sábado, 14 de abril de 2007

Literatura, História e Sociedade: nas tramas da narrativa


Veja tudo, de vários ângulos e sinta, não sossegue nunca o olho, siga o exemplo do rio que está sempre indo, mesmo parado vai mudando. O senhor veja o efeito, apenas, imagine; veja o jogo de luz e sombra, de cheios e vazios, de retas e curvas, de retas que se partem para continuar mais adiante, de giros e volutas, o senhor vai achando sempre uma novidade. Cada vez que vê, de cada lado, cada hora que vê, é uma figuração, uma vista diferente. O senhor querendo, veja: a casa ou a história. (Autran Dourado)

Na história da humanidade, a narrativa universalizou-se como uma das formas mais utilizadas para enredar o homem nas teias lúdicas da arte da palavra, para segredar-lhe verdades através da mentira, para situá-lo na existência como um contemplador da própria história vivida pelo outro - homo fictus, e nele se determina como consciência desperta a caminho de si mesmo.
Barthes
1 lembra que a narrativa começa com a própria humanidade, naturalmente, numa variedade de gêneros, como se toda matéria fosse boa para o homem confiar suas narrativas. Nela estão presentes os heróis lendários, divinos ou humanos, o mito, a lenda, a epopéia, o conto, a novela, o romance, a comédia, a tragédia, a pantomima, a pintura, a história, o cinema, as histórias em quadrinhos, a conversação. Em todos os tempos, em todos os lugares, em todas as sociedades, em todas as culturas, nas mais variadas manifestações da linguagem, a narrativa está aí, como a vida e, na tessitura do enredo, o homem, convertido em herói, graças ao olhar perscrutador do homem-autor.
O homem está, portanto, no centro da arena onde trava sua mais árdua luta: constituir-se como sujeito de sua história. Aí, ele age e reage perante a dor e o sofrimento, submete-se, impõe-se, sofre, cresce, transforma, progride, inserido numa realidade que se apresenta ao artista literário como um conjunto multiforme de componentes para acabamento estético, sobretudo verbal, já que a palavra é o seu instrumento de trabalhar o mundo. Mas o homem é também a matéria-prima do historiador que investiga a história das sociedades, busca elementos para entender o presente e quais os possíveis reflexos no futuro. O ir-e-vir através de contextos marcados pelas desigualdades, pelas diferenças sócio-culturais, econômicas, políticas, enfim, constrói o tecido histórico da humanidade.
Entre Arte, História e Sociedade, um ponto comum: o homem. O que faz então a diferença entre narrativa literária e narrativa histórica?
Para Bakhtin2, a diferença reside, sobretudo, na perspectiva ou no ponto de vista em que se coloca o artista e, por extensão, o historiador:

O artista é precisamente aquele que sabe situar sua atividade fora da vida cotidiana, aquele que não se limita a participar da vida (prática, social, política, moral, religiosa) e a compreendê-la apenas do seu interior, mas aquele que também ama do exterior – no ponto em que ela não existe para si mesma, em que está voltada para fora e requer uma atividade situada fora de si mesma e do sentido. A divindade do artista reside em participação na exotopia suprema.


Aproximar-se da vida pelo lado de fora é condição sine qua non para que o artista crie uma visão de mundo absolutamente nova. O ato estético caracteriza-se justamente pela possibilidade de engendrar uma nova existência, um novo plano de valores do mundo, um novo plano do pensamento do homem sobre o mundo. Se o artista trabalha a realidade situada fora da vida cotidiana, dando-lhe uma nova forma plástico-visual, concebida pela liberdade criadora, o historiador situa-se dentro da vida, e colhe do cotidiano a matéria de sua produção. Ao contrário do artista, seu procedimento é “empírico”. O historiador investiga, analisa, interpreta a realidade tenta estabelecer relações com o contexto sócio-cultural-histórico em estudo, utilizando para o seu ofício referenciais que permitam a construção científica do documento cuja análise deve possibilitar a reconstituição ou explicação do processo histórico. Para tanto, as obras de arte, além de outras, são fontes importantes como coloca Le Goff3:

Com freqüência, o historiador era apenas um viajante que contava o que vira. Agora, a história é uma enciclopédia; é preciso enfiar tudo nela, desde a astronomia até a química, desde a arte do financista até a do manufator, desde o conhecimento do pintor, do escultor e da arquitetura até a do economista, desde o estudo das leis eclesiásticas, civis e criminais até o das leis políticas.

Embora o artista e o historiador participem do acontecimento existencial, o historiador não pode criar uma realidade nova, um novo plano de valores, um homem novo; sua atividade baseia-se na construção de significados históricos de um determinado contexto, estabelecendo relações com contextos mais amplos. Narrar, portanto, refere-se à atividade artística e historiar no sentido científico do termo, concerne ao historiador da História.
História e Literatura, embora as especificidades, são tangenciais e devem contribuir, solidariamente, para o enriquecimento cultural de qualquer sociedade. Não se pode separar a Literatura do resto da Cultura, tampouco não se pode justificá-la somente pelo contexto histórico como é prática corrente.
Para estabelecer elo entre a História e a Literatura, seria necessária uma outra disciplina que historiasse a Literatura nos referidos contextos de época - a História da Literatura que, em vez de elucidar as especificidades e minimizar os conflitos entre os campos, acabou se perdendo enquanto natureza e finalidade no emaranhado de níveis que as três ciências entrelaçam. O pensamento de Lajolo4 reflete essa problemática:

O texto literário como documento da história ou a história como contexto que atribui significado ao texto literário são caminhos que podem colidir no congestionamento da mão única por onde se enveredam. Nesse sentido, reflexo, expressão, testemunho, articulação, influência e termos similares são o léxico que costuma vincular o texto literário ao que há de coletivo e social para aquém e para além de suas páginas. Aliás, a escolha de um e de outro termo já implica não só menor ou maior grau de entrelaçamento postulado entre literatura e história, como também e, sobretudo, o modo como postula tal entrelaçamento.

O conceito de obra de arte apresenta-se como o ponto nevrálgico, responsável pela confusão entre a História Literária, História da Literatura e História. Se tal questão não está clara para o historiador da Literatura, o objeto do seu trabalho confunde-se como produto da história enquanto processo e como conseqüência natural desta concepção é a arte submetida à perspectiva histórica em detrimento da apreciação do nível estético da obra, prática muito comum nas escolas secundaristas e veiculada por grande parte dos livros didáticos.
Além das escolas e dos manuais didáticos, a tendência de alguns historiadores da Literatura é exercer a mesma atividade do historiador da História, ou seja, tratar os textos literários como documentos da história, como, por exemplo, justificar a obra pelo contexto histórico de que ela provém. Assim, a história é supervalorizada em detrimento do aspecto artístico. Este problema é discutido por muitos críticos e estudiosos de questões de estética, entre eles destacamos Picon5:

Ainda é pouco afirmar que a história se afasta dos valores: ela os recusa. O essencial da análise histórica tende a ligar a obra às causas de que ela provém: a história vê na literatura um conjunto solidário e homogêneo, em que todas as obras se confundem, enquanto expressões de uma época e cadeias de ampla causalidade. Desse ponto de vista, todas as obras se equivalem: não importa ao historiador qual seja a literatura. Poderosa força de nivelamento, a história, desde há um século, não cessa de multiplicar estudos sobre os escritores, dos quais tudo o que se pode dizer é que foram escritores.

Evidentemente, o historiador se aproxima da literatura enquanto prática social consolidada na obra. Para ele, a obra é, dentre outras fontes, importante pelo testemunho que oferece sobre uma época e pelo papel que representou em seu tempo.6 Neste sentido, compreende-se porque a História da Literatura, como desdobramento da história, enveredou pelos mesmos rastros do historiador da História, colocando entre parênteses a Estética, “traduzindo-se em obras que apresentam a literatura como continuun de autores e obras que, ao sucederem-se no tempo, agrupando-se em conjuntos(...)que encontram sustentação em diferentes instâncias, intra ou extraliteratura”, denuncia Lajolo (1994, p. 22).
Assim como a tendência de grande parte dos historiadores é afastar-se da Literatura, não é incomum encontrar historiadores da Literatura distanciarem-se da arte para curvar-se sobre a obra apenas para classificar, sem subordinar, nem excluir, por gerações, por gêneros, por temas de inspiração, por momentos históricos. Eles restringem o seu trabalho ao exercício de catalogação dos nomes, das obras, dos períodos, dos movimentos literários a que pertencem, atribuindo à obra o valor correspondente ao seu lugar na história. E se a obra ganha um lugar na história, obscurece-se em sua natureza e finalidade, ou seja, ser obra literária, portadora de uma essência que a caracteriza como Arte, com sua realidade estética.7
Em virtude disso, a Estética enquanto ciência do valor8 reivindica seu espaço para solidarizar com a História da Literatura, restituindo à obra de arte, não apenas o seu lugar na História, mas, sobretudo, atribuindo-lhe um valor que a eterniza e a transcenda no tempo e espaço históricos.9 À Estética cabe a função de assumir e justificar os valores verticais da obra que não prescinde, é claro, dos valores horizontais da produtividade histórica, aos quais, todavia, não se lhe deve submeter.
Estabelecido o conflito e sem desmerecer o valor de cada categoria ainda por legitimar-se enquanto natureza e função, rendamo-nos às evidências e às impotências: a História da Literatura sem a História Literária, não dá conta de explicar os fenômenos estéticos da obra de arte. A Literatura sem História não teria epígonos.
Cabe, portanto, à História Literária entrelaçar a Literatura e a História, solidarizando a relação entre ambas, ressignificando a obra enquanto objeto de uma experiência, de um sentimento e de juízo de valor inesgotáveis e, portanto, de fruição estética; obra vinculada (e não restrita) a um tempo determinante da produtividade histórica e, por isso mesmo, passível de justificar a escolha do material que o artista usou para dar forma e representar a consciência que ele tinha da realidade. Neste contexto, é possível conceber a obra de arte não apenas como fruição, ela se oferece ao espírito como objeto de interrogação, de pesquisa e de perplexidade, de intuição. A obra surge como um enigma a ser inesgotavelmente desvelado, um acontecimento de expressão literária, justificado pelo grau de função poética presente no texto, em virtude do domínio lingüístico do escritor.
O duplo plano no qual é preciso estudar a obra de arte enquanto acontecimento estético e histórico implica duplo critério para os juízos de valor: o artístico e o histórico, cada qual com seus critérios e níveis discursivos específicos. Ambos, de acordo com as suas especificidades, devem dar conta tanto das relações humanas no seu campo de ações e reações, quanto do potencial criador dos indivíduos, quando superam suas limitações na tentativa de criar o mundo em que vivem. Esta consideração coloca um dos principais problemas de toda a história, tanto literária quanto da literatura: o problema das ideologias e sua relação objetiva com a literatura do ponto de vista estético e histórico.
Considerando esse aspecto, o estudioso literário, consciente dos perigos que o subjetivismo pode impor ao procedimento científico e para que não se perca em abstrações vazias de comprovações, deverá esforçar-se por encontrar coerência entre a teoria e prática, buscar a realidade concreta, ainda que saiba não poder alcançá-la a não ser de uma maneira parcial e limitada, e para isso integrar no estudo da obra literária o estudo dos fatos de consciência, à sua localização histórica e à consciência criadora do artista, relacionando assim o que até então foi teorizado: a história filtrada pela estética.
Assim, do ponto de vista estético, o artista, impregnado de todos os valores da história, alimentado de suas diferenças e de sua coerência permite-se compor, enquanto consciência artística de uma realidade objetiva filtrada por um jeito novo de “olhar” a vida de fora, imagens que transcendem a significação humana, imagens da arte, do homem para o homem.
É na trama narrativa, seja no conto, romance ou novela, que vamos reencontrar a densidade de uma realidade que transcende a si mesma como obra de arte, graças ao ato estético. A vida está, assim, para sempre preservada e aberta à experiência estética dos que buscam, mais do que um exercício produtivo para a memória, ver para além do homo fictus, a nossa própria consciência latejando vidas conquistadas e redimidas, protagonistas de uma história que, graças a arte, não pode jamais ser esquecida. Quem enfatiza tal pensamento é Picon (1969, p. 235), cujas imagens poéticas inserimos aqui para finalizar estas reflexões iniciais:

As imagens da arte não exaltam apenas em nós, como a verdade do conhecimento e a eficácia da ação, o orgulho de ser homem: elas nos fazem ceder a um universo onde invertem todas as fatalidades humanas – uma resplandecente compensação a nosso destino. A “pátria dos quadros” e dos poemas, dos romances e das sinfonias, nos abre o refúgio triunfante de uma humanidade para sempre inocente; de um mundo onde existe seja a dor, seja a alegria, onde o sangue e a morte não são esquecidos, mas onde perderam seu odor de derrota por se terem convertido em seu próprio canto.

Profa. Célia Firmino

1 BARTHES, Roland, 1973, p. 1.
2 BAKHTIN, Mikhail, 1997, p. 204-5.
3 LE GOFF, Jacques, 1990, p. 39.
4 LAJOLO, Marisa, 1994, p. 21.
5 PICON, Gaëtan, 1969, p. 155.
6 “ ... as obras ‘representativas’ são as prediletas do historiador, porque nelas descobre menos a arte do que a história, e porque a hierarquia das obras parece-lhe assim subtraída a todo arbitrário, e tão segura quanto uma cronologia bem estabelecida” ( PICON, idem, p. 158).
7 “A estética não é, na obra de arte, um elemento entre outros: ela é a essência da obra, o que nela atrai, prende – intriga. É integralmente que a obra é realidade estética: tudo nela é tentativa de valor. E, não se trata somente da obra bem sucedida: toda obra que tem a pretensão de ser arte é, de ponta a ponta, realidade estética – valor a medir: forma, cuja única mira é a eficácia da estética” (PICON, op. cit. p. 146).
8 A estética é conceituada por Picon como ciência da valor, já que a experiência estética é precisamente, em face de uma obra concreta, uma investigação do seu valor.
9 “A história também admite que o valor de uma obra possa estar em algo diverso de sua ação sobre outras obras: em sua presença permanente, sua sobrevivência histórica – sua duração. Essa duração, no entanto, segundo o historiador, não é o resultado de um incerto juízo de valor: ele a concebe como uma realidade tangível, indubitável, como uma coisa que pesa sobre nosso julgamento. A oposição do juízo e da duração é, para o historiador, fundamental; em nome desse mesmo princípio, ele designa a permanência de uma obra como sinal de seu valor e recusa ao julgamento o direito de se pronunciar sobra a arte que se está fazendo” (PICON, Ibid. p. 165).
10 TACCA, Oscar, 1978, p. 30.
11 DALCASTAGNÈ, Regina, 1996, p. 15.
Referências Bibliográficas:

ARISTÓTELES. Arte retórica e arte poética. Trad. Antônio Pinto de Carvalho. Rio de Janeiro: Tecnoprint, 1966.

BARTHES, R. Introdução à Análise Estrutural da Narrativa. Trad. Maria Zélia Barbosa Pinto. 4. ed. Petrópolis: Vozes, 1976.

BAKHTIN, Mikhail Mikhailovitch. Estética da criação verbal. Trad. Maria Ermantina Galvão G. Pereira. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1997.

____________1993. Questões de.Literatura e de Estética: a teoria do romance. Trad. Aurora Fornoni Bernardini et all. 3. ed. São Paulo: Unesp.

____________1981. Problemas da Poética de Dostoievski. Trad. Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense Universitária.

DALCASTAGNÈ, Regina. O espaço da dor: o regime de 64 no romance brasileiro. Brasília: UNB. 1996.

DOURADO, Autran. Ópera dos Mortos. 12.ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves. 1995.

LAJOLO, Marisa. Literatura e História da Literatura: senhoras muito intrigantes. In: MALLARD, Letícia et al. História da Literatura: ensaios. Campinas: Unicamp. 1994.

LE GOFF, Jacques. A história nova. Trad. Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 1990.

PICON, Gaëtan. O escritor e sua sombra. Trad. Antônio Lázaro de Almeida. São Paulo: Editora Nacional e Editora da USP, 1969.

TACCA, Oscar. Las voces de la novela. 2.ed. Madrid: Editorial Gredos. 1978.


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