E eu sem você sou só
desamor
Um barco sem mar, um campo sem flor
Tristeza que vai, tristeza que vem
Sem você, meu amor, eu não sou ninguém.
Vinícius de Moraes.
Samba em Prelúdio
O texto de
Vinícius de Moraes, apesar da sensibilidade poética e da beleza das imagens
sugere uma relação perigosa de amor (ou desamor). A ideia de que precisamos do
outro para sermos completos. A ideia da “cara metade” necessária para nossa
completude. Propõe ainda a nulidade da identidade, “eu sem você não sou
ninguém”, chegando à inexistência se o outro não nos preencher com seu amor. É
assim mesmo ou “apesar de você, amanhã
há de ser outro dia”? O que é mais
libertador?
É comum ouvir, nos
tempos atuais, “estou num relacionamento, mas estou no raso”, sugerindo a ideia
de superficialidade, ausência de aprofundamento, fragilidade, falta de
comprometimento etc. Podemos relacionar
essa expressão ao que o sociólogo polonês, Zygmunt Bauman, chamou de “tempos
líquidos”, ou seja, nada é feito para durar, nada se solidifica, tudo muda de
forma, rapidamente.
Assim,
tentemos uma compreensão para este tipo de relacionamento. Neste contexto, em relacionamento
“raso” não se pode estar por inteiro, nem pela metade; “raso” é a proporção de
menos de 50%, ou seja, não são nem “metades” que se completam, como quer o
senso comum, tampouco “inteiros” que compartilham, como se espera de uma
relação saudável.
Em relacionamentos rasos, o espaço do afeto é a
superfície para o movimento dos corações. Semelhante à lei da natureza, sementes
sem profundidade, não germinam; não dão frutos; não suportam as intempéries do
tempo; não tem raízes, não fincam, não vingam, não ficam. Na superfície, são
arrastadas por falta de raízes.
Em
relacionamentos rasos, há peixe fora d’água. Sem oxigenação, há tragédia
anunciada de morte prematura do que deveria ser promessa; subjacente a escassez,
há aridez do espaço de movimento. Escassez e aridez são dois elementos que não
sustentam vida.
Em
relacionamentos rasos, há feridas abertas ou mal cicatrizadas; há o medo da
entrega, o medo da perda, o medo da solidão; há corações vacilantes, inseguros,
carentes que “precisam de...” “para me...”. São semelhantes que se atraem, na
mesma energia da falta; são dependentes afetivos que se buscam para alimentarem
a “ausência de” (não se dão conta de que o vazio é de si mesmos), comportamento
característico do viciado em relacionamentos, para manter a sobrevivência
emocional. Vão colecionando experiências tóxicas porque não suportam a própria
companhia.
Em
relacionamentos rasos, há a inconsciência de uma relação parasitária em que,
movidos pela falta, um se nutre do
outro e não o outro.
Fortalecem a dependência gerando as prisões emocionais que resultam nos
equívocos de compreensão em que, exemplificando, posse, ciúme, apego viram
“amor”, de forma tão vital que a mera hipótese de separação já responde pelos
crimes passionais, pelos suicídios diretos ou indiretos, pela depressão, pela
desesperança e demais processos que adoecem a alma.
Em
relacionamentos rasos, ambos se habituam às migalhas que se oferecem, em nome
do “amar” ou “gostar” (a diferença não é clara), num processo continuo de
desnutrição afetiva, justificada pelo disfarce emocional do desapego, da
autossuficiência, da preservação da individualidade, do respeito à liberdade. É
um processo emocional suicida da relação que culmina, invariavelmente na
exacerbação da falta, no vazio existencial, na perda de sentido.
Em
relacionamentos rasos, não há o transbordamento do afeto que mais se multiplica
quanto mais se oferece, mas a economia de si mesmo como forma de
autopreservação, como defesa de território. Há um corpo sentindo outro corpo,
mas não há uma alma tocando outra alma, que só quem aprendeu a amar-se e a se
pertencer pode se dar por inteiro sem medo de se perder.
Em
relacionamentos rasos, há um silencioso pedido de socorro; “salve-me de mim
mesmo”, “devolva a minha alma”, como se fosse possível a um outro, trazer volta
o “si mesmo”. Ao mesmo tempo em que ninguém pode ser feliz sozinho, ninguém
pode oferecer ao outro o que nega a si mesmo: o amor. “Ninguém é capaz de
tornar feliz aquele que a si mesmo se recusa a alegria de ser pleno”. (Joanna
de Ângelis/Divaldo P. Franco)
A
Lei do Universo determina que, em tudo, tenhamos sempre o melhor. Portanto,
embora a dor, os relacionamentos rasos devem levar, fatalmente, ao deserto de
nós mesmos para o necessário auto encontro. O deserto em nossas vidas tem o
papel de nos propiciar o mergulho interno do autoconhecimento. É no silencio de
nossa alma, na imersão profunda de nós mesmos que vamos nos resgatar,
promovendo a integração de nossas partes fragmentadas pelas experiências
traumáticas da vida. É lá, do lado de dentro, num processo solitário de auto descobrimento que vamos encontrar, em nós, o que buscamos o tempo todo no
outro, o que perseguimos fora: a felicidade, o si mesmo, a plenitude.
É
lá, no imo da alma, em conexão com nossa essência, é que transmutamos solidão
em solitude. E, ao aprendermos que
ninguém pode dar de si mesmo se, no deserto interno, não aprendeu a se
pertencer, quebramos, finalmente, as algemas das inúmeras prisões emocionais que
construímos. Então, poderemos emergir para a incrível jornada, de dentro para
fora, da liberdade plena de amar, pelo amor, profundamente, sem o risco de se
perder de si mesmo.
Andradina, 20 de setembro de 2019
Célia Firmino