segunda-feira, 18 de junho de 2018


A Jornada do Herói Entre a Paideia Homérica e a Sofística


            Estudar a cultura grega significa  empreender a jornada do prisioneiro liberto da caverna[1] escura da  própria ignorância e limitações pela força da luz própria que emana dessa civilização. O esplendor dessa luz, em princípio, obscurece a visão habituada às sombras, mas,  pela insistência em buscá-la, desvela-nos um universo de descobertas.
            Assim, transitar da doxa[2] para episteme[3], como propõe o mito platônico, por meio de um processo educativo implica um atencioso trabalho de leitura e reflexão sobre as múltiplas possibilidades de abordagem que, qual um caleidoscópio, essa cultural se apresenta.
            Por essa razão, ao empreender essa primeira jornada como um exercício do olhar, buscamos por uma tímida fresta a perspectiva ainda nebulosa:  tentar compreender as relações entre a democracia grega e o trabalho dos sofistas, quais princípios defendiam, finalizando com uma breve comparação entre as paideias homérica e sofística, a fim de observar se, a exemplo da primeira, a paidéia sofísitca experimenta, de alguma forma, a força de agon.
            Grécia: berço da civilização ocidental. Uma saga que somam séculos de história. Do pensamento mítico ao surgimento e desenvolvimento da filosofia, bem como os sistemas organizadores do caos social estão imbricados, como um amálgama, história e sociedade.
            Eis um dos desafios com o qual o estudioso iniciante se depara: organizar de forma coerente o universo sociopolítico grego. Qualquer recorte filosófico que se faça para aprofundamento, não é possível compreendê-lo sem relacioná-lo a um contexto complexo construído em vertiginosa dinamicidade.
      Assim, não se pode compreender Democracia desvinculada do contexto político
que, por sua vez, responde pelo surgimento da filosofia. O cenário dessas reflexões iniciais remete-nos à história da formação da civilização helênica.
             Sabe-se que a Grécia não era, em sua origem, um país politicamente organizado. Os pequenos países, ou cidades-Estado, eram ligados por aspectos culturais comuns valorizados e cultivados: o idioma e os poemas e os mitos de Homero e Hesíodo que se constituíram em símbolos dessa rica civilização, recitados e perpetuados por aedos e rapsodos.
      Observa-se que organização sociocultural das cidades-Estado favoreceu o florescimento de uma sociedade livre do jugo absolutista que marcou algumas grandes civilizações como o Egito, a Pérsia etc.  Portanto, a liberdade de pensamento, o amor ao saber e ao conhecimento foram as condições primordiais para o nascimento da filosofia e da democracia.
      Para os gregos, a Democracia se assenta na ideia da supremacia da lei, ao contrário da monarquia que a tudo controla  e determina sem a possibilidade de questionamentos, própria dos grandes impérios. A liberdade de pensamento que gerou o nascimento da filosofia só foi possível no regime democrático que floresceu nas cidades-Estado, formando a antiga civilização grega.
      Outros fatores e condições sociopolíticas foram contributos para a mudança da  mentalidade mítica para o pensamento racional (CHAUÍ, apud SELL, p. 27), tais como: as viagens marítimas, a invenção do calendário, o surgimento da vida urbana, a invenção da escrita alfabética. Além disso e, sobretudo, a invenção da política favoreceu a transição do pensamento mítico para o pensamento filosófico.  O contexto de mudanças já não mais possibilitava ao homem compreender a vida pela mentalidade mítica veiculada pelos poemas homéricos. Hesíodo (séc. VIII a.C.) já anunciava algumas inovações importantes que aproximam o homem de sua realidade material:  “A busca da excelência (aretè) através do esforço pessoal é a única forma de que o ser humano agora dispõe para fugir aos infortúnios da vida. ” (SELL, 2013, p.26)
Cabe ao homem organizar seu “cosmos” social. Pelo esforço, pelo trabalho, pelo exercício do pensamento racional, ele deve gerir as transformações que se operam. Dentre elas, o surgimento da  política  trazendo como princípios a valorização do homem, do pensamento, da discussão, da  persuasão e da decisão racional. Tais elementos se constituem a base para a palavra filosófica.  (SELL, 2013, p. 28)
      Dessa constatação pragmática, as condições para a organização democrática das póleis estavam sedimentadas. Sem a intervenção dos deuses, o homem se percebe como agente transformador de sua própria condição. Descobre suas potencialidades produtivas, modificando as relações com o meio em que vive.  Diante do novo contexto, os séculos (IX ao VI a. C) de especulações filosóficas em torno da origem da natureza sob cujas leis o homem está submetido cedem lugar a uma nova ordem de raciocínio, na qual  ele passa a ser o centro e a medida de todas as coisas, como propõem os sofistas. Em função desse novo pensamento e das novas necessidades, o ambiente físico e social são reorganizados, conforme esclarece Chauí sobre a reforma de Clístenes, no século VI a.C. (apud SELL, 2013, p. 80):

[...]. Estabelece um espaço circular onde se reúnem a Boulé (que cuida das questões políticas  cotidianas) e a Ekklesia, a Assembleia Geral de todos os cidadãos atenienses, na qual se discutem e decidem-se publicamente os grandes assuntos da cidade, sobretudo as decisões de guerra e paz. Está inventada a democracia (demos, os cidadãos; kratos, o poder: o poder do demos ou dos cidadãos.)

      Como decorrência dessa organização política, a isegoria e a isonomia[4] se constituíram nos princípios básicos para o exercício da democracia grega que garantia ao cidadão ateniense igualdades, tanto de direitos quanto de uso da palavra ou discurso.
      Para uma sociedade de tradição mítica em que a retórica, o discurso era, até então, habilidade dos filósofos, as necessidades atuais exigiam que os demos aprendessem a manejar a palavra como condição sine qua non para o exercício do poder.
      Atenas, agora atraente sob todos os aspectos: cultural, artístico, econômico, esplendendo novidades,  lançava as bases para o Humanismo e Relativismo dos sofistas[5]  que encontravam na polis um amplo espaço para ensinar a sua arte:

   “Os Sofistas se aproveitaram enormemente do ambiente político ateniense do século V a.C, haja vista que, na Atenas de então, depois das reformas políticas instituídas por Péricles, as instituições políticas tinham uma característica eminentemente democrática, de forma que, teoricamente, todos os cidadãos tinham a possibilidade de falar nas assembleias públicas, fato esse bastante aproveitado pelo senso de oportunismo dos Sofistas”  (Luiz Roberto Alves dos Santos – UFS – Cadernos de Filosofia.)

      Mestres da retórica, esses filósofos trouxeram importantes contribuições para o desenvolvimento do pensamento racional. Ao proporem que o homem é o centro de tudo, base do princípio Humanista,  aprofundaram o hiato entre a realidade social e os deuses míticos de Homero. As leis que regem a sociedade dependem, essencialmente, da capacidade humana de geri-las e  harmonizá-las.
      O pensamento de Protágoras de Abdera (apud SELL, 1990, p.85) “O homem é a medida de todas as coisas, das que são, enquanto são e das que não são, enquanto não são” reflete a valorização do homem enquanto ser capaz de atribuir sentido para a realidade na qual está inserido. Na medida em que se percebe capaz de interpretar a realidade, as noções de doxa (opinião) e de logos[6] (o que pode ser provado ou defendido) são ressignificadas a serviço do desenvolvimento da linguagem que, no contexto sofista, é o  instrumento capaz de fazer o homem se relacionar com a realidade e com outros seres humanos.
      Para os sofistas, a democracia deve ser exercida por meio da erística, ou seja, do debate, da disputa verbal. Somente a  linguagem é capaz de instrumentalizar os adversários para vencê-la. Por essa razão, a democracia ateniense oferece a esses mestres da retórica  os fundamentos para que seus princípios sejam tão relevantes para a formação do homem grego.
      Ao valorizar a linguagem e o discurso como forma de vencer o adversário na disputa e, por esse meio, ganhar relevância e poder, os sofistas criticam as noções de força e de virtude (arethè)[7] simbolizadas  por Homero nos heróis míticos e atribuída aos nobres, os aristoi, como honra e dever recebidos, via de regra, como descendência dos antepassados. Nesse sentido, Jaeger (apud SILVA, 2010) afirma que:

O conceito do ideal aristocrático de formação dos gregos até o século V a.C. se fundamenta no conceito de arete, que é retratada nos poemas homéricos como um atributo da nobreza, como um conjunto de qualidades espirituais, morais e físicas desejáveis em um homem. A arete é o heroísmo, no seu sentido de ação moral e intimamente ligada à força, contendo em si a bravura, a coragem e a honra. Na arete se baseava a educação da nobreza, cuja "força educadora" reside no "fato de despertar o sentimento do dever em face do ideal, que deste modo o indivíduo tem sempre diante dos olhos."

      Em Hesíodo, estas noções são modificadas. De acordo com Sell (2011, p.26), as noções de virtude assumem uma concepção mais humanista, ao considerar que a única forma que o ser humano dispõe para fugir aos infortúnios da vida é buscar a excelência (aretè) pelo esforço pessoal. Ao colocar o homem como protagonista de si mesmo na busca da virtude, ao nivelar a espécie humana e distanciar os deuses, Hesíodo sedimenta as bases ideológicas para a democracia.  
      Consequência desse processo, o novo contexto sociopolítico de Atenas faz com que os sofistas desloquem o foco homérico do agon que privilegiava a luta, a disputa,  o embate para o desenvolvimento da habilidade discursiva. Para Santos:

A eloquência desenvolvida pelos Sofistas tinha sua justificativa mais importante na possibilidade do ensinamento da areté enquanto virtude política, já que era nesse tipo de virtude que se enquadrava o intuito da sofística (JAEGER, 1995), porquanto os sofistas afirmavam poder ensinar a excelência no discurso, com o cuidado de que essa excelência estivesse sempre voltada para a capacidade de governar os homens (PLATÃO, Menon, 73d). Nesse sentido,  a virtude política objetivada pelos sofistas tinha o seu fim no bem da sociedade, independente dos meios utilizados para alcançar esse bem.” (SANTOS)

      A educação é o meio pelo qual os valores são ensinados e preservados. Ressalte-se que os sofistas eram mestres, profissionais remunerados, portanto, o público-alvo de seu trabalho não eram os demos comuns, mas os que pudessem pagar, ou seja, a aristocracia privilegiada. Este é um detalhe  que não se pode desconsiderar. A paidéia[8] sofística está focada nas necessidades de uma Atenas política, democrática, mas ambiciosa pelo poder. Buscava a formação de homens capazes de governar, de liderar, de habilmente manejar as palavras, de disputar e vencer, como analisa Jaeger:

A difusão da democracia grega criava a demanda que os sofistas pretendiam suprir em sua capacidade de educadores profissionais. O caminho para o sucesso político estava aberto a qualquer um, contanto que tivesse a capacidade e o treino para sobrepujar seus competidores. A necessidade primordial era dominar a arte de falar persuasivamente. Em função disso, argumentou-se que todo o ensino dos sofistas se resume na arte retórica. (Adaptado de GUTHRIE, W. K. C. Os sofistas. Tradução João Rezende Costa. São Paulo: Paulus, 1995, p. 24).

A reflexão que se coloca é, em que medida, a paidéia sofística nos remete a paidéia homérica, considerando os aspectos de seleção “natural” dos heróis sociais. A jornada do herói de Homero deve ser marcada pelo esforço em desenvolver suas potencialidades como a força, a coragem, uso das armas, o poder de persuasão. Além disso, devem sempre lutar para estarem acima dos demais, para que sejam lembrados pela posteridade. Os deuses assumem a tutela de seus protegidos, conferem-lhes os poderes necessários para o enfrentamento dos desafios que, invariavelmente, vencem.
Excetuando a intervenção divina, podemos identificar nos sofistas os “deuses” produtores de heróis. Os aristoi, uma vez submetidos a paidéia sofística, dela devem sair instrumentalizados, com o poder da persuasão, para empreender uma jornada de poucos, da qual apenas os mais fortes são capazes de vencer. Ironicamente, talvez, esse é o fundamento da democracia.  Talvez esse seja o teor agonístico a que Jaeger se refere.


                                                           Célia Firmino
                                                      Ensaios filosóficos (26.02.2013)



Referências Bibliográficas:
JAPIASSÚ, Hilton. Dicionário Básico de Filosofia. 3ª ed.  Rio de Janeiro: Zahar, 2001.
JAEGER, Werner. Paidéia: a formação do homem grego. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes. 1984.
SELL, Sérgio. História da Filosofia I: livro didático.  Palhoça: UnisulVirtual, 2011.











[1] Alegoria da Caverna, de Platão.
[2] Sócrates utiliza Doxa para denominar o conhecimento ilusório, resultado de nossa experiência e percepção limitada da realidade, o qual se manifesta na forma de opinião (doxa). (SELL, 2013, p. 91)
[3] Tentar descobrir a verdade conduz a uma tentativa de se encontrar uma definição mais precisa e mais universal usando a razão. Ao conseguirmos definir um conceito universal, alcançamos a ciência (episteme), o verdadeiro conhecimento. (SELL ...cit, p. 91)
[4] Isegoria – palavra composta de dois elementos: “ise”, que vem de “isos” (igual), e “goria”, derivada do verbo agoureio (falar em público, falar numa assembleia, discursar em público). Isonomia – palavra composta por “isos” (igual) e “nomia”, vinda de nomos (regra, lei, norma). (SELL, 2013, p.81)
[5] Sofista (lat. sophista, do gr. sophistes) Na Grécia clássica, os sofistas foram os mestres da retórica e oratória, professores itinerantes que ensinavam sua arte aos cidadãos interessados em dominar melhor a técnica do discurso, instrumento político fundamental para os debates e discussões públicas, já que na pólis grega as decisões políticas eram tomadas nas assembleias. Contemporâneos de *Sócrates, *Platão e *Aristóteles, foram combatidos por esses filósofos, que condenavam o *relativismo dos sofistas e sua defesa da ideia de que a verdade é resultado da persuasão e do consenso entre os homens. (JAPIASSÚ; MARCONDES, 2001)
[6]  Górgias dá grande importância ao logos enquanto discurso argumentativo. Para ele, mais importante do que o verdadeiro é o ser provado ou defendido pelo discurso. (SEEL, 2013, p. 85)
[7] Em Homero, a noção de virtude (areté), ainda não atenuada por seu posterior uso puramente moral, significava o mais alto ideal cavalheiresco aliado a uma conduta cortesã e ao heroísmo guerreiro. Identificada a atributos da nobreza, a areté, em seu mais amplo sentido, designava não apenas a excelência humana, como também a superioridade de seres não-humanos, como a força dos deuses ou a rapidez dos cavalos nobres. Só algumas vezes, nos livros finais das epopeias, é que Homero identifica areté com qualidades morais ou espirituais. (SOUZA, p.11)
[8] Paidéia

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