sábado, 7 de abril de 2007

Currículo e Cultura: Gestão de Saberes

Diego não conhecia o mar. O pai, Santiago Kovadloff, levou-o para descobrir o mar. Viajaram para o Sul.
Ele, o mar, estava do outro lado das dunas altas, esperando.
Quando o menino e o pai enfim alcançaram aquelas alturas de areia, depois de muito caminhar, o mar estava na frente de seus olhos. E foi tanta a imensidão do mar e tanto o seu fulgor, que o menino ficou mudo de beleza.
E quando finalmente conseguiu falar, tremendo, gaguejando, pediu ao pai: - Me ajuda a olhar!

Eduardo Galeano

O homem, por natureza, produz cultura. Desde que nasce, busca compreender o mundo em que vive, cria formas de comunicação e expressão com tudo o que o cerca. Historicamente, é um ser que produz saberes que lhes possibilitem inserir-se no meio em que vive favorecendo-lhe a participação social e, portanto, o crescimento pessoal através de novas experiências. Na relação com o mundo, o convívio com as diferenças, com outros tantos saberes, o embate com os discursos alheios, materializados em pontos de vista e modos de ação, ampliam os referenciais e, conseqüentemente, os saberes se transformam, construindo novas formas de compreensão da vida e de ação sobre a realidade. É neste contexto de interação com o mundo, movido pelas necessidades inúmeras, que o homem se constitui em sujeito pela linguagem, ao mesmo tempo em que a transforma, plasticamente, como matéria prima da comunicação e da expressão. Portanto, a linguagem constitui-se a idéia-chave de todas as manifestações humanas e culturais que compõem a história da sociedade em todas as épocas. E à escola cabe a missão de preservar este arcabouço, como guardiã institucionalizada deste percurso histórico, social e cultural. Assim, partindo destes pressupostos, a linguagem será o fio condutor destas reflexões que devem centrar-se na presença ou ausência de uma consciência, no espaço escolar, sobre a linguagem[1] como instrumento de ensino e aprendizagem.
Neste contexto, é possível dimensionar o significado da escola, como espaço socialmente organizado, onde circulam e são transmitidos conhecimentos diversos, materializados em múltiplas linguagens, e sua responsabilidade social frente à educação de gerações presentes e futuras. Responsabilidade que deve concretizar-se num currículo como resultado de reflexões sobre o contexto sócio-histórico no qual esta escola está inserida e, sobretudo, sobre as reais necessidades educativas da população escolar. Algumas perguntas são imprescindíveis para se repensar o percurso a seguir. De que maneira os professores compreendem a linguagem? Quais as características que ela assume nos diferentes componentes curriculares, não sendo mais possível falarmos em linguagem, mas em linguagens, no plural, pelas demandas sociais que o presente século marcado por transformações globais vem gerando: linguagem matemática, linguagem artística, linguagem verbal, linguagem cartográfica, linguagem corporal, linguagem científica, linguagem? Como elas circulam e dialogam entre si? Como são tratadas didaticamente? Como os saberes que as crianças trazem dialogam com os saberes que a escola detém?
É importante considerar que, o grande desafio que a escola enfrenta neste contexto, é encontrar caminhos de ensino e aprendizagem significativos para as crianças. Em muitas experiências no trabalho com formação de professor, diagnosticamos que as práticas escolares, muitas vezes, estão distantes das práticas sociais das crianças. São práticas descontextualizadas, como os próprios professores admitem, porém, sem conhecimentos sólidos que provoquem mudanças. Ora, é necessário considerar que, ao referirmo-nos a práticas sociais que as crianças desenvolvem e trazem para a escola, estamos, essencialmente, tratando de um conceito relativamente novo para a escola, mas que é o resultado natural de inserção nesta sociedade grafocêntrica em que vivemos: o letramento[2]. Um fenômeno que se desenvolve naturalmente pelo contexto social, mas do qual a escola não pode alienar-se sob o risco de comprometer sua principal função: ensinar a ler e a escrever para a cidadania. Significa dizer que, apesar da escola, a leitura e a escrita se impõem como necessidade social. Mas a que leitura e escrita nos referimos? A escolar, alfabética ou a social ? O que significa ler e escrever? Apropriar-se do código ou construir sentidos para as diferentes linguagens de circulação social? Quais os conteúdos que a escola considera ao construir o seu currículo? Leite[3], ao citar Soares, analisa que apropriar-se socialmente da escrita, através de seus usos sociais, é diferente de aprender a ler e escrever, no sentido do domínio do código, ou do domínio da tecnologia da escrita. É possível, portanto, em falarmos sobre diversos níveis de letramento se considerarmos as inumeráveis áreas de produção de linguagens. Por exemplo, há muitas crianças que trazem um nível de letramento em informática muito além do que o próprio professor conhece. É comum encontrarmos estudantes que dominam o uso manuais de jogos eletrônicos, montagem e operação sem que a escola ensinasse; apropriam-se de conhecimentos práticos sobre uso de vídeo, auxiliando, não raras vezes, o professor. Crianças, filhos de feirantes, que com facilidade operam a matemática de forma prática por auxiliarem os pais nas feiras livres. Crianças que compreendem jargões das usinas de álcool, para citar um exemplo de nossa região, sabem como a cana-de-açúcar se transforma em combustível sem terem nunca assistido a uma aula de química. Todos estes exemplos são práticas de letramento e, portanto, de linguagens aprendidas no cotidiano de suas vidas e que a escola pouco tem considerado em seu currículo.
Considerar o que as crianças já sabem sobre práticas sociais de leitura e escrita auxiliaria significativamente a escola a articular os conhecimentos escolares com os saberes das crianças. É, na verdade condição sine qua non para a contextualização do que está sendo ensinado, dispondo a criança a aprendizagem, otimizando as possibilidades de interação dela com os novos conhecimentos dos quais deve se apropriar. Mais ainda, a escola tornaria a criança protagonista de sua aprendizagem, o que modifica substancialmente sua relação com o ensino.
Para tanto, é necessário que a escola ultrapasse os muros virtuais que a separam da vida, já que os muros reais não impedem que a vida venha até a escola, materializada no enorme contingente de problemas sociais que aí circula, apesar dela e que, via de regra, constituem-se em conteúdos de aprendizagem, se considerados. É imprescindível que ela – a escola - se constitua em um espaço real de aprendizagens significativas, considerando reais também os sujeitos das aprendizagens, com saberes e experiências histórica e socialmente construídas. A escola não pode negar, sob pena de implodir-se que, estes sujeitos são portadores de sentimentos e valores que são expressos em diferentes linguagens: a mudez, o grito, a raiva, a indisciplina, o choro, a evasão, a recusa... são tantas as formas de expressão e, quase nunca de comunicação, na medida em que a escola se recusa a escutar, a ver. Neste sentido, é impossível pensar em um currículo se a escola continua sendo a do silêncio. É fundamental que a escola seja um espaço de escuta de si mesma e do outro: um diálogo que se desenvolve através de múltiplas linguagens.
Pensar um currículo para a educação do século XXI, requer que a escola seja um espaço de comunicação e de expressão; um espaço em que as múltiplas linguagens dialoguem entre si, de forma significativa, dinâmica, protagonista. A organização curricular deve propor conteúdos de forma desafiadora, para além dos conteúdos repetitivos, memorizados, artificializados, superficializados e reduzidos a tarefas estanques mais voltadas para a avaliação do que para ensino e aprendizagem, pois que, sem articulação progressiva da construção do conhecimento que se pretende novo. Para tanto, o que as crianças já trazem como saberes deve ser o ponto de partida para a crescente espiral da aprendizagem que nunca se fecha em si mesma, mas sempre avança a cada marco da aprendizagem inicial.
Favorecer a comunicação e a expressão em todos os sentidos, em um ambiente acolhedor no qual a criança se sinta a vontade para falar, discutir, conversar, é fundamental a fim de conhecermos, de fato, as potencialidades que temos na escola e, por que não dizer, medir as distâncias a percorrer para que se efetive a cidadania protagonista. Para que a escola seja um espaço real de escuta e da palavra, é imprescindível que se organize situações didáticas de leitura de textos de diferentes gêneros[4], de apreciação de obras artísticas, de expressão corporal, através de jogos e brincadeiras, de leitura de imagens, de jogos teatrais, de raciocínio matemático em situações significativas de resoluções de problemas; enfim, é preciso propiciar o contato destas crianças com diferentes linguagens para que, possam ir-se revelando em suas potencialidades; possam dizer muito de si mesmas, como pensam, o que sentem, suas dúvidas, angústias, esperanças, frustrações. E ouvindo-se, possam conhecer-se, e nós, ouvindo-as possamos conhecê-las; escutando-nos uns aos outros, possamos nos desvelar mutuamente, numa aprendizagem em que se fundem, porém não se confundem, quem ensina e quem, de repente, aprende, como já poetizava Guimarães Rosa.
Assim, estas crianças poderão perceber que o mundo é um lugar sem fronteiras, tão imenso como o mar. É preciso ajudá-las a olhar. Olhar as diferentes possibilidades de compreender o universo; ajudá-las a ler as múltiplas linguagens que permeiam o contexto social e a se relacionar com elas de forma autônoma; torná-las, enfim, sujeitos e protagonistas de sua própria história. É um processo imbricado de ensino e aprendizagem, em que a sala de aula, mais do que um lugar de circulação de conhecimentos, transforma-se num espaço de aprendizagem real do humano. Esta é a utopia necessária ante os múltiplos desafios do futuro: tornar a educação um trunfo indispensável à humanidade na sua construção dos ideais da paz, da liberdade e da justiça social. (DELORS, p. 11, 2001)
Profa Msc. Célia Firmino


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
DELORS, J. Educação: Um tesouro a descobrir. Relatório para a UNESCO da Comissão Internacional sobre educação para o século XXI. 6 ed. São Paulo: Cortez, 2001.

LEITE, S.A.S. Notas sobre o processo de Alfabetização Escolar. Disciplina: Gestão, Currículo e Cultura. Campinas: Unicamp, 2006.

MEC (1999). Parâmetros Curriculares Nacionais: ensino médio: Linguagens, Códigos e suas tecnologias. Brasília: MEC/Secretaria de educação Média e Tecnológica, 1999.

SCHENEUWLY, B.; DOLZ, J. Gêneros Orais e escritos na escola. Trad. e org. Roxane Rojo e Glaís Sales Cordeiro, Campinas, SP: Mercado de Letras, 2004.

SOARES, M. B. (1988) Letramento – um tema em três gêneros. Belo Horizonte: Ceale/Autêntica.
[1]Tratamos aqui a linguagem como “capacidade humana de articular significados coletivos e compartilha-los em sistemas arbitrários de representação, que variam de acordo com as necessidades e experiências da vida em sociedade”. (PCNEM, p. 125)
[2] Letramento como o resultado da ação de ensinar ou aprender a ler e escrever, ou seja, estado ou condição que adquire um grupo social ou indivíduo como conseqüência de ter-se apropriado da escrita (Soares, 1988).
[3] Doutor em Psicologia, Professor da Faculdade de Educação da Unicamp. Coordenador do grupos de pesquisa ALLE – Alfabetização, Leitura e Escrita.
[4] Conceito de gênero: são “famílias”, grupos de textos que te origens semelhantes, ou seja, nascem em situações de comunicação que ocorrem em uma mesma área de produção de linguagem. (SCHNEUWLY, p.25-26, 2004)

5 comentários:

RSbizera disse...

Célia, seu blog ficou muito bom, parabéns!

Literatura, Filosofia, Arte, Cultura disse...

Obrigada, Re...
Isso vicia mesmo.:)))

Anônimo disse...

Célia...que maravilha !!! Parabéns !!! Abraços, Carlos.

Anônimo disse...

Querida Célia!
Estou visitando seu blog! Visitem meu blog!!!! Que expressão!
Façam comentários para além do...gostei muito! Que necessidade de comunicação! Aproveito para brincar de comunicação.
A palavra comunicar(Martino,2001)tem a seguinte etmologia:Comunicação do latim communicatio; raiz – munis – estar encarregado de; prefixo – co – expressa simultaneidade;terminação – tio – idéia de atividade. Ou seja ATIVIDADE REALIZADA CONJUNTAMENTE.
A teoria da comunicação ainda segundo Martino, demonstra que o estudo da comunicação como uma teoria nasceu com o Cristianismo onde encontramos duas tendências: os anacoretas que viviam em solidão mais radical e, os cenobitas que buscaram ,por necessidade, uma vida em comunidade. Assim os cenóbios era o lugar onde se vive em comum. O rompimento desse isolamento iniciou-se na ceia noturna e o COMUNICATIO, a principio, era o ato de TOMAR A REFEIÇÃO DA NOITE EM COMUM como forma de ROMPER O ISOLAMENTO, bem DIFERENTE DO SIMPLES JANTAR EM COMUNIDADE.Temos então três sentidos importantes para comunicação:
1. O termo comunicação não designa toda e qualquer tipo de relação, mas aquela onde haja elementos que se destacam de um fundo de isolamento.
2. A intenção de romper o isolamento.
3. A idéia de uma realização em comum.

Assim amiga, destaco um ponto do texto postado e um em seu grito do "leia meu blog". No primeiro, tão bem enunciado no trecho "A escola não pode negar, sob pena de implodir-se que, estes sujeitos são portadores de sentimentos e valores que são expressos em diferentes linguagens: a mudez, o grito, a raiva, a indisciplina, o choro, a evasão, a recusa... são tantas as formas de expressão e, quase nunca de comunicação, na medida em que a escola se recusa a escutar, a ver." E no segundo, tento tirar-lhe do isolamento respondende-te. Os dois dizem respeito a diferença entre expressão e comunicação. Contudo fica a certeza de que precisas navegar em outras águas...essas estão calmas demais e para aquém de suas necessidades...do contrário ficará se expressando...se expressando...e não se comunicando.
É lindo ver esse teu parto! Parta!
Beijos com carinho
Lia


HOHLFELDT, A., MARTINO, L.C., FRANÇA, V.V. (Orgs) Teorias da Comunicação. Petrópolis: Editora Vozes, 2001

Anônimo disse...

Estamos felizes em tê-la como orientadora , idealizando um Grupo de Estudos de Língua Portuguesa (GELP), que certamente muito contribuirá para formação continuada dos docentes da DIRETORIA DE ANDRADINA.
Elza,Edilva,Ivone,Lúcia Helena,Rosana