segunda-feira, 18 de junho de 2018


O “Conhece-te a ti mesmo” em defesa de uma nova Ética


Sócrates (470-399 a.C) é considerado o pai da Ética por defender, em sua filosofia, a necessidade do pensamento, da análise e investigação de nossas condutas e comportamentos, atribuindo-lhes juízo de valor em função do que é certo ou errado. Para esse pensador, só é possível a autonomia, na medida em que o homem aprende a examinar a si mesmo, como um processo contínuo de autoconhecimento. (CATANEO e SCHULZE, 2013, p. 36-37).
Na filosofia de Sócrates, o conceito de virtude resulta dessa capacidade de investigação que o homem desenvolve, de modo autônomo. O homem, verdadeiramente virtuoso, é sábio naturalmente porque percebe, ao examinar-se, que a sabedoria consiste no conhecimento de si mesmo. Exemplo clássico dessa postura ética pode ser observado no texto platônico Defesa de Sócrates (PLATÃO, 1987), quando o acusado relembra os fatos que poderiam ter gerado a animosidade de seus perseguidores. Acredita que tudo se origina quando Querofonte, em Delfos, consulta o oráculo para saber se havia alguém mais sábio que ele, Sócrates, ao que Pítia (a sacerdotisa) responde negativamente, atribuindo ao filósofo a verdadeira sabedoria. Ao refletir sobre a resposta, faz-se uma série de perguntas e recusa-se a aceitar o atributo: “Que quererá dizer deus? Que sentido oculto pôs na resposta? Eu cá não tenho consciência de ser nem muito sábio nem pouco; que quererá ele, então, significar declarando-me o mais sábio? ” (PLATÃO, 1987, p.8). Por meio das interrogações, dirigidas a si mesmo, verifica-se o exercício de autorreflexão que caracteriza a Ética socrática, já que o homem deve olhar para dentro de si em busca de respostas, com base em seu critério pessoal do que julga certo ou errado.
Sócrates duvidava das certezas. A dúvida é a base do processo de investigação, o caminho para a realização de sua areté (virtude).  Narra ainda Platão que o mestre, para averiguar o oráculo, vai ter com várias personalidades consideradas “sábias”, entre atenienses, políticos, artistas, submetendo-as ao exame e constata que ele, por que sabia que nada sabia, de fato, “compreendeu que sua sabedoria é verdadeiramente desprovida do mínimo valor”. Concluirá ele: “Dessa investigação é que procedem, Atenienses, de um lado tantas inimizades, tão acirradas e maléficas, que deram nascimento a tantas calúnias, e, de outro, essa reputação de sábio. ” (PLATÃO, 1987, p.10)
Aqui, temos a preocupação de Sócrates na busca pela verdade, mostrando que a origem do mal está no próprio homem que desconhece a si mesmo. No caso, a crença no falso saber gerou a rivalidade em relação a ele que tinha a consciência de nada saber. Novamente, em exame, a moral ateniense.
Outra referência importante para se analisar a ética socrática é a Denúncia de Meleto, constante da referida obra platônica: “Sócrates é réu de corromper a mocidade e de não crer nos deuses em que o povo crê e sim em outras divindades. ”(PLATÃO, 1987, p.11) Vale ressaltar que os gregos “comportavam-se moralmente em função de orientações metafóricas, linguagem que expressa uma explicação por meio de um exemplo, de uma analogia, apresentadas pelos mitos.” (CATÂNEO e SCHULZE, p. 38). Portanto, a acusação era grave do ponto de vista da orientação moral ateniense que acreditava na interferência dos deuses míticos gerindo os destinos. Pesava-lhe a contravenção de desrespeito às divindades gregas, de adotar outras e de levar os jovens a aderir às suas atitudes. Em síntese, evidencia-se a crítica dos conservadores, de modelo moral teocêntrico, em relação à Sócrates, que propunha, conforme Catâneo e Schulze (p.38), “pensar a moral de uma perspectiva antropocêntrica, isto é, considerando o próprio homem como agente fundamental que pensa como deve agir moralmente. ”
 Em relação a Meleto, Sócrates, com a serenidade que lhe caracteriza o comportamento ético, procura examinar detalhadamente a denúncia, sob a ótica do acusador. E, utilizando-se das perguntas, leva-o a manifestar suas próprias contradições:

“Diz que sou réu de corromper a mocidade. Mas eu, Atenienses, afirmo que Meleto é réu de brincar com assuntos sérios; por leviandade, ele traz a gente à presença dos juízes, fingindo-se profundamente interessado por questões que jamais fez o mínimo caso. Vou também procurar demonstrar-vos que assim é.” (PLATÃO,1987, p.11)

O diálogo que se desenvolve entre ambos é um exercício de reflexão sobre a moral defendida pelo acusador que finaliza por encurralar Meleto em suas próprias incoerências entre discurso e ações. O filósofo prova que as acusações imputadas a ele, na realidade, são atitudes características do próprio acusador. Dessa forma, o feitiço vira contra o feiticeiro e a moral ateniense é colocada em questão por fragilidade de virtudes legítimas, do ponto de vista socrático.
Meleto, por exemplo, atribuía a si mesmo virtudes que não se sustentaram ao exame lógico realizado por Sócrates. Ao refletir sobre os conceitos de bem e mal relacionados às ações humanas, silencia sem respostas, diante das perguntas sucessivas feitas pelo filósofo que, termina por provar a inversão de valores subjacentes à denúncia. Confrontando o significado de “corromper e juventude” com as ações empreendidas por Sócrates, compreende-se, à luz de sua maiêutica, que os jovens se beneficiaram de seus diálogos educativos (o suposto mal é, na verdade, um  bem), ao contrário da inércia de Meleto que nada fez para protegê-la, embora estivesse ali na condição de alguém que se preocupa e se interessa por ela (o bem, quando aparente e falacioso, resulta no mal).
Depreende-se, portanto, dos exemplos citados, que Sócrates vivenciou as regras de conduta nas quais acreditava. Pelo exemplo, foi agente de mudança da moral tradicional, fundamentada no teocentrismo mítico, para a moral antropocêntrica, fundamentada no homem como agente de transformações. Delfos simboliza, assim, o marco de uma nova forma de se pensar a moral e não faltam razões para justificar o imperecível aforismo “Conhece-te a ti mesmo” que consagrou a filosofia e a Ética de Sócrates. Por meio das perguntas habilmente elaboradas, provoca a parturição de ideias, coloca o homem no centro de sua própria busca, responsabiliza-o pelo desenvolvimento de sua própria consciência e conquista da autonomia. A partir desse filósofo, o homem compreenderá que a felicidade não pode ser dissociada da liberdade e que esta só é possível quando se assume a responsabilidade por conhecer a si mesmo.

Célia Firmino
Reflexões Filosóficas - 06.08.2013

Fontes:
CATÂNEO, Marciel Evangelista; SCHULZE, Carmelita. Ética Clássica e Medieval. 2ª.ed. Palhoça: UnisulVirtual, 2013.
PLATÃO. Defesa de Sócrates. In: SÓCRATES. Seleção de textos de José Américo Pessanha; Traduções de Jaime Bruna, Líbero Rangel de Andrade, Gilda Maria Reale Strazynski. 4.ed. São Paulo:  Nova Cultural, 1987. (Coleção Os Pensadores)


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