domingo, 29 de abril de 2007

O caminho das borboletas: uma metáfora do crescimento humano

A angústia que nos oprime é a mesma que nos sublima.
As algemas que nos prendem são as mesmas que nos libertam.

A lagarta, cansada de rastejar-se, se sujeita à solidão de um casulo, como caminho de sublimação. Silenciosamente, olvida o mundo exterior e volta-se para o mundo que, em si mesma, lateja pedindo transformação. É a lei natural. Renuncia, portanto, à flor que desabrocha; ao perfume que aspira. Não contempla o sol que nasce, tampouco lhe busca os raios que aquecem. Não mais sente a grama orvalhada pela noite, nem experimenta o aconchego da relva macia. Não ouve o canto dos pássaros, o murmurar de um riacho ou a melodia da natureza em festa. Tudo é silêncio.
No entanto, sob aparente letargia, um universo agita-se, revoluciona. As mutações pulsam, sente nas entranhas e angustia-se, já que não sabe bem o que virá depois. Sabe apenas que não pode e não deve fugir sem comprometer o porvir.
Entrega-se inteira às angústias do momento, às experiências buriladoras. Permite-se sentir, intensamente, as turbulências interiores, as incertezas do que há de vir. Adivinha apenas, que algo mágico lhe acontece. Sente que cresce; sente que vive. Percebe que uma força nova, intimamente se agiganta, fragiliza o casulo e ele se rompe. Movimentos lentos denunciam o despertar, a superação dos limites, o transpor das barreiras. Asas triunfantes ornam-lhe o corpo. A princípio, titubeante, não sabe bem o que vai fazer com elas e, talvez, nem consigo mesma.
Nesse belíssimo instante, a lagarta cede lugar à borboleta, abandona a casca e ensaia o primeiro vôo. No início, vacilante. Insiste. Sabe que é capaz, que é preciso. Posteriormente, exercita-se mais segura, como quem já tem certeza de onde quer chegar.
Quer pousar a flor, agora mais bela, pela poesia que a angústia lhe devolveu; sentir-lhe o perfume, descobrir novos jardins. Quer transparecer à luz do sol, aquecer-se. Quer sentir o orvalho da noite em uma pétala macia. Quer ouvir cantar os pássaros, insetos...Quer contemplar a lua, talvez, contar as estrelas. Quer partilhar a vida, as visões delicadas do mundo, há muito esquecidas. Quer viver...
***
Reconhecemos na metáfora da lagarta a trajetória do crescimento humano. Enquanto permitirmo-nos rastejar, limitamos nosso espaço à poeira do chão, impedidos de alcançar as estrelas.
Num dado momento, sem dia e hora marcados, somos chamados ao casulo, oficina onde laboramos, angustiosamente, a vida íntima, a descoberta de nós mesmos. Nesses momentos, centramos nossas atenções ao que somos, ao que podemos e devemos ser. É um trabalho que requer recolhimento e serenidade, a semelhança da lagarta, cuja casca abriga, pacientemente, a metamorfose.
As nuanças da vida exterior tornam-se refratárias aos nossos sentidos mais profundos. Seqüestram-nos a poesia de contemplar as estrelas, ou a flor que desabrocha; o pôr-do-sol ou o mar que se arrebenta nas rochas; a lua ou as estrelas no firmamento; até mesmo a melodia suave do vento que sopra ou da tempestade que devasta. Como se poesia e realidade fossem, necessariamente, inconciliáveis com o ser que amadurece. Vivemos, intensamente, as angústias de um crescimento que dói.
Voltamo-nos, contudo, para o ser interior e descobrimos que algo mágico também acontece: geramos a força capaz de nos conduzir às nossas bem-aventuranças. Rompemos lentamente o nosso abrigo, nossas defesas, sem saber muito bem o que virá. Movimentos vacilantes, insistentes...seguros. Superamos nossos limites. Descobrimo-nos capazes de dar vida aos nossos sonhos, por um processo divino que faz existir os caminhos. Recuperamos a poesia; estamos prontos para voar.
Neste momento tão significativo de sua vida, em que o casulo está prestes a romper, após um longo período de laboração, permita-se viver a magia de quem conquistou asas e se prepara para voar, com a certeza de quem sabe onde quer chegar.
O seu limite? O universo, sem pólos. Você é o universo.
Descobre o encanto de dar-se, se no casulo aprendeu a pertencer-se. Esse é o caminho de todos os caminhos, de todas as direções. Vence os seus medos e receios. Não se permita rastejar, portando asas.
Segue e confia “que as portas se abrirão, lá, onde você não sabia que havia portas.”

Célia Firmino

sábado, 14 de abril de 2007

Literatura, História e Sociedade: nas tramas da narrativa


Veja tudo, de vários ângulos e sinta, não sossegue nunca o olho, siga o exemplo do rio que está sempre indo, mesmo parado vai mudando. O senhor veja o efeito, apenas, imagine; veja o jogo de luz e sombra, de cheios e vazios, de retas e curvas, de retas que se partem para continuar mais adiante, de giros e volutas, o senhor vai achando sempre uma novidade. Cada vez que vê, de cada lado, cada hora que vê, é uma figuração, uma vista diferente. O senhor querendo, veja: a casa ou a história. (Autran Dourado)

Na história da humanidade, a narrativa universalizou-se como uma das formas mais utilizadas para enredar o homem nas teias lúdicas da arte da palavra, para segredar-lhe verdades através da mentira, para situá-lo na existência como um contemplador da própria história vivida pelo outro - homo fictus, e nele se determina como consciência desperta a caminho de si mesmo.
Barthes
1 lembra que a narrativa começa com a própria humanidade, naturalmente, numa variedade de gêneros, como se toda matéria fosse boa para o homem confiar suas narrativas. Nela estão presentes os heróis lendários, divinos ou humanos, o mito, a lenda, a epopéia, o conto, a novela, o romance, a comédia, a tragédia, a pantomima, a pintura, a história, o cinema, as histórias em quadrinhos, a conversação. Em todos os tempos, em todos os lugares, em todas as sociedades, em todas as culturas, nas mais variadas manifestações da linguagem, a narrativa está aí, como a vida e, na tessitura do enredo, o homem, convertido em herói, graças ao olhar perscrutador do homem-autor.
O homem está, portanto, no centro da arena onde trava sua mais árdua luta: constituir-se como sujeito de sua história. Aí, ele age e reage perante a dor e o sofrimento, submete-se, impõe-se, sofre, cresce, transforma, progride, inserido numa realidade que se apresenta ao artista literário como um conjunto multiforme de componentes para acabamento estético, sobretudo verbal, já que a palavra é o seu instrumento de trabalhar o mundo. Mas o homem é também a matéria-prima do historiador que investiga a história das sociedades, busca elementos para entender o presente e quais os possíveis reflexos no futuro. O ir-e-vir através de contextos marcados pelas desigualdades, pelas diferenças sócio-culturais, econômicas, políticas, enfim, constrói o tecido histórico da humanidade.
Entre Arte, História e Sociedade, um ponto comum: o homem. O que faz então a diferença entre narrativa literária e narrativa histórica?
Para Bakhtin2, a diferença reside, sobretudo, na perspectiva ou no ponto de vista em que se coloca o artista e, por extensão, o historiador:

O artista é precisamente aquele que sabe situar sua atividade fora da vida cotidiana, aquele que não se limita a participar da vida (prática, social, política, moral, religiosa) e a compreendê-la apenas do seu interior, mas aquele que também ama do exterior – no ponto em que ela não existe para si mesma, em que está voltada para fora e requer uma atividade situada fora de si mesma e do sentido. A divindade do artista reside em participação na exotopia suprema.


Aproximar-se da vida pelo lado de fora é condição sine qua non para que o artista crie uma visão de mundo absolutamente nova. O ato estético caracteriza-se justamente pela possibilidade de engendrar uma nova existência, um novo plano de valores do mundo, um novo plano do pensamento do homem sobre o mundo. Se o artista trabalha a realidade situada fora da vida cotidiana, dando-lhe uma nova forma plástico-visual, concebida pela liberdade criadora, o historiador situa-se dentro da vida, e colhe do cotidiano a matéria de sua produção. Ao contrário do artista, seu procedimento é “empírico”. O historiador investiga, analisa, interpreta a realidade tenta estabelecer relações com o contexto sócio-cultural-histórico em estudo, utilizando para o seu ofício referenciais que permitam a construção científica do documento cuja análise deve possibilitar a reconstituição ou explicação do processo histórico. Para tanto, as obras de arte, além de outras, são fontes importantes como coloca Le Goff3:

Com freqüência, o historiador era apenas um viajante que contava o que vira. Agora, a história é uma enciclopédia; é preciso enfiar tudo nela, desde a astronomia até a química, desde a arte do financista até a do manufator, desde o conhecimento do pintor, do escultor e da arquitetura até a do economista, desde o estudo das leis eclesiásticas, civis e criminais até o das leis políticas.

Embora o artista e o historiador participem do acontecimento existencial, o historiador não pode criar uma realidade nova, um novo plano de valores, um homem novo; sua atividade baseia-se na construção de significados históricos de um determinado contexto, estabelecendo relações com contextos mais amplos. Narrar, portanto, refere-se à atividade artística e historiar no sentido científico do termo, concerne ao historiador da História.
História e Literatura, embora as especificidades, são tangenciais e devem contribuir, solidariamente, para o enriquecimento cultural de qualquer sociedade. Não se pode separar a Literatura do resto da Cultura, tampouco não se pode justificá-la somente pelo contexto histórico como é prática corrente.
Para estabelecer elo entre a História e a Literatura, seria necessária uma outra disciplina que historiasse a Literatura nos referidos contextos de época - a História da Literatura que, em vez de elucidar as especificidades e minimizar os conflitos entre os campos, acabou se perdendo enquanto natureza e finalidade no emaranhado de níveis que as três ciências entrelaçam. O pensamento de Lajolo4 reflete essa problemática:

O texto literário como documento da história ou a história como contexto que atribui significado ao texto literário são caminhos que podem colidir no congestionamento da mão única por onde se enveredam. Nesse sentido, reflexo, expressão, testemunho, articulação, influência e termos similares são o léxico que costuma vincular o texto literário ao que há de coletivo e social para aquém e para além de suas páginas. Aliás, a escolha de um e de outro termo já implica não só menor ou maior grau de entrelaçamento postulado entre literatura e história, como também e, sobretudo, o modo como postula tal entrelaçamento.

O conceito de obra de arte apresenta-se como o ponto nevrálgico, responsável pela confusão entre a História Literária, História da Literatura e História. Se tal questão não está clara para o historiador da Literatura, o objeto do seu trabalho confunde-se como produto da história enquanto processo e como conseqüência natural desta concepção é a arte submetida à perspectiva histórica em detrimento da apreciação do nível estético da obra, prática muito comum nas escolas secundaristas e veiculada por grande parte dos livros didáticos.
Além das escolas e dos manuais didáticos, a tendência de alguns historiadores da Literatura é exercer a mesma atividade do historiador da História, ou seja, tratar os textos literários como documentos da história, como, por exemplo, justificar a obra pelo contexto histórico de que ela provém. Assim, a história é supervalorizada em detrimento do aspecto artístico. Este problema é discutido por muitos críticos e estudiosos de questões de estética, entre eles destacamos Picon5:

Ainda é pouco afirmar que a história se afasta dos valores: ela os recusa. O essencial da análise histórica tende a ligar a obra às causas de que ela provém: a história vê na literatura um conjunto solidário e homogêneo, em que todas as obras se confundem, enquanto expressões de uma época e cadeias de ampla causalidade. Desse ponto de vista, todas as obras se equivalem: não importa ao historiador qual seja a literatura. Poderosa força de nivelamento, a história, desde há um século, não cessa de multiplicar estudos sobre os escritores, dos quais tudo o que se pode dizer é que foram escritores.

Evidentemente, o historiador se aproxima da literatura enquanto prática social consolidada na obra. Para ele, a obra é, dentre outras fontes, importante pelo testemunho que oferece sobre uma época e pelo papel que representou em seu tempo.6 Neste sentido, compreende-se porque a História da Literatura, como desdobramento da história, enveredou pelos mesmos rastros do historiador da História, colocando entre parênteses a Estética, “traduzindo-se em obras que apresentam a literatura como continuun de autores e obras que, ao sucederem-se no tempo, agrupando-se em conjuntos(...)que encontram sustentação em diferentes instâncias, intra ou extraliteratura”, denuncia Lajolo (1994, p. 22).
Assim como a tendência de grande parte dos historiadores é afastar-se da Literatura, não é incomum encontrar historiadores da Literatura distanciarem-se da arte para curvar-se sobre a obra apenas para classificar, sem subordinar, nem excluir, por gerações, por gêneros, por temas de inspiração, por momentos históricos. Eles restringem o seu trabalho ao exercício de catalogação dos nomes, das obras, dos períodos, dos movimentos literários a que pertencem, atribuindo à obra o valor correspondente ao seu lugar na história. E se a obra ganha um lugar na história, obscurece-se em sua natureza e finalidade, ou seja, ser obra literária, portadora de uma essência que a caracteriza como Arte, com sua realidade estética.7
Em virtude disso, a Estética enquanto ciência do valor8 reivindica seu espaço para solidarizar com a História da Literatura, restituindo à obra de arte, não apenas o seu lugar na História, mas, sobretudo, atribuindo-lhe um valor que a eterniza e a transcenda no tempo e espaço históricos.9 À Estética cabe a função de assumir e justificar os valores verticais da obra que não prescinde, é claro, dos valores horizontais da produtividade histórica, aos quais, todavia, não se lhe deve submeter.
Estabelecido o conflito e sem desmerecer o valor de cada categoria ainda por legitimar-se enquanto natureza e função, rendamo-nos às evidências e às impotências: a História da Literatura sem a História Literária, não dá conta de explicar os fenômenos estéticos da obra de arte. A Literatura sem História não teria epígonos.
Cabe, portanto, à História Literária entrelaçar a Literatura e a História, solidarizando a relação entre ambas, ressignificando a obra enquanto objeto de uma experiência, de um sentimento e de juízo de valor inesgotáveis e, portanto, de fruição estética; obra vinculada (e não restrita) a um tempo determinante da produtividade histórica e, por isso mesmo, passível de justificar a escolha do material que o artista usou para dar forma e representar a consciência que ele tinha da realidade. Neste contexto, é possível conceber a obra de arte não apenas como fruição, ela se oferece ao espírito como objeto de interrogação, de pesquisa e de perplexidade, de intuição. A obra surge como um enigma a ser inesgotavelmente desvelado, um acontecimento de expressão literária, justificado pelo grau de função poética presente no texto, em virtude do domínio lingüístico do escritor.
O duplo plano no qual é preciso estudar a obra de arte enquanto acontecimento estético e histórico implica duplo critério para os juízos de valor: o artístico e o histórico, cada qual com seus critérios e níveis discursivos específicos. Ambos, de acordo com as suas especificidades, devem dar conta tanto das relações humanas no seu campo de ações e reações, quanto do potencial criador dos indivíduos, quando superam suas limitações na tentativa de criar o mundo em que vivem. Esta consideração coloca um dos principais problemas de toda a história, tanto literária quanto da literatura: o problema das ideologias e sua relação objetiva com a literatura do ponto de vista estético e histórico.
Considerando esse aspecto, o estudioso literário, consciente dos perigos que o subjetivismo pode impor ao procedimento científico e para que não se perca em abstrações vazias de comprovações, deverá esforçar-se por encontrar coerência entre a teoria e prática, buscar a realidade concreta, ainda que saiba não poder alcançá-la a não ser de uma maneira parcial e limitada, e para isso integrar no estudo da obra literária o estudo dos fatos de consciência, à sua localização histórica e à consciência criadora do artista, relacionando assim o que até então foi teorizado: a história filtrada pela estética.
Assim, do ponto de vista estético, o artista, impregnado de todos os valores da história, alimentado de suas diferenças e de sua coerência permite-se compor, enquanto consciência artística de uma realidade objetiva filtrada por um jeito novo de “olhar” a vida de fora, imagens que transcendem a significação humana, imagens da arte, do homem para o homem.
É na trama narrativa, seja no conto, romance ou novela, que vamos reencontrar a densidade de uma realidade que transcende a si mesma como obra de arte, graças ao ato estético. A vida está, assim, para sempre preservada e aberta à experiência estética dos que buscam, mais do que um exercício produtivo para a memória, ver para além do homo fictus, a nossa própria consciência latejando vidas conquistadas e redimidas, protagonistas de uma história que, graças a arte, não pode jamais ser esquecida. Quem enfatiza tal pensamento é Picon (1969, p. 235), cujas imagens poéticas inserimos aqui para finalizar estas reflexões iniciais:

As imagens da arte não exaltam apenas em nós, como a verdade do conhecimento e a eficácia da ação, o orgulho de ser homem: elas nos fazem ceder a um universo onde invertem todas as fatalidades humanas – uma resplandecente compensação a nosso destino. A “pátria dos quadros” e dos poemas, dos romances e das sinfonias, nos abre o refúgio triunfante de uma humanidade para sempre inocente; de um mundo onde existe seja a dor, seja a alegria, onde o sangue e a morte não são esquecidos, mas onde perderam seu odor de derrota por se terem convertido em seu próprio canto.

Profa. Célia Firmino

1 BARTHES, Roland, 1973, p. 1.
2 BAKHTIN, Mikhail, 1997, p. 204-5.
3 LE GOFF, Jacques, 1990, p. 39.
4 LAJOLO, Marisa, 1994, p. 21.
5 PICON, Gaëtan, 1969, p. 155.
6 “ ... as obras ‘representativas’ são as prediletas do historiador, porque nelas descobre menos a arte do que a história, e porque a hierarquia das obras parece-lhe assim subtraída a todo arbitrário, e tão segura quanto uma cronologia bem estabelecida” ( PICON, idem, p. 158).
7 “A estética não é, na obra de arte, um elemento entre outros: ela é a essência da obra, o que nela atrai, prende – intriga. É integralmente que a obra é realidade estética: tudo nela é tentativa de valor. E, não se trata somente da obra bem sucedida: toda obra que tem a pretensão de ser arte é, de ponta a ponta, realidade estética – valor a medir: forma, cuja única mira é a eficácia da estética” (PICON, op. cit. p. 146).
8 A estética é conceituada por Picon como ciência da valor, já que a experiência estética é precisamente, em face de uma obra concreta, uma investigação do seu valor.
9 “A história também admite que o valor de uma obra possa estar em algo diverso de sua ação sobre outras obras: em sua presença permanente, sua sobrevivência histórica – sua duração. Essa duração, no entanto, segundo o historiador, não é o resultado de um incerto juízo de valor: ele a concebe como uma realidade tangível, indubitável, como uma coisa que pesa sobre nosso julgamento. A oposição do juízo e da duração é, para o historiador, fundamental; em nome desse mesmo princípio, ele designa a permanência de uma obra como sinal de seu valor e recusa ao julgamento o direito de se pronunciar sobra a arte que se está fazendo” (PICON, Ibid. p. 165).
10 TACCA, Oscar, 1978, p. 30.
11 DALCASTAGNÈ, Regina, 1996, p. 15.
Referências Bibliográficas:

ARISTÓTELES. Arte retórica e arte poética. Trad. Antônio Pinto de Carvalho. Rio de Janeiro: Tecnoprint, 1966.

BARTHES, R. Introdução à Análise Estrutural da Narrativa. Trad. Maria Zélia Barbosa Pinto. 4. ed. Petrópolis: Vozes, 1976.

BAKHTIN, Mikhail Mikhailovitch. Estética da criação verbal. Trad. Maria Ermantina Galvão G. Pereira. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1997.

____________1993. Questões de.Literatura e de Estética: a teoria do romance. Trad. Aurora Fornoni Bernardini et all. 3. ed. São Paulo: Unesp.

____________1981. Problemas da Poética de Dostoievski. Trad. Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense Universitária.

DALCASTAGNÈ, Regina. O espaço da dor: o regime de 64 no romance brasileiro. Brasília: UNB. 1996.

DOURADO, Autran. Ópera dos Mortos. 12.ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves. 1995.

LAJOLO, Marisa. Literatura e História da Literatura: senhoras muito intrigantes. In: MALLARD, Letícia et al. História da Literatura: ensaios. Campinas: Unicamp. 1994.

LE GOFF, Jacques. A história nova. Trad. Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 1990.

PICON, Gaëtan. O escritor e sua sombra. Trad. Antônio Lázaro de Almeida. São Paulo: Editora Nacional e Editora da USP, 1969.

TACCA, Oscar. Las voces de la novela. 2.ed. Madrid: Editorial Gredos. 1978.


sábado, 7 de abril de 2007

Currículo e Cultura: Gestão de Saberes

Diego não conhecia o mar. O pai, Santiago Kovadloff, levou-o para descobrir o mar. Viajaram para o Sul.
Ele, o mar, estava do outro lado das dunas altas, esperando.
Quando o menino e o pai enfim alcançaram aquelas alturas de areia, depois de muito caminhar, o mar estava na frente de seus olhos. E foi tanta a imensidão do mar e tanto o seu fulgor, que o menino ficou mudo de beleza.
E quando finalmente conseguiu falar, tremendo, gaguejando, pediu ao pai: - Me ajuda a olhar!

Eduardo Galeano

O homem, por natureza, produz cultura. Desde que nasce, busca compreender o mundo em que vive, cria formas de comunicação e expressão com tudo o que o cerca. Historicamente, é um ser que produz saberes que lhes possibilitem inserir-se no meio em que vive favorecendo-lhe a participação social e, portanto, o crescimento pessoal através de novas experiências. Na relação com o mundo, o convívio com as diferenças, com outros tantos saberes, o embate com os discursos alheios, materializados em pontos de vista e modos de ação, ampliam os referenciais e, conseqüentemente, os saberes se transformam, construindo novas formas de compreensão da vida e de ação sobre a realidade. É neste contexto de interação com o mundo, movido pelas necessidades inúmeras, que o homem se constitui em sujeito pela linguagem, ao mesmo tempo em que a transforma, plasticamente, como matéria prima da comunicação e da expressão. Portanto, a linguagem constitui-se a idéia-chave de todas as manifestações humanas e culturais que compõem a história da sociedade em todas as épocas. E à escola cabe a missão de preservar este arcabouço, como guardiã institucionalizada deste percurso histórico, social e cultural. Assim, partindo destes pressupostos, a linguagem será o fio condutor destas reflexões que devem centrar-se na presença ou ausência de uma consciência, no espaço escolar, sobre a linguagem[1] como instrumento de ensino e aprendizagem.
Neste contexto, é possível dimensionar o significado da escola, como espaço socialmente organizado, onde circulam e são transmitidos conhecimentos diversos, materializados em múltiplas linguagens, e sua responsabilidade social frente à educação de gerações presentes e futuras. Responsabilidade que deve concretizar-se num currículo como resultado de reflexões sobre o contexto sócio-histórico no qual esta escola está inserida e, sobretudo, sobre as reais necessidades educativas da população escolar. Algumas perguntas são imprescindíveis para se repensar o percurso a seguir. De que maneira os professores compreendem a linguagem? Quais as características que ela assume nos diferentes componentes curriculares, não sendo mais possível falarmos em linguagem, mas em linguagens, no plural, pelas demandas sociais que o presente século marcado por transformações globais vem gerando: linguagem matemática, linguagem artística, linguagem verbal, linguagem cartográfica, linguagem corporal, linguagem científica, linguagem? Como elas circulam e dialogam entre si? Como são tratadas didaticamente? Como os saberes que as crianças trazem dialogam com os saberes que a escola detém?
É importante considerar que, o grande desafio que a escola enfrenta neste contexto, é encontrar caminhos de ensino e aprendizagem significativos para as crianças. Em muitas experiências no trabalho com formação de professor, diagnosticamos que as práticas escolares, muitas vezes, estão distantes das práticas sociais das crianças. São práticas descontextualizadas, como os próprios professores admitem, porém, sem conhecimentos sólidos que provoquem mudanças. Ora, é necessário considerar que, ao referirmo-nos a práticas sociais que as crianças desenvolvem e trazem para a escola, estamos, essencialmente, tratando de um conceito relativamente novo para a escola, mas que é o resultado natural de inserção nesta sociedade grafocêntrica em que vivemos: o letramento[2]. Um fenômeno que se desenvolve naturalmente pelo contexto social, mas do qual a escola não pode alienar-se sob o risco de comprometer sua principal função: ensinar a ler e a escrever para a cidadania. Significa dizer que, apesar da escola, a leitura e a escrita se impõem como necessidade social. Mas a que leitura e escrita nos referimos? A escolar, alfabética ou a social ? O que significa ler e escrever? Apropriar-se do código ou construir sentidos para as diferentes linguagens de circulação social? Quais os conteúdos que a escola considera ao construir o seu currículo? Leite[3], ao citar Soares, analisa que apropriar-se socialmente da escrita, através de seus usos sociais, é diferente de aprender a ler e escrever, no sentido do domínio do código, ou do domínio da tecnologia da escrita. É possível, portanto, em falarmos sobre diversos níveis de letramento se considerarmos as inumeráveis áreas de produção de linguagens. Por exemplo, há muitas crianças que trazem um nível de letramento em informática muito além do que o próprio professor conhece. É comum encontrarmos estudantes que dominam o uso manuais de jogos eletrônicos, montagem e operação sem que a escola ensinasse; apropriam-se de conhecimentos práticos sobre uso de vídeo, auxiliando, não raras vezes, o professor. Crianças, filhos de feirantes, que com facilidade operam a matemática de forma prática por auxiliarem os pais nas feiras livres. Crianças que compreendem jargões das usinas de álcool, para citar um exemplo de nossa região, sabem como a cana-de-açúcar se transforma em combustível sem terem nunca assistido a uma aula de química. Todos estes exemplos são práticas de letramento e, portanto, de linguagens aprendidas no cotidiano de suas vidas e que a escola pouco tem considerado em seu currículo.
Considerar o que as crianças já sabem sobre práticas sociais de leitura e escrita auxiliaria significativamente a escola a articular os conhecimentos escolares com os saberes das crianças. É, na verdade condição sine qua non para a contextualização do que está sendo ensinado, dispondo a criança a aprendizagem, otimizando as possibilidades de interação dela com os novos conhecimentos dos quais deve se apropriar. Mais ainda, a escola tornaria a criança protagonista de sua aprendizagem, o que modifica substancialmente sua relação com o ensino.
Para tanto, é necessário que a escola ultrapasse os muros virtuais que a separam da vida, já que os muros reais não impedem que a vida venha até a escola, materializada no enorme contingente de problemas sociais que aí circula, apesar dela e que, via de regra, constituem-se em conteúdos de aprendizagem, se considerados. É imprescindível que ela – a escola - se constitua em um espaço real de aprendizagens significativas, considerando reais também os sujeitos das aprendizagens, com saberes e experiências histórica e socialmente construídas. A escola não pode negar, sob pena de implodir-se que, estes sujeitos são portadores de sentimentos e valores que são expressos em diferentes linguagens: a mudez, o grito, a raiva, a indisciplina, o choro, a evasão, a recusa... são tantas as formas de expressão e, quase nunca de comunicação, na medida em que a escola se recusa a escutar, a ver. Neste sentido, é impossível pensar em um currículo se a escola continua sendo a do silêncio. É fundamental que a escola seja um espaço de escuta de si mesma e do outro: um diálogo que se desenvolve através de múltiplas linguagens.
Pensar um currículo para a educação do século XXI, requer que a escola seja um espaço de comunicação e de expressão; um espaço em que as múltiplas linguagens dialoguem entre si, de forma significativa, dinâmica, protagonista. A organização curricular deve propor conteúdos de forma desafiadora, para além dos conteúdos repetitivos, memorizados, artificializados, superficializados e reduzidos a tarefas estanques mais voltadas para a avaliação do que para ensino e aprendizagem, pois que, sem articulação progressiva da construção do conhecimento que se pretende novo. Para tanto, o que as crianças já trazem como saberes deve ser o ponto de partida para a crescente espiral da aprendizagem que nunca se fecha em si mesma, mas sempre avança a cada marco da aprendizagem inicial.
Favorecer a comunicação e a expressão em todos os sentidos, em um ambiente acolhedor no qual a criança se sinta a vontade para falar, discutir, conversar, é fundamental a fim de conhecermos, de fato, as potencialidades que temos na escola e, por que não dizer, medir as distâncias a percorrer para que se efetive a cidadania protagonista. Para que a escola seja um espaço real de escuta e da palavra, é imprescindível que se organize situações didáticas de leitura de textos de diferentes gêneros[4], de apreciação de obras artísticas, de expressão corporal, através de jogos e brincadeiras, de leitura de imagens, de jogos teatrais, de raciocínio matemático em situações significativas de resoluções de problemas; enfim, é preciso propiciar o contato destas crianças com diferentes linguagens para que, possam ir-se revelando em suas potencialidades; possam dizer muito de si mesmas, como pensam, o que sentem, suas dúvidas, angústias, esperanças, frustrações. E ouvindo-se, possam conhecer-se, e nós, ouvindo-as possamos conhecê-las; escutando-nos uns aos outros, possamos nos desvelar mutuamente, numa aprendizagem em que se fundem, porém não se confundem, quem ensina e quem, de repente, aprende, como já poetizava Guimarães Rosa.
Assim, estas crianças poderão perceber que o mundo é um lugar sem fronteiras, tão imenso como o mar. É preciso ajudá-las a olhar. Olhar as diferentes possibilidades de compreender o universo; ajudá-las a ler as múltiplas linguagens que permeiam o contexto social e a se relacionar com elas de forma autônoma; torná-las, enfim, sujeitos e protagonistas de sua própria história. É um processo imbricado de ensino e aprendizagem, em que a sala de aula, mais do que um lugar de circulação de conhecimentos, transforma-se num espaço de aprendizagem real do humano. Esta é a utopia necessária ante os múltiplos desafios do futuro: tornar a educação um trunfo indispensável à humanidade na sua construção dos ideais da paz, da liberdade e da justiça social. (DELORS, p. 11, 2001)
Profa Msc. Célia Firmino


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
DELORS, J. Educação: Um tesouro a descobrir. Relatório para a UNESCO da Comissão Internacional sobre educação para o século XXI. 6 ed. São Paulo: Cortez, 2001.

LEITE, S.A.S. Notas sobre o processo de Alfabetização Escolar. Disciplina: Gestão, Currículo e Cultura. Campinas: Unicamp, 2006.

MEC (1999). Parâmetros Curriculares Nacionais: ensino médio: Linguagens, Códigos e suas tecnologias. Brasília: MEC/Secretaria de educação Média e Tecnológica, 1999.

SCHENEUWLY, B.; DOLZ, J. Gêneros Orais e escritos na escola. Trad. e org. Roxane Rojo e Glaís Sales Cordeiro, Campinas, SP: Mercado de Letras, 2004.

SOARES, M. B. (1988) Letramento – um tema em três gêneros. Belo Horizonte: Ceale/Autêntica.
[1]Tratamos aqui a linguagem como “capacidade humana de articular significados coletivos e compartilha-los em sistemas arbitrários de representação, que variam de acordo com as necessidades e experiências da vida em sociedade”. (PCNEM, p. 125)
[2] Letramento como o resultado da ação de ensinar ou aprender a ler e escrever, ou seja, estado ou condição que adquire um grupo social ou indivíduo como conseqüência de ter-se apropriado da escrita (Soares, 1988).
[3] Doutor em Psicologia, Professor da Faculdade de Educação da Unicamp. Coordenador do grupos de pesquisa ALLE – Alfabetização, Leitura e Escrita.
[4] Conceito de gênero: são “famílias”, grupos de textos que te origens semelhantes, ou seja, nascem em situações de comunicação que ocorrem em uma mesma área de produção de linguagem. (SCHNEUWLY, p.25-26, 2004)