domingo, 6 de outubro de 2019

Ser ou não ser, eis a questão: as contradições são as metamorfoses do crescimento humano e da mudança que se quer ver no mundo




“Prefiro ser essa metamorfose ambulante do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo.” Raul Seixas

Ser ou não ser, eis a questão. Eis o dilema que desestabiliza uma sociedade pautada pela inflexibilidade, pelas regras rígidas que determinam o gênero, a sexualidade, o padrão de beleza, o comportamento correto, o amor perfeito, o casamento ideal, a idade certa pra cada realização. Enfim, vivemos tempos caóticos em que as transgressões ao status quo geram a realidade que tentamos compreender. Tempos de violência que suscitam a busca pela paz. Tempos de desespero e solidão que mobilizam campanhas por abraços e afetos. Tempos de intolerância que promovem a compreensão do amor incondicional. Tempos de mortes que impulsionam a valorização da vida. Tempos em que, do caos deverá surgir uma nova ordem, um novo mundo.
É sobre essas contradições e o valor que elas têm para o equilíbrio planetário que proponho essa reflexão a partir de alguns pensadores que já apontavam a impermanência de tudo o que existe como forma de estabilidade, ou seja, “tudo muda o tempo todo no mundo” (Lulu Santos), essa é a dinâmica da vida.  O pensamento de Raul Seixas também responde à inquietação humana, à necessidade de metamorfose que, nada mais é do que uma lei da natureza: a impermanência recolocando caoticamente as coisas no lugar, já que ordem nasce do caos, desde a origem do universo.
Heráclito de Éfeso propõe que vida é constante movimento e, portanto, transformação ou devir. É, por isso, o filósofo do devir, do vir a ser. “O devir é caracterizado por um contínuo fluir das coisas de um contrário ao outro: “as coisas frias se aquecem, as coisas quentes se esfriam, as coisas úmidas secam, as coisas secas umedecem”; “o jovem envelhece, o vivo morre, e assim por diante.” (REALE; ANTISERI, 1990 p. 65). É dele a famosa frase “ninguém se banha duas vezes no mesmo rio”, pois o rio flui, em constante movimento, jamais sendo o mesmo.
            As metamorfoses da vida, a impermanência, o eterno “devir” como lei da natureza aplica-se também ao ser. Para ele, não é possível “ser”, como um processo acabado, na medida em que o homem está em constante mutação, em permanente metamorfose ambulante e, por isso, não é possível consolidar uma identidade permanente. O “ser e não ser” de Heráclito evidencia a concepção de unidade composta pelos contrários, pela duplicidade, ou seja, tudo o que existe traz em si o verso e o reverso como verdadeira identidade de ambos: um depende do outro para identificarem-se.
Da mesma forma que para Heráclito nada existe concretamente, o autor da letra destaca essa impossibilidade de ser estável em relação às concepções existenciais, de se ter uma identidade definida: “Eu prefiro ser essa metamorfose ambulante. Do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo. (...) Sobre o que é o amor. Sobre o que eu nem sei quem sou.”
                        Observa-se que a metamorfose só é possível pela existência dos opostos: Se hoje eu sou estrela. Amanhã já se apagou/ Se hoje eu te odeio/Amanhã lhe tenho amor/Lhe tenho horror. A dualidade interna está manifesta. Ele prefere viver “nessa metamorfose ambulante”, no devir que traz sempre o desafio do novo no lugar da estabilidade que o tempo envelhece.
            Do caos ao cosmos, da conexão interna ao universo, eis a jornada que a humanidade deve percorrer para ordenar o que está disperso, harmonizar o desconcerto das vidas, curar das almas as feridas, transformar o ódio em amor e compreender, finalmente, que o ódio nada mais é que o Amor que adoeceu.

Referência:
Reale, Giovanni. História da filosofia: Antigüidade e Idade Média I Giovanni Reale, Dario Antiseri;-São Paulo: PAULUS, 1990.-(Coleção filosofia)

                                                                                             
                                                                                   Célia Firmino

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