Somos autônomos quando o que acontece em nós é explicado pela nossa própria natureza. ”  (ARANHA; MARTINS, 2003 p.7)

Célia Firmino
Reflexões Filosóficas -  14.08.2013


Referência:

ARANHA, Maria Lúcia de Arruda; MARTINS,  Maria Helena Pires. Filosofando. São Paulo: Moderna, 3. ed. rev. 2003.


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