segunda-feira, 19 de fevereiro de 2007

Minsk: uma releitura de Graciliano Ramos

por Célia Firmino*

- Eh! Eh!
Saudei, assim, a menina que me olhava admirada e triunfante. Talvez nunca tivesse visto alguma coisa assim como eu: grande, com manchas amarelas, inchado, andar torto – um periquito verdadeiro.
Tio Severino é o responsável. Aquele lugar não era a fazenda e aquela menina olhando maravilhada, soltando gritos selvagens, fez-me sentir um estranho no ninho. E que ninho estranho...
Luciana, sem demora, acomodou-me no fura-bolo e entrou comigo a passear pela casa, a conhecer as pessoas, tão rapidamente, deixando-me um tanto quanto desnorteado. Expôs-me à cozinheira e Maria Júlia. Já refeito e mais equilibrado do passeio, observei que ambas não se importaram comigo. Não me viram atenciosamente. Começava a perceber a insignificância das pequenas coisas para a gente grande.
A menina estava feliz demais para reagir às incompreensões. Voltou-se para mim carinhosamente, com o intuito de batizar-me e adentramos a casa. Paramos na sala de jantar, ela sentou-se à mesa e casualmente abriu um livro. Desci à superfície, curioso, atraído pelas cores e divisões com letras centrais; andava de um lado a outro, desajeitado, observando estranhamente aqueles riscos envolvidos por uma tonalidade semelhante aos rios da fazenda. Parei, olhei para Luciana como quem interroga.
- É um Atlas. Explicou-me atenciosamente.
Em seguida, chamou a irmã:
- Maria Julia, como se chama este lugar? Perguntou, apontando para os meus pés.
- Minsk.
- Minsk?!
Com tom de dúvida na voz, pegou o livro e aproximou-se da mãe.
- Leia isto, mamãe.
- Minsk.
Neste momento, Luciana olhou para mim como quem dá a sentença final, decididamente, sem apelações.
Meus pés e meus passos levaram-me a chamarem-me Minsk. Que engraçado para um periquito.
Luciana era realmente surpreendente. Levou-me a conhecer os móveis, o cômodo, o quintal, as árvores. Aí, senti-me mais familiarizado; parecia um pedacinho da fazenda.
Em seguida, apresentou-me o gato.
Ah! O gato. Sempre ouvia histórias trágicas a respeito de gatos e pássaros. A impressão de que seria atentamente observado fez-me colocar em posição defensiva. Meu instinto de sobrevivência alertava-me de que é bom ser importante, nunca, porém, para um gato, principalmente se ele estiver faminto. Aguardei atentamente.
Luciana advertia-o para que fôssemos amigos, afinal eu não era um rato.
- Um rato? De penas coloridas? Seria possível um gato pensar assim?
Não era possível, conclui. Um instinto animal nunca se engana, especialmente o faro.
Todos estes pensamentos passavam velozmente pela minha cabeça, ao mesmo tempo em que espreitava os movimentos do meu novo amigo.
Nenhuma reação. O bichano, tranqüilo, cerrava os olhos ao sol, preguiçosamente. Parece que perdera o faro para qualquer encrenca. Queria paz. Tanto que, manhoso, aceitava vez em quando, carinhosas periquitadas na cabeça e os restos da afeição que Luciana dispensava a mim.
A minha chegada mudou, a olhos vistos, os hábitos da menina. De natureza sonhadora e imaginação fértil, desceu do mundo da lua, onde as crianças costumam construir a infância de aventuras e mágico faz-de-conta.
D. Henriqueta da Boa-Vista, metamorfose que Luciana criava quando queria ser moça antes da hora, foi substituída por um periquito de fazenda. Um personagem real, de nome engraçado, vive agora, constantemente, empoleirado em seu ombro e fantasias. Transformei-me em companheiro de seu agitado, solitário e encantado mundo infantil.
Seu pai, após um dia inteiro de ausência, preferia o jornal; sua mãe irritava-se à toa; a criada, rabugenta, resmungava o tempo todo; o tio Severino já estava velho e falava difícil; Maria Julia, preguiçosa descansava entre revistas e bruxas de pano. Ninguém compartilhava as invencionices de Luciana. Ninguém entendia as conversas de Luciana.
Seu Adão carroceiro, às vezes, tentava decifrá-las. Pensava, coçava o pixaim, inutilmente. Os adultos não sabiam ser crianças, mesmo de vez em quando. Todos estavam sempre ocupados. Não havia tempo. Por isso, Luciana inventava interlocutores, fazia confidências às árvores e às paredes, personagens invisíveis, doces e silenciosos.
Fui, rapidamente promovido a seu confidente. Recebia-lhe carícias, atenção. Um periquito ruidoso, colorido e compreensivo. Chamava-me, afetuosamente.
- Minsk.
- Eh! Eh! Respondia- lhe o afeto em periquitês.
Quando o dia começava a despertar, meu grito soava pela casa. Chegava, desajeitadamente à cama de Luciana, escalava a coberta e aninhava-me em seus braços magros. Viajávamos, pelo sonho, ao nosso paraíso.
Encontrava nas travessuras de Luciana um significado novo de liberdade. Nestes momentos, agitava-se em mim as recordações do mato, o gosto por aventuras.
Pulava de galho em galho, buscava outras árvores, outros quintais... Sentia a terra sob meus pés, o vento mover minhas penas e voava. Quando satisfeito, voltava.
Acontecia, às vezes, que absorto em meus pensamentos perdia a direção e me distanciava. Não tardava o tempo e já me alcançava os gritos desesperados da menina, inquieta, estabanada, procurando-me.
- Eh! Eh!
Era o sinal. Dava as buscas e logo me encontrava. Colocava-me em seu ombro, alegre, expansiva, enviando-me beijos e eu retribuía-lhe em periquitadas carinhosas no couro cabeludo, bicadas nas orelhas, escondendo minha cabeça em seus cabelos revoltos.
Assim era eu. Assim era Luciana.
Afligia-me, porém, o espírito de periquito, observar que ela não prestava muita atenção aos lugares onde pisava. Esbarrava-se em quinas de mesa, chutava pés de móveis. Manchas, arranhões, galos na cabeça, já eram-lhe características. Marcas do comportamento estabanado, descuidado. Desatenta e desafiadora. Tinha ainda o irritante costume de andar com os olhos fechados e de costas. Irritantes para as pessoas conhecidas e ranzinzas.
Fazia por desafio. Se conseguia fazer um percurso de olhos fechados e de costas, sentia-se triunfante, vencedora e orgulhosa. Porém, se chocava-se com objetos, pisava em falso, era o bastante para sentir-se humilhada, pois justificava, assim, as opiniões caseiras. Mas, desistir jamais. Recomeçava sempre, até acertar.
Um certo dia, ouvi o grito de Luciana abafado, senti a voz angustiada.
- Minsk!...
Quase num sussurro, gritava-me o nome. Senti-me como se eu tivesse perdido a direção. Deus do céu? O que estava acontecendo? Por que ela estava tão aflita? Por que eu me sentia distante, dolorido, mole?
- Minsk! Não morra!
Ouvia novamente a voz triste e sem força de Luciana. Como se alguém, fazendo a marcha de olhos fechados, tivesse-lhe pisado sem ver, deixando-lhe um restinho de vida. Como se fosse um sonho ruim. Assim me sentia também: uma mancha dolorosa...as asas sem se mover...
- Minsk!! Pobrezinho! Como dói...
Ela repetia, muito longe... O eco da voz sumindo no fim do abismo... Silêncio.
- Eh! Eh!
Como um beijo, saudei, assim, a menina.

*Aluna do Curso de Pós-Graduação, em nível de mestrado, da UFMS – Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. Adaptação do Conto Minsk, de Graciliano Ramos, na perspectiva do narrador, sob orientação do Prof. Dr. Orlando Antunes Batista. 1999.

2 comentários:

Anônimo disse...

Permita-me fazer essa leitura. Amei esse lugar que vc criou...

"A leitura é muito mais do que uma simples relação dos olhos com os livros... A leitura é um espaço, um lugar predileto, uma luz escolhida, um ritual em que importa até a época do ano".
Miguel de Cervantes

Suzy

Literatura, Filosofia, Arte, Cultura disse...

Obrigada Suzi...

É urgente compreendermos a leitura como um processo de emancipação, não só política, mas social, existencial mesmo, ou seja, um espaço de crescimento humano, de educação libertadora de consciências, como incansavelmente nos ensina Paulo Freire. Daí, a criação deste espaço aberto aos que acreditam que uma sociedade leiturizada não se submete a opressões de qualquer ordem e, portanto, não se deixa manipular.