O
mundo deixa de ser inexplicável quando se narra o mundo.
Roland Barthes
Na cultura de todos os povos, em
todas as épocas, pensar e conhecer o
mundo tem sido o desafio que atravessa gerações. Em estelas de pedra, tijolos
de barro cozido, papiros, as marcas das ações do homem no mundo. Hieróglifos,
imagens, símbolos, desenhos, formas geométricas, escritas cuneiformes,
ideogramas (gênese de palavras) narram a História e as estórias, marcas
de um tempo e de um espaço em que a linguagem natural era apenas uma faculdade,
ainda inexplicável, de se registrar conhecimentos e experiências ainda
rudimentares, o que seria, séculos mais tarde, matéria de acirradas discussões
acadêmicas para construir o conceito de
narrar e seus termos correlatos: narrativa e narração.
Indagar, investigar, conhecer,
contar, relatar, representar [1] são atividades de deciframento inerentes ao
homem em sua trajetória na compreensão do próprio universo. Da caverna à luz,
da ignorância à verdade, a narrativa é o veículo, através do qual a humanidade
trafega para reconstituir e construir, no plano científico, a sua História; no
plano estético, as suas estórias. No
primeiro, o historiador trabalhando a verdade dos fatos; no segundo, o contador
de histórias, reiventando a própria história, num jogo lúdico de faz-de-conta
do que é, mas não é, porém pode ser. Afinal, conclui Chiappini (1983), quem narra, narra o que viu, o que viveu, o
que testemunhou, mas também o que imaginou, o que sonhou, o que desejou. Por
isso, narração e ficção praticamente nascem juntas.
Barthes [2] afirma que a narrativa
começa com a própria humanidade, naturalmente, numa variedade de gêneros como
se toda matéria fosse boa para o homem confiar suas narrativas. A narrativa
está presente nos heróis lendários, divinos ou humanos, no mito, na lenda, na
epopéia, no conto, na novela, no romance, na comédia, na tragédia, na
pantomima, na pintura, na história, no cinema, nas histórias em quadrinhos, na
conversação. Em todos os tempos, em todos os lugares, em todas as sociedades,
em todas as culturas, nas mais variadas manifestações da linguagem. A narrativa
está aí, como a vida, e na tessitura do enredo, o homem.
E quem é esse homo fictus, ou o homem criado pela ficção? E.M. Forster (1974, p.43) assim
o definiu
(...). Geralmente
nasce, é capaz de morrer, requer pouco alimento ou sono, está incansavelmente
ocupado com relações humanas, e – o mais importante – podemos saber mais sobre
ele do que sobre qualquer dos nossos semelhantes, porque seu criador e narrador
são um só. Estivéssemos preparados para uma hipérbole, a esta altura, poderíamos
exclamar: Se Deus pudesse contar a estória do Universo, o Universo se tornaria
fictício.
Cada espaço, cada tempo, cada
personagem, sob o ponto de vista de um astuto narrador (voz que nos fala, vela
ou desvela, esconde-se por detrás das máscaras, marionetiza personagens) insere-se na história ou estória como
recortes do cotidiano, constituindo-se desafio ao leitor o juntar-lhe os
pedaços na recomposição da verdade ou da mentira; do universal ou particular,
na constatação do verossímil ou do verdadeiro. Uma leitura competente exige
esse desvelamento, o que só é possível
quando se conhece o processo de construção da narrativa enquanto arte, os
elementos estruturais engendrados com a finalidade de um efeito estético e
reflexivo. Só então, podemos dar vida à narrativa, conferir-lhe os sentidos
possíveis aos nossos sentidos.
Considerando, portanto, o caráter de
universalidade da narrativa e sua variedade, compreende-se o vasto material de
estudo existente sobre este gênero tão surpreendente e fascinante quanto a
própria vida. Este trabalho, sem pretensão de originalidade, não tem o
propósito de esgotar o que, por natureza, é inesgotável; tampouco,
constituir-se um tratado filosófico e estético sobre a narrativa enquanto arte
literária, já que ausência de maturidade desejável, tornaria o trabalho
contraproducente. No entanto, as considerações que se seguem tentarão tecer uma
descrição e reflexão em torno do que já existe
a respeito de um dos elementos da narrativa: o narrador e suas
categorias ou tipologia, como prefere Friedman. A escolha do tópico
justifica-se por ser o narrador o
demiurgo do universo ficcional a entidade que habita para além das máscaras, manejador
de disfarces, ora onisciente, ora intruso, ora neutro, ora testemunha, ora
protagonista, tratado nestas reflexões como o refletor sob cuja luz o mundo se
reflete e é refletido, onde as estórias permanecem vivas como memória de uma História que não pode ser esquecida.
Imitar e Narrar: uma discussão filosófica
Qualquer tentativa de compreender a
narrativa enquanto fenômeno literário ou ficção esbarra-se numa questão tão
antiga quanto a filosofia: mimese ou
imitação.
A arte enquanto representação da
realidade, os modos de narrar e os efeitos que causam no leitor ou ouvinte tem
suas origens em Platão e Aristóteles.
A distinção entre imitar e narrar
aparece em A república, de Platão
(1975, p.90-1):
(...) há uma maneira de falar e contar que
acompanha o verdadeiro homem honesto, quando tem alguma coisa a dizer; e há uma
outra, diferente, à qual se prende e se conforma sempre o homem de natureza e
educação contrárias(...). O homem
ponderado, segundo me parece, quando tiver de referir, numa narração, uma frase
ou uma ação de um homem bom, procurará exprimir-se como se fosse esse homem e
não se envergonhará de tal imitação, sobretudo se imitar qualquer aspecto de
firmeza e de sabedoria. Imitará menos vezes e menos bem o seu modelo quando
este tiver falhado, sob o efeito da doença, do amor, da embriaguez ou de
qualquer outro acidente. E, quando tiver de falar de um homem indigno dele, não
se permitirá imitá-lo a sério, a não ser de passagem, quando esse homem tiver
feito qualquer coisa de bem(...)
A concepção platônica de imitação como cópia
imperfeita da realidade, de cujo ato o homem de bem deve envergonhar-se, como
evidencia o trecho citado, é discutida no diálogo sobre o Sofista (PESSANHA,
1993). Lá, Platão conceitua a arte como
arte do simulacro ou mimética do ilusionismo . A base de sua filosofia é a
existência do mundo das essências ( idéias), do qual o mundo das aparências
(sensível) seria uma cópia degradada do modelo primitivo, original . Qualquer
tentativa de representar o mundo inteligível redundaria em cópia de cópia: bem feita quando assegurada a sua semelhança
[3] em relação ao original; e imperfeita, quando destituída de existência
moral, logo, simulacro da verdade [4] e simulação de cópia.
A idéia contida no trecho
da citação “numa narração(...) exprimir-se como se fosse esse homem e não
se envergonhará de tal imitação, sobretudo se imitar qualquer aspecto de
firmeza e de sabedoria" é a garantia de semelhança, marcada pelo elemento
comparativo “como se” , assegurando a existência moral pelas virtudes “firmeza e sabedoria” . Conclui-se que narrar
o que é bom e virtuoso seria a representação
mais fiel ao modelo original, uma
imitação que contribui para a elevação moral e espiritual do homem; enquanto imitar o que é degradante no mundo sensível é realizar uma má imitação (imitação da imitação) acorrentando o homem
ao estado primitivo das paixões.
A concepção aristotélica é menos
moralista na medida em que define imitação não como cópia das aparências, mas,
ao contrário , como reveladora das essências. Para Aristóteles (1964, p. 264) ,
imitar é uma forma de conhecer que, inclusive diferencia o homem dos outros
seres vivos, e não degradar-se como
concebe Platão.
Diz ele, na sua Poética:
(...) é possível imitar os mesmos objetos
nas mesmas situações, numa simples narrativa, ou pela introdução de um
terceiro, como faz Homero, ou insinuando-se a própria pessoa sem que intervenha
outra personagem, ou ainda apresentando a imitação com a ajuda de personagens
que vemos agirem e executarem elas próprias...Daí vem que alguns chamam a essas
obras dramas, porque fazem aparecer e agir as próprias personagens.
Ao citar Homero, denuncia preferir a
épica para imitação direta à narração das ações, invertendo assim, o juízo
platônico, além de estabelecer os
embriões dos tipos de focalização:
O
poeta deve falar o menos possível por conta própria, pois não é procedendo
assim que ele é imitador. Os outros poetas (...) ao longo do poema procedem
como atores em cena, imitam pouco e raramente; ao passo que Homero,
após curto preâmbulo, introduz imediatamente um homem, uma mulher ou
outra personagem, e não somente nenhuma carece de caráter, senão que de cada
uma são estudados os costumes. (ARISTÓTELES, op. Cit., p. 314.)
Focalização: teorias e conceitos críticos
É inquestionável que Platão e
Aristóteles lançaram os germens da polêmica discussão em torna da narrativa,
sua organização e função tanto no campo estético quanto histórico.
Arriscamos afirmar que nenhuma
teoria sobre ficção ou arte pode-se constituir sem os questionamentos desses
filósofos e que o caráter de universalidade da narrativa se deve a esses
expoentes do pensamento ocidental. A variedade dessa forma literária dificulta
a enumeração de todas as características, embora os traços comuns que a
classifica como tal gênero. Não nos cabe aqui refletir sobre todas elas, porém
elaborar um trabalho sistematizado sobre um dos seus elementos: ponto de vista
ou perspectiva narrativa ou ainda focalização.
Retomando o conceito de mimese como
imitação da realidade, entendemos que a
questão do ponto de vista não é apenas uma discussão acadêmica de cunho
literário, mas de caráter também filosófico e existencial. Analisando flashes do cotidiano, percebemos que
emitir juízo de valor, posicionar-se, julgar coisas e pessoas de uma
determinada perspectiva é uma atitude inerentemente humana. A narrativa literária, portanto, representa
ou imita, essencialmente as ações do homem no mundo, situado num tempo e num
espaço, interferindo no modus vivendi individual e social ao mesmo tempo em que é
por ele influenciado. Portanto, mimese como imitação não deve ser reduzida à
concepção de literatura como arte da mentira, como falsa representação da
realidade. Da mesma forma que não se confunde realidade com verdade, o que é
ficcional não é verdadeiro; porém, pode
ter um efeito verossimilhança se a imitação é bem feita, levando o leitor à
catarse [5].
Acreditamos que tais reflexões
serviram de pressupostos para a teoria do ponto de vista ou focalização, que
tentam explicar justamente as várias possibilidades de contar um fato, narrar
uma história. A questão central dos pontos de vista é: quem narra? Em que
pessoa: 1ª ou 3ª? de longe ou de perto? A noção de ponto de vista nos remete a
todos os problemas levantados pelas relações que o narrador mantém com o leitor
e que efeito pretende o autor conseguir com determinadas técnicas de
focalização, entendendo-a como processo pelo qual os eventos diegéticos são
representados.
Sabe-se que a disparidade de
vocabulário é um dos problemas que obstaculizam a elaboração de uma teoria
coerente e unificada, apresentado conceitos variados dependendo de cada país. É
importante considerar que subjacente a cada teoria e conceitos, está o contexto
histórico e ideológico tecendo regras e sentidos, legitimando o caráter científico dos trabalhos
já consagrados.
Assim, delimitando o nosso objeto de
estudo, foco narrativo, focalização ou ponto de vista são os três termos mais
usados. No Brasil, o habitual é Foco Narrativo, contudo optamos por
Focalização, já que o foco sugere a sensação de estaticidade, de um ponto
gerador fixo e o processo narrativo é dinâmico.
A focalização está centrada na veiculação, na movimentação de quantidade
e qualidade de informações. O papel do focalizador é assumir uma voz, postar-se
de uma perspectiva e informar:
-
quantidade
de informações: Onde? Quando? Quem? O quê?
-
qualidade
de informações: Como? Por quê? Para quê?
Como organizador das
idéias, ele as seleciona de acordo com a necessidade, relevância, qualidade e
importância. Mais uma vez, reafirmamos aqui a influência do contexto na
qualidade das informações.
A seguir, uma descrição
sumária das principais teorias e críticas sobre a Focalização.
Genette (1988, p.
249-255) estabelece três tipos de Focalização: externa, interna e onisciente,
considerando a modalidade de perspectivação narrativa:
1.
Focalizaçao externa
(...), a focalização externa é constituída pela
estrita representação das características superficiais e materialmente
observáveis de uma personagem, de um espaço ou de certas ações; sem outro
intuito que não seja esse de limitar a informação faculta da ao exterior dos
elementos diegéticos representados, a focalização externa decorre por vezes de um esforço do narrador, no sentido de se referir de modo objetivo e
desapaixonado aos eventos e personagens que integram a história. (...)
2.
Focalização interna
(...) a focalização interna corresponde à instituição
do ponto de vista de uma personagem inserida na ficção, o que normalmente
resulta na restrição dos elementos informativos a relatar, em função da
capacidade de conhecimento dessa personagem. Erigida em sujeito da focalização,
a personagem desempenha então uma função de focalizador (...), filtro
quantitiativo e qualitativo que rege a representação narrativa. O que está em causa não é, pois,
estritamente aquilo que a personagem vê , mas de um modo geral o que cabe
dentro do alcance do seu campo de
consciência, ou seja, o que é realmente
alcançado por outros sentidos, além da visão
, bem como o que já é conhecido previamente e o que objeto de reflexão
interiorizada.(...)
A focalização interna pode ser:
a) Fixa: a focalização centra-se numa só personagem
(habitualmente o protagonista);
b) Múltipla: a focalização centra-se, de forma momentânea
e episódica, não em uma personagem, mas
em um grupo de personagens da história, com capacidade de conhecimento.
Homogeneizadas para esse efeito. Por exemplo, O crime do Padre Amaro, “os empregados da administração”, “em
grupo, de olho arregalado, observavam os dois padres, que tinham parado à
esquina da igreja” (E, de Queirós, O crime do Padre Amaro, p. 204-5)
c) Variável: a circulação do núcleo focalizador do relato
passa por várias personagens.
3.
Focalização Onisciente
Por focalização onisciente entender-se-á, pois, toda a
representação narrativa em que o narrador faz uso de uma capacidade de
conhecimento praticamente ilimitada, podendo, por isso, facultar as informações
que entender pertinentes para o conhecimento minudente da história; colocado
numa posição de transcendência em relação ao universo diegético (a não
confundir, no entanto, com essa outra transcendência do autor real que concebeu
a história), o narrador comporta-se como
entidade demiurga, controlando e manipulando soberanamente os eventos
relatados, as personagens que os interpretam, o tempo em que se movem, os
cenários em que se situam etc.
Carlos Reis (1988) observa que, por
mais onisciente pretenda ser o narrador, sempre haverá algo de seletivo na
organização do relato, não implicando por isso uma representação absoluta e,
portanto, é questionável o conceito de onisciência com o narrador que “tudo
sabe”.
Analisando
ainda a perspectiva narrativa, Genette (1988) propõe a seguinte classificação
para o narrador:
a) Autodiegético: designa entidade responsável por uma situação ou atitude narrativa
específica: aquela em que o narrador relata suas próprias experiências como
personagem central dessa história.
b) Heterodiegético:
designa particular relação narrativa: aquela em que o narrador relata
uma história à qual é estranho, uma vez que não integra nem integrou, como
personagem, o universo diegético em questão.(...) se caracteriza pelo fato de
narrar uma história que conhece pela sua experiência de testemunha direta dessa
história.
c) Homodiegético: é a entidade que veicula informações
advindas da sua própria experiência diegética; quer isto dizer que, tendo
vivido a história como personagem, o narrador retirou daí as informações de que
carece para construir o seu relato, assim se distinguindo do narrador heterodiegético, na medida em que este último
não dispõe de um conhecimento direto. Por outro lado, embora funcionalmente se
assemelhe ao narrador autodiegético, o narrador homodiegético difere dele por
ter participado na história não como protagonista, mas como figura cujo
destaque pode ir da posição de simples testemunha imparcial a personagem
secundária estreitamente solidária
com a central.
Chiappini (1985), em estudo no qual
faz dialogar os autores que se seguem, considera que Jean Poullion, em O tempo no romance, procura adaptar uma visão fenomenológica do
mundo, inspirada em Sartre, a uma teoria das visões na narrativa, articulada à
questão de tempo. O referido autor, analisando a relação narrador-personagem,
estabelece três tipos de procedimento para o narrador:
1.
A visão com: o narrador limita-se ao saber da
própria personagem sobre si mesma e sobre os acontecimentos.
2. A visão por trás: o narrador domina todo um saber sobre a vida da
personagem e sobre o seu destino. Corresponde ao narrador onisciente.
3. A
visão de fora: se
renuncia até mesmo ao saber que a personagem tem, e o narrador limita-se a
descrever os acontecimentos, falando do exterior, sem que possamos nos adentrar
nos pensamentos, emoções, intenções ou interpretações das personagens.
Chiappini lembra ainda que Maurice – Jean Lefebve tenta
reler Jean Pouillon e reaproveitar as suas categorias da visão à luz de uma
distinção clara entre Diegese (ou história) e Discurso (narrativa).
Na sua concepção, a Visão por
detrás, típica do romance clássico, especialmente do século XIX, traduziria a
confiança burguesa na objetividade, na possibilidade de explicação racional e
exaustiva dos fatos psicológicos e sociais. Nesse tipo de romance, discurso e
diegese estão equilibrados. A visão com é típica de certa linha dos romances do
século XX, em 1ª pessoa, com o uso do monólogo interior e o fluxo de
consciência; e do romance epistolar do século
XVIII. Nesses romances há predominância da narração sobre a diegese.
Para Lefebvre, seria uma maneira de expressar a desconfiança do homem moderno
na sua capacidade de apreender um mundo caótico e fragmentado, em que não consegue se situar com clareza. O mesmo efeito se observa com o uso da visão de
fora, com forte influência do cinema, característica, portanto do século XX;
nesse caso, há o predomínio da diegese sobre a narrativa.
Toda visão é convenção e, portanto,
todo narrador finge. Alerta-nos ainda para os silêncio da narração, as elipses,
as indeterminações, os brancos, o que a narrativa omite, a começar por tudo
aquilo que ela faz supor ter acontecido antes de ela se iniciar.
Lefebvre não considera a distinção
entre narrador e autor implícito, já que o narrador, uma vez enunciado ou mesmo
pelo próprio ato de enunciação, acaba se transformando num ser ficcional, uma
das tantas máscaras do autor implícito sempre à espreita.
Para Rossum-Guyon (s.d. p.26), Henry James ( final do século XIX, início do
século XX), analisando as técnicas romanescas, duma perspectiva crítica , em função dos efeitos procurados pelo
artista, despreza o narrador onisciente,
que acusa de irresponsabilidade a respeito das exigências de sua arte, e
na relação com o leitor por “quebrar a ilusão”.
O critico inglês defende a idéia de
um ponto de vista controlado, interior ao romance, situado no espírito de uma
personagem. O efeito seria o de dar vida mental através da criação de uma
ilusão de realidade intensa, de preservar a coerência de uma obra que deve ser
auto-suficiente, de conferir a essa obra uma verdadeira espessura e
consistência. Eis , em síntese, algumas
de suas concepções:
-
defesa
de um ponto de vista único;
-
antipatia
pelas interferências que comentam e julgam, pelas digressões que desviam o
leitor da história;
-
o
modelo ideal seria a presença discreta
de um narrador, dando a impressão de que a história se conta a si própria;
-
o
narrador aloja-se na mente de uma
personagem fazendo o papel de refletor
de suas idéias;
-
o
narrador deve figurar como uma espécie de centro organizador da percepção que
tenha uma rica sensibilidade, uma inteligência penetrante, para expressão da
qual têm de ser trabalhados coerentemente os outros elementos da narrativa: da
linguagem ao ambiente das personagens;
-
desaparecimento
estratégico do narrador disfarçado numa
3ª pessoa que se confunde com a 1ª.
Posteriormente, Percy Lubbock, teórico do romance, discípulo de James,
retoma de seu mestre alguns princípios fundamentais para constituir a sua
teoria:
1. O livro bem feito é aquele que o assunto e a forma
coincidem;
2. A melhor forma é a que desenvolve pelo melhor as potencialidade do
assunto;
3. O romancista deve permanecer fiel
ao método que decidiu adotar;
4. A arte do romancista só começa
quando este concebe a narrativa como qualquer coisa que deve ser “mostrada”,
que deve ser oferecida ao leitor e impor-se por si mesma (num romance não há
autoridade exterior ao próprio livro).
A partir desses pressupostos,
estabelece o ponto de vista como o expediente fundamental na arte. Para ele, o
ponto de vista, a relação do narrador com a história que conta domina todo o
problema do método do romance. Algumas
de suas considerações:
-
só
é arte da ficção as narrativas que não cometem esta indiscrição: interferência
de um narrador intruso;
-
a
interferência do narrador se enquadra na “arte da narrativa”;
-
a
distinção entre narrar (telling) e mostrar (showing) tem a ver com a
intromissão ou não do narrador: quanto mais intervenção, mais o narrador conta
e menos mostra.
Utilizando-se do método indutivo,
ou seja, parte da leitura de obras para apreender suas características. Como
por exemplo, a distinção entre uma apresentação cênica de uma apresentação
panorâmica (sumário) ou apresentação dramática:
1. Cena: os acontecimentos são mostrados
ao leitor, sem a mediação do narrador. O uso da cena provoca um efeito de
restrição da ação, apresentando-a num tempo presente e próximo do leitor.
2. Panorama
(Sumário): o
narrador conta e resume os acontecimentos, condensa-os, passando por cima dos
detalhes e, às vezes sumariando em poucas páginas um longo tempo da história. O
sumário amplifica a ação no tempo e no espaço, distanciando o leitor do
narrado.
Quanto
as formas de apresentação, faz a seguinte distinção entre o tratamento dado:
1. Tratamento
dramático: quando
apresentação se faz pela cena; predominância do discurso direto;
2. Tratamento
Pictórico: quando
ele é predominantemente feito pelo sumário; prevalece o discurso indireto;
3. Tratamento
pictórico-dramático:
combinação de cena e sumário – a “pintura” dos acontecimentos se reflete na
mente de uma personagem, através da predominância do estilo
indireto-livre.
Lubbock privilegia os tipos de
pontos de vista em que o narrador é dramatizado e integrado na história. Como
já foi explicitado, o romance basta a si mesmo e o leitor não tem de fazer
nenhum apelo a nenhuma autoridade exterior (exemplo: o narrador de 1ª pessoa).
O efeito de “objetividade” acontece quando tudo é “dramatizado” sem uma
influência ou “subjetividade” exterior contando a história.
E.M. Forster discute a afirmação de Lubbock de que o
expediente fundamental na arte seja o ponto de vista. Combate a condenação ao
narrador que interfere na narração ou às mudanças do ponto de vista, num mesmo
romance: Somos mais
estúpidos em algumas ocasiões que noutras:; podemos penetrar na mente das
pessoas, às vezes, mas não sempre, porque o nosso próprio intelecto cansa: e
esta descontinuidade empresta, no decorrer do tempo, variedade e colorido às
nossas experiências.
Forster afirma que a mudança de
ponto de vista é perfeitamente aceitável dependendo do resultado que o
romancista obtenha.
Wayne Booth, desloca a questão do
ponto de vista de uma abordagem crítica e normativa para a abordagem retórica,
para a análise das diferentes vozes do autor que se fazem ouvir através de
diferentes técnicas. A preocupação aqui é entender os recursos utilizados e não
valorizados. Neste aspecto, Booth opõe-se à tradição, considerando a retórica um “conjunto das técnicas postas em ação pelo
romancista para comunicar com os seus leitores, isto é, para impor-lhes o seu
modo fictício”. Nesta concepção, o fim
primeiro de um romance não é tanto
produzir ilusão quanto transmitir valores e neste aspecto, a retórica
forneceria os meios pelos quais o autor consegue controlar seu leitor de
modo a fazer-lhe partilhar desse sistema
de valores que se pretende partilhar.
Portanto, mais importante que o
processo utilizado, é o narrador que o utiliza, pois é através das vozes,
expressas pelos diferentes modos de narração e apresentação que o autor chega a
se comunicar.
Considerando a obra em sua
materialidade lingüística, Booth não confunde ficção e realidade, personagens e
pessoas, autor real e autor representado num mundo de palavras. Cria o termo autor implícito e põe fim à confusão
entre o narrador doador do livro (organizador da narrativa na sua totalidade) e
o narrador que, no interior do romance, parece contar (ou perceber) os
acontecimentos. O que importa para o crítico é reintroduzir o autor (ainda que
implícito e sob a forma de um “eu segundo”) na obra: O autor implícito é uma
imagem do autor real criada pela escrita, e é ele que comanda os movimentos do
narrador, das personagens, dos acontecimentos narrados, do tempo cronológico e
psicológico, do espaço e da linguagem em que se narram indiretamente os fatos
ou em que se expressam diretamente as personagens envolvidas na história.
O pensamento de Booth é subordinar a
visão do narrador uma “visão mais extensa
e dominadora” : a do autor implícito; e só a relação entre os tipos de Foco com
o autor implícito pode levar-nos a visão de mundo que transpira da obra, aos
valores que ela veicula, à sua ideologia.
Numa tentativa de sintetizar as
teorias e críticas já explicitadas, Norman Friedman também estabelece a sua
tipologia do narrador, baseado em Lubbock.
Friedman concebe que o fim primeiro
da ficção é produzir a ilusão da realidade. A questão da escolha do ponto de
vista está ligada à do tema tratado e do “tipo de ilusão” que se quer produzir.
As intrusões do autor, por exemplo, permitem a ironia e a generalização
filosófica , recurso muito utilizado em Machado de Assis. O “eu” protagonista “
permite mostrar um espírito em vias de descoberta.
Parte das seguintes interrogações
para analisar seu objeto de estudo:
1. Quem conta a história? (1ª ou 3ª
pessoa? Uma personagem em 1ª pessoa? Não há ninguém narrando?);
2. De que posição ou ângulo em relação
à História? (Por cima? Na Periferia? Centro? Frente? Mudando?)
3. Que canais de informação o narrador
usa para comunicar a história ao leitor? (palavras? pensamentos? percepções?
sentimentos? do autor? da personagem? ações? falas do autor? da personagem? ou
uma combinação de tudo isso?)
4. A que distância ele coloca o leitor
da história? (próximo? distante? mudando?)
As possíveis respostas para essas
perguntas fundamentaram a elaboração da teoria de Friedman, além da distinção
entre cena e sumário, baseada em Lubbock
A
diferença principal entre narrativa e cena está de acordo com o modelo geral
particular: sumário narrativo é um relato generalizado ou a exposição de uma série de eventos
abrangendo um certo período de tempo e uma variedade de locais, e parece ser o
modo normal, simples, de narrar; a cena imediata emerge assim que os detalhes
específicos, sucessivos e contínuos de tempo, lugar, ação, personagem e
diálogo, começam a aparecer. Não apenas o diálogo mas detalhes concretos dentro
de uma estrutura específica de tempo-lugar são os sine qua non da cena. (ROSSUM-GUYON,
s.d. p. 119-20)
Situados os elementos essenciais da
tipologia friedmniana, passamos à exposição das linhas básicas de cada uma
delas seguida de um exemplo para ilustração do conceito. Por ser um trabalho
essencialmente descritivo, não nos aprofundaremos em análise, detendo-nos, no
momento, ao estudo conceitual da focalização.
1.
Onisciência do autor-editor (
Editorial omnisciente ou autor onisciente intruso):
Caracteriza-se pelas intrusões do
autor que podem estar ou não em relação com a história; o ponto de vista do
autor é ilimitado, mas mal controlado. Há uma tendência ao sumário, embora
possa também aparecer cena. Esse tipo de narrador tem a liberdade de narrar à
vontade, de colocar-se acima, ou, como quer, J. Pouillon, por trás, adotando um ponto de vista divino, como diria Sartre,
para além dos limites de tempo e espaço. Pode também narrar da periferia dos
acontecimentos, ou do centro deles , ou ainda limitar-se e narrar como se
estivesse de fora, ou de frente, podendo ainda, mudar e adotar sucessivamente
várias posições. Como canais de informação, predominam suas próprias palavras,
pensamentos e percepções. Seu traço característico é a intrusão, ou seja, seus comentários sobre a vida, os costumes,
os caracteres, a moral, que podem ou não estar entrosados. Eis um exemplo em
Machado de Assis:
Não, senhora minha, ainda não acabou este dia tão
comprido; não sabemos o que se passou entre Sofia e o Palha, depois que todos
foram embora. Pode se até que acheis aqui melhor sabor que no caso do
enforcado.
Tende paciência; é vir agora outra vez a Santa Tereza.
A sala está ainda alumiada, mas por um bico de gás; apagaram-se os outros, e ia
apagar-se o último, quando o Palha mandou que o criado esperasse um pouco lá
dentro. A mulher ia sair, o marido deteve-a, ela estremeceu. (Assis, Machado
de. Quincas Borba. Rio de Janeiro/Paris, Garnier, (1923).p.85).
2.
Onisciência neutra (Neutral
omniscience):
O autor não intervém diretamente,
fala de maneira impessoal na 3ª pessoa. Contudo, os acontecimentos são
apresentados e analisados tais como o autor os vê e não como os vê a personagem
.Também tende ao sumário embora aí seja bastante freqüente o uso da cena para
os momentos de diálogo e ação, enquanto,
freqüentemente, a caracterização das personagens é feita pelo narrador que as
descreve e explica para o leitor. As
outras características referentes às outras questões (ângulo, distância,
canais) são as mesmas do autor onisciente intruso, do qual este se distingue
apenas pela ausência de instruções e comentários gerais ou mesmo sobre o
comportamento das personagens, embora a sua presença, interpondo-se entre
leitor e história, seja sempre muito clara. Observa-se em Flaubert:
Os
peitilhos das camisas abaulavam-se como couraças! Todo mundo estava escanhoado;
e mesmo alguns, que se levantaram antes do amanhecer, não tendo boa vista para
se barbear, vinham com grandes arranhões diagonais por baixo do nariz e nos
queixos pedaços de pele arrancada, do
tamanho de moedas de 3 francos, os quais, inflamados pelo ar fresco, durante o
caminho, marchetavam de nódoas rosadas aquelas caras brancas e alegres. (Flaubert,
Gustave. Madame Bovary. São Paulo, Abril Cultural, 1970.p.27)
3.
“Eu” como testemunha (“I” as
witness):
Este é o ponto de vista dos
romances na primeira pessoa nos quais o narrador é diferente da personagem. O
leitor que deve a sua visão dos acontecimentos
ao narrador, vê a história a partir de uma periferia móvel. Não é o
protagonista; se trata de uma personagem periférica.. Neste caso, o ângulo de
visão é mais limitado. Como personagem secundária, ele narra da periferia dos
acontecimentos, não consegue saber o que se passa na cabeça dos outros, apenas
pode inferir, lança hipóteses, servindo-se também de informações, de coisas que
viu ou ouviu, e, até mesmo, de cartas ou outros documentos secretos que tenham
ido cair em suas mãos. Quanto à distância em que o leitor é colocado, pode ser
próxima ou remota, ou ambas, porque esse narrador tanto sintetiza, quanto
apresenta em cena. Um
exemplo em Machado de Assis:
Enfim, casados. Venho agora da Prainha, aonde os fui
embarcar para Petrópolis. O casamento foi ao meio-dia em ponto, na matriz da
Glória, poucas pessoas, muita comoção. Fidélia vestia escuro e afogado, as
mangas presas nos pulsos por botões de granada, e o gesto grave. D. Carmo,
austeramente posta, é verdade, ia cheia de riso, e o marido também. Tristão
estava radiante. Ao subir a escadaria, troquei um olhar com a mana Rita, e creio que sorrimos;
não sei se nela, mas em mim era a lembrança daquele cemitério, e do que lhe
ouvi sobre a viúva Noronha. Aí vínhamos nós com ela e outras núpcias. Tal era a
vontade do Destino. Chamo-lhe assim, para dar um nome a que a leitura antiga me
acostumou e francamente gosto dele. Tem um ar fixo e definitivo. Ao cabo, rima
com divino, e poupa-me cogitações filosóficas. (Assis, Machado de. Memorial de
Aires. In: Obras Completas. Rio de Janeiro, Aguillar, 1971.v. 1, p.1194)
4.
O eu como protagonista (Narrador-protagonista ou “I” as protagonist):
O narrador é igualmente a personagem principal. Aqui, desaparece a
onisciência. O narrador, personagem central, não tem acesso ao estado mental
das demais personagens. Narra de um centro fixo, limitado quase exclusivamente
às suas percepções, pensamentos e sentimentos. Como no caso anterior, ele pode
servir-se da cena ou do sumário, e, assim, a distância entre história e leitor
pode ser próxima, distante, ou, ainda, mutável. Observe o exemplo que Guimarães
Rosa nos oferece:
Sapateei, então me assuntando de que nem
gota de nada sucedia, e a hora em vão passava. Então, ele não queria existir?
Existisse. Viesse! Chegasse, para o desenlace desse passo. Digo direi, de
verdade: eu estava bêbado de meu. Ah, esta vida, às não-vezes, é terrível
bonita, horrorosamente, esta vida é grande. Remordi o ar:
- “Lúcifer! Lúcifer!...” –aí eu bramei,
desengulindo. (...) Voz minha se estragasse, em mim tudo era cordas e cobras. E
foi aí. Foi. Ele não existe, e não apareceu nem respondeu – que é um falso
imaginado. Mas eu supri que ele tinha me
ouvido. Me ouviu, a conforme a ciência da noite e o ouvir de espaços, que
medeia. Como que adquirisse minhas palavras todas; fechou o arrocho do assunto.
Ao que eu recebi de volta um adejo, um gozo de agarro, daí umas tranqüilidades
– de pancada. Lembrei dum rio que viesse adentro a casa de meu pai. Vi asas,
arquei o puxo do poder meu, naquele átimo. Aí podia ser mais? A peta, eu querer
saldar: que isso não é falável. As coisas assim a gente mesmo não pega nem
abarca. Cabem ; é no brilho da noite.
Aragem do sagrado. Absolutas estrelas!” (Rosa, Guimarães. Grande sertão:
veredas. Rio de Janeiro, José Olympio, 1967. P.
319)
5. Onisciência
seletiva múltipla (multisseletiva ou
Multiple selective ominiscience):
A história é apresentada
diretamente, tal qual é vivida pelas personagens, isto é, tal qual se reflete
nos seus espíritos. O autor dá, aqui, os pensamentos, percepções e sentimentos
tais como se sucedem nos espíritos das suas personagens, enquanto na
onisciência neutra, ele os resume ou os analise depois de terem ocorrido. Há
uma predomínio quase absoluto da cena. Difere da onisciência neutra porque
agora o autor traduz os pensamentos, percepções e sentimentos, filtrados pela
mente das personagens, detalhadamente,
enquanto o narrador onisciente os resume conforme o autor os vê e não as
personagens. O discurso predominante é o indireto livre, embora Friedman se
refira às alterações de sintaxe o
deslize do indireto para o indireto livre, como se percebe em Vidas Secas de
Graciliano Ramos:
Sinhá Vitória
Pensou de novo na cama de varas e mentalmente
xingou Fabiano. Dormiam naquilo, tinham-se acostumado, mas seria mais agradável
dormirem numa cama de lastro de couro. Como outras pessoas. Fazia mais de um
ano que falava nisso ao marido. Fabiano a princípio concordara com ela,
mastigara cálculos, tudo errado. Tanto para o couro, tanto para a armação. Bem.
Poderiam adquirir o móvel necessário economizando na roupa e no querosene.
Sinhá Vitória respondera que isso era impossível, porque eles vestiam mal, as crianças andavam nuas, e recolhiam-se
todos ao anoitecer. Para bem dizer, não se acendiam candeeiros na casa. (Ramos,
Graciliano. Vidas secas. São Paulo, Record, 1980. P. 40.)
Fabiano
Sinhá Vitória desejava possuir uma cama igual a de seu
Tomás da bolandeira. Doidice. Não dizia nada para não contrariá-las, mas sabia
que era doidice. Cambembes podiam ter luxo? E estavam ali de passagem. Qualquer
dia o patrão os botaria fora, e eles ganhariam o mundo, sem rumo, nem teriam
meio de conduzir os cacarecos. Viviam de trouxa arrumada, dormiriam bem debaixo
de um pau. (...) (Ramos, op. cit., p.23)
6.
Onisciência seletiva (Selective
omniscience):
O autor limita-se ao espírito de
uma só personagem. Em vez de uma composição de pontos de vista diferentes, (mas todos limitados) como na onisciência
multisseletiva, o ponto de vista é fixado e centrado. O ângulo central, e os
canais são limitados aos sentimentos, pensamentos e percepções da personagem
central, sendo mostrados diretamente. Exemplo clássico em Clarice Lispector:
Por
que ela estava tão ardente e leve, como o ar que vem do fogão que se destampa?
O
dia tinha sido igual aos outros e
talvez daí viesse o acúmulo de vida. Acordara cheia de luz do dia, invadida.
Ainda na cama, pensara em areia, mar, beber água do mar na casa da tia morta,
em sentir, sobretudo, sentir. Esperou alguns segundos sobre a cama e como nada
acontecesse viveu um dia comum. Ainda não se libertara do desejo – poder –
milagre, desde pequena. A fórmula se realizava tantas vezes: sentir a coisa sem
possuí-la. (...) Quis o mar e sentiu os lençóis da cama. O dia prosseguiu e
deixou-a atrás, sozinha. (Lispector, Clarice. Perto do coração selvagem. Rio de
Janeiro, José Olympio, 1974.
P. 19)
7.
O modo dramático (The dramatic mode):
São apresentados apenas os atos e as
palavras dos protagonistas, e não seus pensamentos ou sentimentos. Estes
deverão ser inferidos pelo leitor a partir dos gestos e das palavras. O ângulo
é frontal e fixo, e a distância entre a História e o leitor, pequena, já que o
texto se faz por uma sucessão de cenas. Eis o
recurso utilizado por Hemingway:
São onze horas da noite, e três soldados romanos estão
numa taverna. Há barris nas paredes. Por trás do balcão de madeira está um
hebreu vendedor de vinhos. Os três soldados romanos estão um pouco tocados
1º soldado romano – Já experimentou o tinto?
2º soldado romano –
Não, não experimentei.
1º soldado romano -
É melhor experimentar.
2º soldado romano -
Está bem, George, vamos tomar uma rodada do tinto.
Vendedor judeu – Aqui está, cavalheiros. Vão gostar.
(Coloca na mesa um jarro de barro que encheu numa das
barricas.) É um vinhozinho decente.
1º soldado – Tome um pouco também. (Volta-se para o
terceiro soldado romano que está encostado num barril. ) Que é que há com você?
3º soldado romano – Estou com dor de barriga.
2º soldado – Você andou bebendo água.
1º soldado – Experimente um pouco do tinto.
3º soldado – Não posso beber essa droga. Azeda-me a
barriga
1º soldado – Você está aqui há muito tempo.
3º soldado – Bolas, pensa que não sei?
(Hemingway. Contos de Hemingway. 3. Ed. Rio de
Janeiro, Civilizaçao Brasileira, 1976. p. 107)
8. A Câmera (The camera)
Tem o objetivo de retransmitir uma “fatia de vida” tal
como aconteceu sem seleção ou organização.
Esta categoria serve àquelas narrativas que tentam transmitir flashes da realidade como se apanhados
por uma câmera, arbitrária e mecanicamente. A neutralidade e “exclusão” do
autor é questionável, já que “por detrás” da câmera há o sujeito da enunciação
que seleciona, combina, pela montagem, as imagens a mostrar.. Neste caso, a
subjetividade é apenas disfarçada pelo efeito de neutralidade, como se observa em Ricardo Ramos:
Chinelos, vaso, descarga. Pia, sabonete. Água. Escova,
creme dental, água, espuma, creme de barbear, pincel, espuma, gilete, água,
cortina, sabonete, água fria, água quente, toalha. Creme para cabelo, pente. Cueca, camisa, abotoaduras, calça,
meias, sapatos, gravata, paletó. Carteira, níqueis, jornais, documentos,
caneta, chaves,, relógio, maço de cigarros, caixa de fósforos. Jornal. Mesa, cadeiras, xícara e pires, prato, bule,
talheres, guardanapo. (...) (Ramos, Ricardo. Circuito Fechado. In: Livro 29.
Col. Objetivo. São Paulo: CERED. p. 105).
A
classificação deste tipo de focalização coincide com o modelo de comunicação
que veicula no mundo contemporâneo. Para uma sociedade que não tem tempo a
perder, que se alimenta de flashes do
cotidiano dada a velocidade com que as
informações se modificam e as transformações acontecem, o Câmera caracteriza
muito bem o olhar do homem hodierno em relação ao seu universo, globalizante e
globalizado. Na tentativa de participar de seu tempo, de integrar-se a sociedade moderna busca reconstituir os inúmeros
recortes de uma realidade que vertiginosamente lhe escapa. É a linguagem do
cinema, da televisão, da literatura na modernidade que, longe de ser neutra,
induz à concepção de ser humano tão dividido e recortado quanto as imagens que, embora simultâneas, constitui um quebra
cabeças de difícil solução
Considerações Finais: Ponto de vista
sobre os pontos de vista
Quando uma época atravessa a agonia de uma transição
profunda e as luzes se apagam, e um
olhar sob refletores nos convida a enxergar além do que podemos ver.
Em cena, “eus testemunhas” de um
tempo, cujos dramas cotidianos violentam os mais tenros sonhos. Gritos morrem
na garganta, lábios ensaiam palavras, gestos traem palavras, sorrisos rascunham
esperanças, lágrimas estáticas sem tempo de chorar, balbucios, frases ausentes... seres sem defesa. Sob as máscaras, histórias
inenarráveis esperam ser contadas. O que é feito da arte literária nesses
tempos de aceleradas transformações? É possível ver o belo no espaço da dor?
São perguntas que aguardam a travessia para se transformarem em respostas.
O que é possível apreender em um
estudo sobre focalização é que nossos juízos de valor estão em questão. Nossos
pontos de vista sobre coisas e pessoas estão fragilizados. Em que perspectiva nos colocamos diante desse
homem, matéria prima do homo fictus
de Forster, que nasce, vive e é capaz de morrer de fome, de sono, de sonho?
Em que pese a nossa onisciência
neutra, passiva, diante destes dramas existenciais, enquanto narradores da
nossa história funcionamos quase sempre como refletores com deficiência de
luz. Forster buscou no espaço da vida o
perfil do seu homo fictus, Friedman forjou do comportamento humano as
possibilidades de perspectiva diante dos acontecimentos, Booth tratou das vozes
veladas e desveladas marcadas nos tipos de focalização, Platão e Aristóteles lançam
as bases da arte enquanto representação de um mundo de essências e aparências,
Barthes vai afirmar que a narrativa começa com a própria humanidade. Em
síntese, a arte literária se estrutura, pelo esforço criador, sob a bases das
percepções sensoriais e abstratas da relação do homem com o mundo. Se o seu campo de visão é
recortado ou universal, se sua perspectiva
é interna ou externa, neutra ou intrusa, participante ou testemunha, se
é onisciente ou funciona como uma câmera que apenas registra os flashes, o que
verdadeiramente importa é que a
sensibilidade do artista, aliada a sua competência, o coloca diante de um
inesgotável material de representação.
Não pretendemos encerrar aqui um
assunto tão rico quanto a criatividade humana.
Concordamos com Barthes, já fartamente citado e referendado, que a
narrativa esta aí, como a vida e reafirmamos que, na tessitura do enredo de uma
história que não pode ser esquecida, o próprio homem.
BIBLIOGRAFIA:
ABDALA
JUNIOR, Benjamin. Introdução à análise da narrativa. São Paulo: Scipione, 1995.
ARISTÓTELES.
Arte Poética. In: Arte retórica. Arte
Poética. São Paulo: Difusão Européia
do Livro, 1964. P. 264
BARTHES,
Roland. Introdução à análise estrutural da narrativa. In: ROSSUM-GUYON, F. Van,
HAMON, P, e SALLENAVE, D. Categorias da
narrativa. Lisboa: Vega Universidade, S.d.
BELLEI,
Sérgio Luiz Prado. Introdução ao Estudo
da Narrativa. Minas Gerais: Universidade Federal de Viçosa.
D’ONOFRIO,
Salvatore. Elementos estruturais da narrativa. In: O texto literário: teoria e aplicação.
São Paulo: Duas Cidades, 1983. p.27 e 28.
FORSTER,
E.M. Aspectos do romance. 2. ed. Porto Alegre: Globo, 1974. p. 43
GENETTE, Gerard. Introdução in Discurso da Narrativa. Lisboa: Col. Veja Universidade.
LEITE,
Lígia Chiappini Moraes. O Foco Narrativo.
2. ed. São Paulo: Ática, 1983
PESSANHA,
José Américo Motta. Sofista. In: Platão. Diálogos. 2. ed. São Paulo:
Abril Cultural, 1983
REIS,
Carlos; LOPES Ana Cristina M. Dicionário
de Teoria da Narrativa. São Paulo: Ática. 1988. p. 249-255.
ROSSUM-GUYON,
Françoise V. Pontos de Vista e Perspectiva narrativa. In: Categorias da Narrativa. Lisboa: Veja Universidade, S.d.
NOTAS:
[1]
Representação segundo a concepção de Aristóteles como reveladora de um mundo de
essências, não como imitação deformadora do original, conforme a concepção
moralista de Platão. .
[2] BARTHES, Roland. Introdução à Análise Estrutural da Narrativa. In ROSSUM GUYON, F.
Van, HAMON. P. e SALLENAVE, D. Categorias
da narrativa. Lisboa: Veja universidade, S.d..
[3] Para Platão, semelhança é a essência
interior, “ alma “ do objeto.
[4]
Simulacro da verdade: imagem destituída de semelhança(de essência), simulação
de cópia, construída a partir da dessemelhança, uma espécie de imagem
“esfumaçada” da segunda cópia.
[5] Catarse: Teoria da Literatura como efeito,
concebida por Aristóteles. Essa teoria transforma a literatura em uma função de
efeito psicológico a ser atingido.
DADOS SOBRE A AUTORA:
Célia Firmino é mestre em Estudos Literários
(UFMS); Especialista em
Língua Portuguesa (UFMS); Especialista em Gestão Escolar(UNICAMP); Professora da Rede Pública do Estado de São Paulo;
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