quarta-feira, 21 de fevereiro de 2007

Platão e o Simulacro: sentidos possíveis em Deleuze



Célia Firmino[*]


Ser ou não ser, eis a questão. A proposta de Hamlet remete-nos ao diálogo sobre o SOFISTA, em Platão, cuja questão central é tentar uma definição sobre sua arte – a arte do simulacro, ou mimética do ilusionismo. Até que ponto é possível unir ou “entrelaçar o ser e o não-ser na distinção da coisa ou “objeto” e suas imagens, o original e a cópia, o modelo e o simulacro?

A fim de filtrar a verdade do erro, o projeto da divisão é o método proposto, empregado para encurralar o sofista, o justo pretendente à verdade. Partindo de exemplos simples, busca a pesca como primeiro conceito do que é arte, definindo-a como arte de aquisição e arte da captura, referindo-se a esta como ardilosa, já que se utiliza de subterfúgios como arpão, anzol para capturar a sua caça. A metáfora da pesca, portanto, é o mais significativo conceito atribuído ao sofista, por agir como um pescador na captura de sua presa – espíritos inadvertidos que se deixam fisgar por discursos insinuosos, em outras palavras, simulacros de verdade. O sofista seria, assim, um produtor de imagens, habilidade desenvolvida na arte do simulacro.

É importante considerar, inferindo-se do método da divisão exemplificado na pesca e em todo o desenvolvimento do diálogo, que a dialética platônica não é a dialética da contradição, como é o pressuposto hegeliano, mas, a dialética da competitividade, da rivalidade, cujo objetivo é a seleção da linhagem, uma forma de hierarquização estabelecida para aproximação do que é original e do que é cópia, ou seja, as pretensões são julgadas criteriosamente pela moralidade de intenções, em virtude do que Platão considera semelhança (ou essência), a fim de distinguir o verdadeiro do falso pretendente.

Esta dialética permeia a teoria de Platão, cuja base reside na existência do mundo das idéias, mundo inteligível (da essência) e o mundo fenomênico, dos objetos físicos, mundo dos sentidos, sensível (das aparências). Não é uma dualidade que se contrapõe, mas partes constitutivas de uma mesma realidade, ou melhor, o mundo das aparências seria a “materialização” do mundo das idéias, das formas primitivas, dos modelos, da originalidade. Em outras palavras, tudo o que é fenomênico, sensível, aparente, com realidade projetada no plano material, seria uma imitação do que já existe, antes, no mundo inteligível, o das essências. Portanto, os objetos físicos aparecem como cópias imperfeitas dos arquétipos ideais, incorpóreos, cujos modelos seriam as idéias eternas. Estabelece-se, aí, nesta primeira divisão, a distinção do que é original e do que é cópia.

Daí, conceituar a arte como mimética – imitação -, já que tem como proposta a representação de mundo das essências nas formas das aparências, respectivamente de seres e não-seres, subdivididas em mimética da cópia e mimética do simulacro. A primeira - a arte de copiar tem na cópia, por meio do processo seletivo de hierarquização da linhagem, a candidatura a primeira à fidelidade e autenticidade em relação ao original. A segunda - a arte de simular a cópia ou simulacro -, estaria, em relação a imitação, em um nível de distanciamento maior do que a imitação, ou seja, as imagens produzidas seriam cópia da cópia e, portanto, uma pretensão à arte da qual o sofista se faz porta voz. Assim, temos novamente a competição, a pretensão à legitimidade enquanto obra de arte, segundo maior ou menor autenticidade em relação ao modelo original.

Para analisar a questão, reportemo-nos ao conceito platônico de Imagem, como o segundo objeto, copiado do verdadeiro, do modelo. A imagem é dividida em duas formas:
1. A cópia bem fundamentada, possuidora, em segundo lugar, de semelhança, entendendo-se semelhança como a essência interior – a idéia, a “alma” do objeto, o que levou Platão a chamar de cópia-ícone.
2. O simulacro: a imagem destituída de semelhança (de essência), simulação da cópia, construída a partir da dessemelhança, uma espécie de imagem “esfumaçada” da segunda cópia, também chamada de cópia-fantasma.
Importa ressaltar que efeito de ilusão é obtido, não apenas pela habilidade do ilusionista, mas também pela inclusão de um ponto de vista diferenciado do espectador que, dependendo das proporções da obra e do posicionamento desfavorável em que se coloca não é capaz de alcançar plenamente proporções tão vastas. Neste sentido o espectador faz parte do simulacro, já que a obra se transforma e deforma segundo o seu ponto de vista.
Assim, a diferença fundamental reside na observação de que, enquanto no simulacro há a perda da existência moral, entrando na realidade estética superficial – apenas das aparências -, na cópia bem fundamentada, o artista preserva a semelhança – a essência -, assegurando a possível vitória da cópia sobre o simulacro como pretendia Platão. Assim, os conceitos de cópia e de simulacro coloca em questão outro conceito, não menos importante: o de usuário, produtor, imitador.

Platão coloca que o usuário seria aquele que se posiciona do alto da hierarquia. Detentor de um saber julga sobre os fins e dispõe sobre a ideia ou modelo. O produtor, quando realiza uma cópia fundamentada, assegurando-lhe a essência espiritual e interior imita o modelo, caracterizando, portanto, sua obra como uma verdadeira produção. Quando, no entanto, a imitação não passa de mera simulação da cópia, cujo efeito de semelhança é apenas aparente, o valor conceitual passa a ter um sentido pejorativo, porque produzido a partir da disparidade, ou seja, obtido por um ardil ou subversão do sofista em relação ao espectador e a obra.
Como se observa os conceitos platônicos pressupõem ponto de vista privilegiado, capaz de julgar com competência o falso do verdadeiro, a cópia do simulacro, tendo como base o ser e não-ser, a essência e aparência, imagem e semelhança. Sabe-se que tais conceitos fundamentaram um conceito de arte como representação de mundo das ideias e dos sentidos, constituindo-se cânones orientadores para selecionar o que seria arte pura e arte simulada ou “não arte”.
No entanto, o mundo está num ininterrupto processo de devir (vir- a – ser,) em que as disparidades, as multiplicidades são a base da totalidade, ou seja, o todo é o resultado de múltiplos elementos; em que a estética inclui o observador (e pontos de vista) como elemento importante para a “re-produção” do sentido, possibilitando leituras de mundo diversificadas e diferenciadas. A arte é entendida também como experiência do real, o que implica representação de um mundo (de essência e aparência) cuja totalidade é também o resultado de disparidades, multiplicidades de experiências vividas na relação produtor, obra, leitor.

A arte pressupõe a criatividade, o que implica dizer que, a simulação de realidades, os pontos de vista como resultado de experiências vividas ou diferenciadas visões de mundo, não são necessariamente falsas ou simulacros. A linguagem da arte, construída a partir de plurissignificação do signo linguístico, não são simulacros da verdade, mas formas diferentes de representação das realidades.
Deste ponto de vista, o ser e o não-ser platônico (entendido como vir-a-ser no plano existencial) são entrelaçamentos indissociáveis. Consequentemente, o simulacro, construído sobre as bases de essência e aparência, semelhança e diferença deve ser analisado, uma vez que não se sustenta mais o ponto de vista privilegiado capaz de julgar e definir o verdadeiro do falso. Pensar a diferença a partir da similitude, pensar a similitude como produto de uma disparidade é pressuposto indispensável à construção de um sentido para o simulacro capaz de elevá-lo de cópia degradada à condição de cópia criativa, multifacetada das verdades diversas dos modelos representacionais da arte, portando níveis variados de essências e, portanto, também arte.

Situar o simulacro na modernidade, talvez não seja tarefa apenas da arte, mas essencialmente da filosofia. Não mais a Filosofia da Academia, mas a filosofia comprometida com as disparidades sociais, das ruas, das favelas. É possível, neste aspecto, uma reversão do platonismo, não pretendida por Nietzsche como abolição do mundo das ideias e do mundo das aparências, ou seja, a destruição de modelos para dar lugar ao caos, mas a restauração do simulacro como um “caos organizado” a partir do qual é possível repensar o ser e o não-ser, construindo um mundo em que a imagem, submetida à semelhança resulte em modelos que seja possível a reprodução da integridade humana.


Bibliografia:

1. DELEUZE. G. “Platão e o simulacro”. In: Lógica do sentido. São Paulo: Perspectiva, 1974
2.PLATÃO. Diálogos. O Banquete/Fédon/Sofista/Político.Textos de José Américo Pessanha; traduções e notas de José Cavalcante de Souza, Jorge Paleikat e João Cruz Costa.-2 ed. – São Paulo: Abril Cultural,1983.

----- Original Message -----

[*] Resenha apresentada como proposta parcial de trabalho para a disciplina de Tópicos Especiais em Correntes da Crítica Literária, sob a orientação do Prof. Dr. Paulo Sérgio Nolasco dos Santos, do Curso de Pós Graduação em Estudos Literários da UFMS, 1999.

4 comentários:

Anônimo disse...

uau... fantástico!!! Só mesmo este texto para eu perceber melhor a questão do simulacro do ponto de vista de Platão, que não consegui perceber nas minhas aulas de teoria, melhor, eu e o resto da turma!
Eu tenho de fazer um trabalho para Teoria e Análise de Imagem, em que este se vai residir na definição de simulacro do ponto de vista de Platão e depois aí trabalhá-lo com a definição de imagem, e este texto vai ser fundamental para a realização do mesmo, pois é um texto muito simples e que no fundo está a ajudar-me na compreensão do assunto a tratar!

Muitos Parabéns!

Celia Firmino disse...

Realmente não um assunto fácil. Procurei apresentar a minha leitura compreensiva e didatizá-la, como resultado de um seminário sobre Platão. Vale lembrar que se trata apenas de uma das leituras possíveis. Fique a vontade para utilizá-lo.

Gisele disse...

Célia,
Gostaria de saber se você me autoriza a usar o mito da caverna com o seu olhar na minha monografia que fala sobre o livro Lavoura Arcaica de Raduan Nassar e o filme homônimo de Luis Fernando de Carvalho. Se autorizar me passe os dados para colocá-lo na bibliografia. O meu e-mail: aquinofaria@ig.com.br

Literatura, Filosofia, Arte, Cultura disse...

Oi Gisele...esse texto "Platão e o simulacro...) refere-se à leitura de "O Sofista" de Platão, articulado com Deleuze. Não é o Mito da Caverna (livro VII, A República, de Platão). Mas se for útil, fique à vontade. Abraços.