sexta-feira, 27 de setembro de 2019

O que torna alguém especial?



O que torna uma pessoa especial para mim?
O simples fato de existir e existindo faz valer sua presença no mundo.
Não pelo que encanta os olhos, mas pelo que revela a alma.
Por isso, não é possível ser especial à primeira vista, mas há muitas vistas; desnudar a alma é um lento e longo processo de sensibilidade.
Não se pode ser especial pelo que os olhos veem e o tempo brevemente destrói, mas pelo que se cativa num espaço-tempo sem medidas, dentro do coração. Isso é tornar-se único.
Ser especial é construção que sobrevive à eternidade; “o que a memória ama fica eterno”.
Ser especial não se nasce pronto; é um exercício do olhar, de descoberta das sutilezas do Espírito. Para isso, não basta a presença física ou virtual; é necessário que uma alma toque outra alma; chamo isso de encontro, uma conexão que independe dos quilômetros; estar junto é estar do lado de dentro. Ser especial é virar bagagem do outro, com a leveza das coisas etéreas que existem sem se fazerem pesadas.
Encontro é quando enxergamos com o coração, não apenas as feridas da alma, mas também a luzes que dela irradiam, no silêncio do afeto que admira sem precisar dizer. Entretanto, em dizendo, seja acolhido no silêncio da escuta e, sendo escutado, seja sentido e, sendo sentido, seja respeitado e, sendo respeitado, seja humano e, sendo humano, seja especialmente singular em sua humanidade.
Encontro é quando, ao tocarmos as feridas da alma do outro, o façamos com a delicadeza de quem toca o sagrado e nesse gesto, compartilharmos a cura.
Ser especial, é ser em liberdade: não aprisiona, não sufoca, não exige, nada pede, nada espera, apenas dá de si mesmo pela alegria de dar-se, num ato entrega, sem o medo de se perder.
Então, ser especial não se nasce pronto, é tornar-se, é ser, simplesmente, generosamente, espontaneamente, amorosamente pelos caminhos por onde a vida nos levar.

Andradina, 26 de setembro de 2019.

                                                                                          Célia Firmino




Eu aceito meus “pontos mortos”: reflexões para amar a si mesmo



Eu aceito meus pontos mortos, minhas inúmeras dificuldades de lidar com minhas energias densas, os desequilíbrios que me inquietam. Aprendendo, no entanto, a não responsabilizar pessoas ou circunstâncias pelas minhas feridas emocionais. Elas me lembram por que estou aqui.

Eu aceito o fato de que pessoas vão me ferir, assim como eu também firo pessoas; isso não significa que não as respeite no direito de serem como são. Eu me aceito, aprendendo, no entanto, a não permitir que instantes se eternizem como fotografias velhas no tempo e na memória. As pessoas mudam, assim como eu também mudo. A vida é constante impermanência.

Eu aceito que pessoas não gostem de mim, que sintam aversão pela minha presença; eu também tenho dificuldades em sintonizar-me com todas elas. Eu me aceito, aprendendo, porém, que afinidades são conquistas da alma a exigirem perdão incondicional na infindável esteira do tempo e das oportunidades.

Eu aceito que às vezes, pela lei do retorno, tenho que suportar a presença indesejável à minha alma de parceiros em convivência difícil, sobretudo no trabalho; o outro também precisa me suportar. Eu me aceito, aprendendo, entretanto que a tolerância é um dos mecanismos divino de abertura das portas do coração.

Eu aceito a família que tenho, nas condições em que se apresenta ao meu convívio como primeira escola de aprendizagens da alma, de reabilitação de nossas transgressões, assim como, de laços afetivos em apoio mútuo. Eu me aceito, aprendendo que a Lei Divina determina a responsabilizar-me pelo que cativo, planto e colho, seja dor ou  amor. 

Eu aceito que Deus me colocou no lugar certo, com as pessoas certas, adequadas às minhas necessidades espirituais e que não me cabe fugir ao fluxo da vida, aos deveres a mim impostos frente aos desígnios superiores. Eu me aceito, aprendendo que meus parceiros de jornada, no círculo da fé, são frutos das construções reencarnatórias das quais fui responsável também pela desarmonia estabelecida e que me cabe o esforço pessoal na restauração por meio do serviço no bem.

Eu aceito as experiências da vida, no planeta em que habito, com todas as variações de cor existencial característica de seus habitantes em permanente ciclo provacional e ascendente rumo ao vir a ser. Eu me aceito, aprendendo que nossa fatalidade é a felicidade após a marcha ascensional realizada em busca da plenitude.

Eu aceito meus pontos mortos que frustram meu Espírito. Eu me aceito, lembrando que a metamorfose da borboleta se dá após longo processo de permanência no casulo.  Assim, a vida na Terra é o nosso abençoado processo de criar asas. Abençoemos, portanto, os desencantos que, provisoriamente, traumatizam nossas almas, pois nos preparam o voo livre para a angelitude.

Andradina, 09 de setembro de 2019.

                                                                                                                            Célia Firmino

sexta-feira, 20 de setembro de 2019

Em “tempos líquidos” e de amores rasos, muitos relacionamentos naufragam antes mesmo da desancoragem


E eu sem você sou só desamor
Um barco sem mar, um campo sem flor
Tristeza que vai, tristeza que vem
Sem você, meu amor, eu não sou ninguém.
Vinícius de Moraes. Samba em Prelúdio

               O texto de Vinícius de Moraes, apesar da sensibilidade poética e da beleza das imagens sugere uma relação perigosa de amor (ou desamor). A ideia de que precisamos do outro para sermos completos. A ideia da “cara metade” necessária para nossa completude. Propõe ainda a nulidade da identidade, “eu sem você não sou ninguém”, chegando à inexistência se o outro não nos preencher com seu amor. É assim  mesmo ou “apesar de você, amanhã há de ser outro dia”?  O que é mais libertador?

               É comum ouvir, nos tempos atuais, “estou num relacionamento, mas estou no raso”, sugerindo a ideia de superficialidade, ausência de aprofundamento, fragilidade, falta de comprometimento etc.  Podemos relacionar essa expressão ao que o sociólogo polonês, Zygmunt Bauman, chamou de “tempos líquidos”, ou seja, nada é feito para durar, nada se solidifica, tudo muda de forma, rapidamente.
               Assim, tentemos uma compreensão para este tipo de relacionamento. Neste contexto, em relacionamento “raso” não se pode estar por inteiro, nem pela metade; “raso” é a proporção de menos de 50%, ou seja, não são nem “metades” que se completam, como quer o senso comum, tampouco “inteiros” que compartilham, como se espera de uma relação saudável.
                Em relacionamentos rasos, o espaço do afeto é a superfície para o movimento dos corações. Semelhante à lei da natureza, sementes sem profundidade, não germinam; não dão frutos; não suportam as intempéries do tempo; não tem raízes, não fincam, não vingam, não ficam. Na superfície, são arrastadas por falta de raízes.
               Em relacionamentos rasos, há peixe fora d’água. Sem oxigenação, há tragédia anunciada de morte prematura do que deveria ser promessa; subjacente a escassez, há aridez do espaço de movimento. Escassez e aridez são dois elementos que não sustentam vida.
               Em relacionamentos rasos, há feridas abertas ou mal cicatrizadas; há o medo da entrega, o medo da perda, o medo da solidão; há corações vacilantes, inseguros, carentes que “precisam de...” “para me...”. São semelhantes que se atraem, na mesma energia da falta; são dependentes afetivos que se buscam para alimentarem a “ausência de” (não se dão conta de que o vazio é de si mesmos), comportamento característico do viciado em relacionamentos, para manter a sobrevivência emocional. Vão colecionando experiências tóxicas porque não suportam a própria companhia.
               Em relacionamentos rasos, há a inconsciência de uma relação parasitária em que, movidos pela falta, um se nutre do outro e não o outro. Fortalecem a dependência gerando as prisões emocionais que resultam nos equívocos de compreensão em que, exemplificando, posse, ciúme, apego viram “amor”, de forma tão vital que a mera hipótese de separação já responde pelos crimes passionais, pelos suicídios diretos ou indiretos, pela depressão, pela desesperança e demais processos que adoecem a alma.
               Em relacionamentos rasos, ambos se habituam às migalhas que se oferecem, em nome do “amar” ou “gostar” (a diferença não é clara), num processo continuo de desnutrição afetiva, justificada pelo disfarce emocional do desapego, da autossuficiência, da preservação da individualidade, do respeito à liberdade. É um processo emocional suicida da relação que culmina, invariavelmente na exacerbação da falta, no vazio existencial, na perda de sentido.
               Em relacionamentos rasos, não há o transbordamento do afeto que mais se multiplica quanto mais se oferece, mas a economia de si mesmo como forma de autopreservação, como defesa de território. Há um corpo sentindo outro corpo, mas não há uma alma tocando outra alma, que só quem aprendeu a amar-se e a se pertencer pode se dar por inteiro sem medo de se perder.
               Em relacionamentos rasos, há um silencioso pedido de socorro; “salve-me de mim mesmo”, “devolva a minha alma”, como se fosse possível a um outro, trazer volta o “si mesmo”. Ao mesmo tempo em que ninguém pode ser feliz sozinho, ninguém pode oferecer ao outro o que nega a si mesmo: o amor. “Ninguém é capaz de tornar feliz aquele que a si mesmo se recusa a alegria de ser pleno”. (Joanna de Ângelis/Divaldo P. Franco)
               A Lei do Universo determina que, em tudo, tenhamos sempre o melhor. Portanto, embora a dor, os relacionamentos rasos devem levar, fatalmente, ao deserto de nós mesmos para o necessário auto encontro. O deserto em nossas vidas tem o papel de nos propiciar o mergulho interno do autoconhecimento. É no silencio de nossa alma, na imersão profunda de nós mesmos que vamos nos resgatar, promovendo a integração de nossas partes fragmentadas pelas experiências traumáticas da vida. É lá, do lado de dentro, num processo solitário de auto descobrimento que vamos encontrar, em nós, o que buscamos o tempo todo no outro, o que perseguimos fora: a felicidade, o si mesmo, a plenitude.
               É lá, no imo da alma, em conexão com nossa essência, é que transmutamos solidão em solitude.  E, ao aprendermos que ninguém pode dar de si mesmo se, no deserto interno, não aprendeu a se pertencer, quebramos, finalmente, as algemas das inúmeras prisões emocionais que construímos. Então, poderemos emergir para a incrível jornada, de dentro para fora, da liberdade plena de amar, pelo amor, profundamente, sem o risco de se perder de si mesmo.

                              Andradina, 20 de setembro de 2019                     
                                                                         Célia Firmino