O “Conhece-te a ti mesmo” em defesa de uma nova Ética
Sócrates (470-399 a.C) é considerado o pai da Ética por defender, em sua
filosofia, a necessidade do pensamento, da análise e investigação de nossas
condutas e comportamentos, atribuindo-lhes juízo de valor em função do que é
certo ou errado. Para esse pensador, só é possível a autonomia, na medida em
que o homem aprende a examinar a si mesmo, como um processo contínuo de
autoconhecimento. (CATANEO e SCHULZE, 2013, p. 36-37).
Na filosofia de Sócrates, o conceito de virtude resulta dessa capacidade
de investigação que o homem desenvolve, de modo autônomo. O homem,
verdadeiramente virtuoso, é sábio naturalmente porque percebe, ao examinar-se,
que a sabedoria consiste no conhecimento de si mesmo. Exemplo clássico dessa
postura ética pode ser observado no texto platônico Defesa de Sócrates (PLATÃO, 1987), quando o acusado relembra os
fatos que poderiam ter gerado a animosidade de seus perseguidores. Acredita que
tudo se origina quando Querofonte, em Delfos, consulta o oráculo para saber se
havia alguém mais sábio que ele, Sócrates, ao que Pítia (a sacerdotisa)
responde negativamente, atribuindo ao filósofo a verdadeira sabedoria. Ao refletir
sobre a resposta, faz-se uma série de perguntas e recusa-se a aceitar o
atributo: “Que quererá dizer deus? Que sentido oculto pôs na resposta? Eu cá
não tenho consciência de ser nem muito sábio nem pouco; que quererá ele, então,
significar declarando-me o mais sábio? ” (PLATÃO, 1987, p.8). Por meio das
interrogações, dirigidas a si mesmo, verifica-se o exercício de autorreflexão
que caracteriza a Ética socrática, já que o homem deve olhar para dentro de si
em busca de respostas, com base em seu critério pessoal do que julga certo ou
errado.
Sócrates duvidava das certezas. A
dúvida é a base do processo de investigação, o caminho para a realização de sua
areté (virtude). Narra ainda Platão que o mestre, para
averiguar o oráculo, vai ter com várias personalidades consideradas “sábias”,
entre atenienses, políticos, artistas, submetendo-as ao exame e constata que
ele, por que sabia que nada sabia, de fato, “compreendeu que sua sabedoria é
verdadeiramente desprovida do mínimo valor”. Concluirá ele: “Dessa investigação
é que procedem, Atenienses, de um lado tantas inimizades, tão acirradas e
maléficas, que deram nascimento a tantas calúnias, e, de outro, essa reputação
de sábio. ” (PLATÃO, 1987, p.10)
Aqui, temos a preocupação de Sócrates
na busca pela verdade, mostrando que a origem do mal está no próprio homem que
desconhece a si mesmo. No caso, a crença no falso saber gerou a rivalidade em
relação a ele que tinha a consciência de nada saber. Novamente, em exame, a
moral ateniense.
Outra referência importante para se analisar a ética socrática é a Denúncia de Meleto, constante da referida obra platônica: “Sócrates é réu de
corromper a mocidade e de não crer nos deuses em que o povo crê e sim em outras
divindades. ”(PLATÃO, 1987, p.11) Vale ressaltar que os gregos “comportavam-se
moralmente em função de orientações metafóricas, linguagem que expressa uma
explicação por meio de um exemplo, de uma analogia, apresentadas pelos mitos.”
(CATÂNEO e SCHULZE, p. 38). Portanto, a acusação era grave do ponto de vista da
orientação moral ateniense que acreditava na interferência dos deuses míticos
gerindo os destinos. Pesava-lhe a contravenção de desrespeito às divindades
gregas, de adotar outras e de levar os jovens a aderir às suas atitudes. Em
síntese, evidencia-se a crítica dos conservadores, de modelo moral teocêntrico,
em relação à Sócrates, que propunha, conforme Catâneo e Schulze (p.38), “pensar
a moral de uma perspectiva
antropocêntrica, isto é, considerando o próprio homem como agente
fundamental que pensa como deve agir moralmente. ”
Em relação a Meleto, Sócrates, com
a serenidade que lhe caracteriza o comportamento ético, procura examinar
detalhadamente a denúncia, sob a ótica do acusador. E, utilizando-se das
perguntas, leva-o a manifestar suas próprias contradições:
“Diz que sou réu de corromper a mocidade. Mas eu, Atenienses, afirmo que
Meleto é réu de brincar com assuntos sérios; por leviandade, ele traz a gente à
presença dos juízes, fingindo-se profundamente interessado por questões que
jamais fez o mínimo caso. Vou também procurar demonstrar-vos que assim é.”
(PLATÃO,1987, p.11)
O diálogo que se desenvolve entre ambos é um exercício de reflexão sobre
a moral defendida pelo acusador que finaliza por encurralar Meleto em suas próprias incoerências entre discurso e ações. O
filósofo prova que as acusações imputadas a ele, na realidade, são atitudes
características do próprio acusador. Dessa forma, o feitiço vira contra o feiticeiro e a moral ateniense é colocada
em questão por fragilidade de virtudes legítimas, do ponto de vista socrático.
Meleto, por exemplo, atribuía a si mesmo virtudes que não se sustentaram
ao exame lógico realizado por Sócrates. Ao refletir sobre os conceitos de bem e mal relacionados às ações humanas,
silencia sem respostas, diante das perguntas sucessivas feitas pelo filósofo
que, termina por provar a inversão de valores subjacentes à denúncia.
Confrontando o significado de “corromper e juventude” com as ações empreendidas
por Sócrates, compreende-se, à luz de sua maiêutica, que os jovens se
beneficiaram de seus diálogos educativos (o suposto mal é, na verdade, um bem), ao contrário da inércia de Meleto
que nada fez para protegê-la, embora estivesse ali na condição de alguém que se
preocupa e se interessa por ela (o bem,
quando aparente e falacioso, resulta no mal).
Depreende-se, portanto, dos exemplos citados, que Sócrates vivenciou as
regras de conduta nas quais acreditava. Pelo exemplo, foi agente de mudança da
moral tradicional, fundamentada no teocentrismo mítico, para a moral
antropocêntrica, fundamentada no homem como agente de transformações. Delfos
simboliza, assim, o marco de uma nova forma de se pensar a moral e não faltam
razões para justificar o imperecível aforismo “Conhece-te a ti mesmo” que
consagrou a filosofia e a Ética de Sócrates. Por meio das perguntas habilmente
elaboradas, provoca a parturição de ideias, coloca o homem no centro de sua
própria busca, responsabiliza-o pelo desenvolvimento de sua própria consciência
e conquista da autonomia. A partir desse filósofo, o homem compreenderá que a
felicidade não pode ser dissociada da liberdade e que esta só é possível quando
se assume a responsabilidade por conhecer a si mesmo.
Célia Firmino
Reflexões Filosóficas - 06.08.2013
Fontes:
CATÂNEO, Marciel
Evangelista; SCHULZE, Carmelita. Ética
Clássica e Medieval. 2ª.ed. Palhoça: UnisulVirtual, 2013.
PLATÃO.
Defesa de Sócrates. In: SÓCRATES. Seleção de textos de José Américo Pessanha;
Traduções de Jaime Bruna, Líbero Rangel de Andrade, Gilda Maria Reale
Strazynski. 4.ed. São Paulo: Nova
Cultural, 1987. (Coleção Os Pensadores)
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