terça-feira, 20 de fevereiro de 2007

Blade Runner: paródia ou paráfrase da divina comédia humana?
“O homem criou o homem à sua imagem e semelhança...
Agora o problema é seu...”

Célia Firmino[*]


“Em chamas, os anjos caíram...trovões ecoando ao redor de suas praias queimando com os fogos de Orc.” O discurso do líder replicante, louro, olhos azuis, auto suficiente, o mais belo dos arcanjos, cópia esteticamente perfeita para os supostos padrões de beleza humanos, reflete nitidamente a imagem bíblica, arquetípica, do anjo decaído.
Não tendo podido apropriar-se da glória celeste pela excessiva ambição de pretender ser humano, esforça-se por implantar seu reino na terra. Para preencher a distância infinita que separa a sua imagem da essência pretendida, quer unir-se à divindade reunindo em si elementos da natureza divina e humana: direito às emoções, à vida, à uma história, ao medo, à morte imprevisível. “O criador pode consertar a criação? Eu quero mais vida.” Roy Batter é Lúcifer, o herói da epopéia, bela forma, mas de existência moral inferior ao homem do século XXI. Na impossibilidade de ser homem ou anjo, prefere ser o parodístico reverso – o demônio. Projetado para ser ou parecer à imagem do homem que, por sua vez, é a pretensa imagem e semelhança de Deus e, insatisfeito por ser apenas criatura, com limitações impostas pelo código genético, reveste-se de um poder antagônico, isto é, utiliza-se das habilidades recebidas ou desenvolvidas – habilidade para o combate e auto suficiência - para rivalizar com o criador, Tyrell, o pai da obra.

Resguardados os limites das representações, o texto fílmico, interdiscursivamente, dialoga com o mito bíblico da criação, a mais evidente paródia da divina epopéia humana. Protagonistas e antagonistas revestidos de competência, rivalizam entre o ser e o não ser, ter ou não ter o direito de existir. De um lado, Tyrell, o gênio criador, humano e divino em sua genialidade. De outro, Roy Batter, sua obra prima perfeita (o mais humano possível), o herói parodiado: pensa, mas não existe; tem emoções como ódio, chora diante da morte, deseja vingança, destrói, mas não é humano. E na disputa por ser e não ser real e/ou verdadeiro, a dialética platônica traz a tona o discurso do sofista e a questão do simulacro.
Os simulacros, segundo Platão, são como falsos pretendentes, construídos a partir de uma dissimilitude, implicando uma perversão, resultado da imagem (aparência), superficial sem semelhança (essência Interior) em relação ao modelo. No jogo de quem é quem, o líder replicante figura como o falso pretendente à condição de humano, belo efeito de ilusionismo, no estilo parece que é, mas não é, porém pretende ser. No que se refere ao jogo da disputa, vale tudo, até mesmo atitude edipiana de matar o pai, por amor à vida. Discurso dissimulado, insinua, recobre a dessemelhança assim como um desequilíbrio interno. Se a pretensão é justa ou não, falsa ou verdadeira, cabe à Filosofia argumentar. A imitação necessariamente não deve ser má, pode ser uma boa cópia, contudo pode tomar um sentido pejorativo na medida em que não consegue passar de uma dissimulação , refletindo um efeito de semelhança apenas exterior, formal, sem essência ou de conteúdo pervertido.
Na dialética da rivalidade em Platão, os pretendentes competitivamente buscam a legitimidade de ser cópias bem fundamentadas, disputam em nível de igualdade a posição da qual se julgam legítimos herdeiros. Em Blade Runner, o líder replicante renuncia, à condição que lhe foi dada ou imposta, às bem aventuranças de ser um andróide feliz em seus quatro anos de vida sem emoções, à juventude permanente sem longevidade para lutar pelo direito de ter as mesmas características do modelo, de “ser igual”, embora as diferenças.

A eterna dualidade entre criador e criatura, essência e aparência, imagem e semelhança, ser e não ser, cópia e simulacro são dialogadas em Platão. Quem somos? De onde viemos? O que fazemos aqui? Para onde vamos? Para tentar um resposta para estas e outras tantas questões existenciais, a filosofia platônica divide o mundo em duas dimensões: o da essência ou das idéias – o mundo primitivo -, do qual todos originamos e voltaremos após as experiências vividas , num círculo contínuo de eterno retorno e o mundo fenomênico, o das aparências, da materialização do mundo das idéias, definido como cópia imperfeita deste mundo. Objetivo: ascendermos do primitivismo à angelitude, através de experiências sucessivas, necessárias à purificação do espírito. Estabelece assim, os discutidos conceitos de originalidade e modelo, cópia, imitação, simulacro, hierarquia, moralidade e perversão, deformidade e perfeição, bases para a filosofia da dualidade que terá reflexos na formação do pensamento ocidental bem como nos conceitos de arte em suas diversas expressões.
O ser pressupõe o não-ser e nesse entrelaçamento de realidades e verdades perdem-se os limites do modelo e da imitação, do original e da cópia. Como recurso possível para as necessárias delimitações, pensar em “re-produções”, remete-nos não para além do simulacro, mas para uma das suas representações – a paródia. Pensar em paródia significa pensar ainda em paráfrase, já que, ora o produto reafirma o modelo, ora constitui-se-lhe a projeção invertida, simulada.

Considerando o mundo fenomênico como cópia imperfeita do mundo das idéias, da essência, campo de manifestações de sentimentos como ambição, ódio, orgulho, vaidade, vingança, destruição, as deformidades de caráter em geral, enfim, este palco em que se encenam diariamente as mais variadas tragédias, poder-se-ia dizer que seria a mais perfeita paródia do Criador?
Ser ou não ser humano, paródia ou paráfrase, eis a questão. A imagem reivindica direito à semelhança. A imitação pretende ser cópia, cópia pretende ser modelo. Réplica pretende ser unidade. Simulacro pretende ser verdade. Pretender a reversão do simulacro é pretender a conversão da paródia em paráfrase: ascender o suposto pervertido à reafirmação das qualidades do pretenso modelo, cópia do original. Ser ou não ser possível, agora é a questão.
Do silogismo: o homem foi criado por Deus “à sua imagem e semelhança”, o homem cria o homem à sua imagem e semelhança, logo o homem quer ser “deus”, infere-se um outro conceito platônico na hierarquia do processo de “re-produção”– o de usuário, já que este se posiciona do alto da hierarquia e, detentor de um saber, julga sobre os fins e dispõe sobre idéia ou modelo. Quando imita o modelo, assegurando-lhe essência espiritual e interior, realiza uma verdadeira produção porque bem fundamentada. É o caso de Rachel, a replicante especial, cópia bem sucedida, já que tem assegurada em si a existência moral. No entanto, quando se realiza uma cópia de cópia, cujo efeito estético simula a semelhança, mas não a assegura, provoca ilusionismo e, portanto, simulacro. É o que se apreende da aplicação desses conceitos à produção dos replicantes da série Néxus 6.

A imitação pode ser uma boa cópia, mas pode tomar sentido pejorativo na medida em que não consegue passar de uma dissimulação e reflete um efeito de semelhança apenas exterior e improdutivo, obtido por um ardil ou subversão.
Cópia, simulacro, paródia. Bem estreitos são os limites que as separam. Para o sofista, uma “arte – manha” de desviar da imagem real o ponto de vista do observador, atingindo um efeito de subversão. Paródia é uma ode que perverte o sentido de outra ode. Simulacros: aquilo a que pretendem, o objeto, a qualidade, etc. Pretendem-no por baixo do pano, graças a uma agressão, de uma insinuação, de uma subversão. Neste ponto, as fronteiras se diluem. Diferem-se, todavia, quando a paródia propõe também a possibilidade de uma inversão positiva, de uma ascensão, ao contrário do simulacro que assume sempre o sentido pejorativo da imagem projetada. Equivale dizer que a paródia pode conter imagem sem semelhança, imagem e semelhança sem, no entanto, deixar de ser paródia. Pretender a condição de legítimo herdeiro pressupõe por à prova a identidade . O princípio de alteridade, do Outro como modelo e através do Outro, o Mesmo que se reafirma como determinação abstrata do fundamento é o modelo platônico. A semelhança é a essência da cópia, corresponde à similitude, à “igualdade” na diferença. Se a cópia, a imitação preserva essa essência, torna-se legitimamente exemplar, com direito à segunda posição em relação ao modelo na escala hierárquica. Identificar quais são os elementos essenciais à preservação da semelhança é o grande desafio.

Os replicantes não deveriam ter passado, já que este é a base para as emoções, reafirmação do essencial à condição de ser humano. A memória temporal e a memória emocional são o suporte para a ressignificação do momento presente. As experiências vividas são ressignificadas pelas lembranças implantadas que seriam o traço mnemônico, viabilizador da identidade, de individualidade. Ora, não há identidade sem a chancela social que a legitima, já que a identidade é um processo de construção de imagem por meio do outro. Portanto, o modelo é a base de todas as variantes através das quais a identidade se faz representar. Se tais representações são humanas ou divinas, pervertidas ou reafirmadas, eis o que determina a distinção entre paródia e paráfrase. No entanto, o procedimento comparativo entre modelo e imitação, forma e conteúdo é imprescindível ao discernimento das fronteiras que dividem este complexo universo de seres e não seres.
Os replicantes sabem quanto tempo lhes resta e lutam por prolongá-lo, reivindicam esse direito de seu “criador”, querem mais, existir de fato, possuir identidade, emoções, uma história de vida, o que lhes é negado. Utilizam-se de uma história artificial representada pelas fotos que mostram padrões de vida humanos. Uma espécie de memória armazenada, construída a partir de modelos sociais. Evidenciando, portanto uma visão Antropológica e Sociológica de que a identidade só é possível de ser atribuída , mantida e só transformada socialmente. É também, a partir de Deckard (o Outro) que Rachel passa a existir; é ele que a “humaniza”, que a aproxima do modelo, cria-lhe uma memória emocional movido por um sentimento de amor ou desejo, uma emoção virtual e paradigmática do anjo, introjeta-lhe os elementos de identificação, os mesmos que os aproximam, garantem-lhe a existência moral , elaborando, portanto, uma representação parafrásica do modelo. Roy Batter, de imagem parafrásica, porque reafirma a forma do modelo e de semelhança parodiada, já que subverte, antagoniza a essência - representa a possibilidade de convivência de dois tipos de “re-produção” num mesmo continente – o “texto”.

Mas o ser humano não é, por definição, um texto em que antagonizam virtudes e imperfeições, bem e mal, certezas e incertezas, amor e ódio, em busca constante do equilíbrio, da individuação, da identidade, do ser? Em outras palavras, as respostas para o que somos, o que devemos ser, o que é a vida, para onde vamos? Todos, de alguma forma, não buscamos a paráfrase da perfeição e, para tanto, não percorremos dialeticamente o caminho do não-ser? Daí, Platão dizer que “nada de falso é possível sem condição de supor o não-ser como ser”. E acrescentaríamos que nada de verdadeiro é possível sem a condição de experienciar o falso, a realidade do não-ser. A arte de separar, de dissociar o melhor do pior é condição sine qua non da “purificação”, da preservação da boa cópia, da imitação bem fundamentada.

O que há de paródia e o que há de paráfrase na criatura, na “reescritura”?
Roy Batter é o filósofo . Convive com a arbitrariedade da duração da vida, com a experiência de saber-se finito, com a precisão do tempo medido materialmente – 4 anos. É a luz que brilha o dobro, mas que deve arder a metade do tempo, com muito brilho. É a representação da imagem que busca em tempo irrisório construir a sua semelhança, a sua identidade. Para ele, não há a decrepitude acelerada de um corpo transitório que marca, imprecisamente, a aproximação do fim. Há o tempo preciso, exatamente quatro anos, e um código genético que não pode ser alterado. Quatro anos apenas para reverter a paródia, o simulacro, em perfeita paráfrase de ser e de existir, não apenas porque pensa, mas porque ama, odeia, tem medo e esperanças. O suposto simulacro, candidato a pretendente quer a identidade. Talvez, para ele, ser humano significasse ter direito às mesmas perguntas sem respostas. A semelhança pressupõe, necessariamente, a existência do Outro, já que não é possível ser semelhante sozinho, como é incoerente ser dessemelhante sem relação à coisa alguma. A imitação sobrevive por causa do modelo. O espelho só tem razão de ser porque reflete a imagem. “Há um pouco de mim em vocês” – diz o projetista. O líder replicante quer a reversão: “O criador pode consertar a criação?” O código genético que não pode ser alterado é a essência, a identificação. Quem vive afinal? Apenas isto bastaria para torná-lo humano, “igual”. Mas quer deixar também um pouco de si mesmo no Outro. Sabe que o preço da semelhança de uma cópia imperfeita é a morte da imagem. No momento em que precisa decidir sobre deixar viver ou morrer uma vida “ao fio da navalha”, as últimas diferenças diluem-se como lágrimas na chuva. Sublima a própria agonia e deixa-se morrer suavemente como pássaro que se liberta. Neste sentido, a reversão torna-se possível .

[*] Artigo produzido em 1999, sob a orientação do Prof Dr. Paulo Nolasco, no curso de Pós-Graduação, em nível de mestrado da UFMS – Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, pela mestranda Célia Firmino.

BIBLIOGRAFIA
DELEUZE, G. “Platão e o simulacro”. In: Lógica do sentido. São Paulo: Perspectiva. 1974.

PESSANHA, José Américo Motta. “Sofista”. In: Platão. Diálogos. Traduções e notas de José Cavalcante de Souza, Jorge Paleikat e João Cruz Costa. 2. ed. São Paulo. Abril Cultural, 1983.
SANT’ANNA, Affonso Romano de. Paródia, Paráfrase & Cia. São Paulo. Ática.1991.

2 comentários:

Anônimo disse...

Afinal de quem é este texto?
eu quero uma paráfrase

Anônimo disse...

O texto é de Célia Firmino, como consta no início. Abraços.