quinta-feira, 15 de fevereiro de 2007


UM PONTO DE VISTA É APENAS A VISTA DE UM PONTO

Leonardo Boff, ao introduzir seu livro1, coloca-nos uma questão tão fundamental quanto existencial na relação do homem com o mundo: para entender como alguém lê e, portanto, constrói sua visão, é necessário saber como são os seus olhos, pois a cabeça pensa a partir de onde os pés pisam, a partir do mundo em que habita.
Estrelinho
2, destituído de visão física, encontra em Gigito a luz para os seus olhos. O cego queria saber tudo. O guia desfolhava-lhe o universo de tal forma que o fez habitar um mundo para o qual o sempre era pouco e o tudo insuficiente. Gigito desenha a Estrelinho uma realidade de fantasias e rendilhados, fértil em detalhes e maravilhas: descrevia o que não havia. Por ausência dos olhos, significativamente para a cultura popular como a porta da alma e do mundo, Estrelinho se enchia da ideação de Gigito. Na “escureza” da visão, tão fácil lhe era “ver” pela audição e sentidos táteis – como o dar a mão - que isto passou-lhe a ser o sentido de sua existência. O mundo sem Gigito não existia. Passou a habitar nele de tal forma que era impossível imaginar a vida sem os caminhos que o guia lhe mostrava.
Porém, o erro da pessoa é pensar que os silêncios são todos iguais, que as cegueiras são todas iguais. É Estrelinho quem dá a lição maior ao referir-se ao seu silêncio, à sua escuridão: cada um é cada um, desbotado à sua maneira neste nada apagado que estes meus olhos tocam. Embora o cenário pintado por Gigito, Estelinho movimentava-se nele à sua maneira, orientado pelos seus sentidos;
Tanto que, na ausência da luz primeira, quando Gigito é convocado para a guerra, uma segunda se fez. Não tão encantadora como só uma alma em estado de céu pode imaginar. Mas outros caminhos se desenharam..Gigito via o que não havia, lembremos deste detalhe. E porque Estrelinho não via, poderia haver. Ambos habitam mundos diferentes e no compartilhamento de saberes, em liberdade plena, poderiam fertilizar a imaginação e construir existências. Para Estrelinho, o conhecimento valia a pena, porque era pra ser sonhado, não vivido. Faltava a Estrelinho o contraponto, a perda, a ausência, o esforço, a autonomia.
Quando Infelizmina entra em cena, ele experimenta um “desmoronamento” do já construído. Aprende que se na escureza pode-se ver a luz, na luz, pode-se perder o brilho das estrelas. É como perder a visão, embora vendo. Cada ponto de vista é apenas a vista de um ponto. E o cego fez-se guia para a que olhava, porém não via, tal era o desencanto da irmã de Gigito encarregada de continuar-lhe a tarefa de desenhar mundos. Espantosamente, Estrelinho experimenta os conflitos da transitoriedade da aprendizagem. Reinventar um outro mundo, a partir dos olhos de Infelizmina. Um mundo mais humano, talvez. A personagem lhe dá a chave da autonomia. Não poderia fazer mais por ele a não ser mostrar-lhe que a vida tem desencantos. E pela primeira vez, Estrelinho sente que pode compartilhar. E experimenta outro aprendizado: o amor.
Para compreender como alguém vê, é essencial conhecer o lugar social de quem olha; que experiências tem, que desejos alimenta, que esperanças o habitam, como assume os dramas existenciais, como a vida e a morte; como concebe a liberdade e a atitude; como se coloca no seu espaço, que contribuições dá à vida e de que forma as recebe no compartilhamento com o outro, que interesses o movem, em que direção? Enfim, quais significados de mundo constrói, a partir de quais referenciais?
Imaginemos que nesta metáfora do cego e do guia, Estrelinho represente a criança que inicia sua trajetória na descoberta do mundo. Destituída das experiências necessárias para orientar a sua própria vida, de acordo com o ponto de vista de Russel
3, é presa dos interesses – sinistros (ou não), que prevalecem face à sua inocência. Neste sentido, ela vê o que lhe desenham.
Imaginemos ainda que, a criança sujeita à educação dos sentidos, dependa de alguém ou de instituições que, supostamente, tenham olhos capazes de orientar-lhe a visão e teremos nesta imagem o significado essencial da educação.
No entanto, a educação, também sujeita à consideração dos muitos pontos de vista: o do Estado, o da Igreja, o dos professores, o dos pais, ou mesmo – e essencialmente, embora esquecido – o das crianças, termina por perder de vista o seu foco de ação, tão conflitantes são os interesses que cada uma defende. Russel (2006, p.19) sintetiza:

Para que a autoridade governe o ensino, deve repousar num ou em vários poderes que consideramos: O Estado, a Igreja, o mestre-escola ou o pai. Já vimos que a nenhum deles se pode confiar o cuidado pelo bem-estar da criança, porque cada qual deseja encaminha-la a um objetivo que nada tem a ver com o seu bem-estar.”

Privar a criança da realidade que a cerca a fim de poupá-la de dissabores não educa para a vida. O mundo maravilhoso que Gigito apresenta a Estrelinho, não o impede de ir para a guerra e lá perder a vida. Assim como a Infelizmina não consegue apresentar a Estrelinho a continuidade do mundo encantado de Gigito pela razão natural de que o lugar social e cultural dela é diferente do irmão. Ou seja, as circunstâncias da vida obedecem a regras que fogem ao controle humano, porém, fazem parte das contradições naturais da vida.
A educação e o espaço escolar, para que justifiquem suas finalidades devem considerar as diferentes necessidades e contextos sócio-histórico-culturais das crianças e adolescentes, a fim de que os interesses institucionais (incluindo a família) não apresentem às crianças o mundo como um mosaico confuso para o qual o melhor seria não vê-lo, gerando a “cegueira” da dependência, o que compromete a autonomia de decisão e escolha tão necessárias na sociedade contemporânea para a preservação da vida e do bem-estar social.
Ao considerar o ponto de vista da criança, as instituições devem exercer a autoridade que lhes é conferida, porém, não de forma autoritária como única verdade possível. A autoridade deve ser exercida de forma a apresentar-se e “esconder-se” ao mesmo tempo para que os impulsos e desejos naturais das crianças e jovens possam ser utilizados na educação, fazendo valer a proposta de uma escola democrática. O exercício da liberdade deve ser objeto da educação, sobretudo na atualidade, em que as demandas sociais exigem pessoas comprometidas com a construção de uma sociedade mais justa e igualitária e, portanto, prontas para saber decidir, saber aprender, saber ser. Estas são competências essenciais para autonomia, promovendo auto descobertas, tanto como pessoas cujos potenciais, muitas vezes subjazem às crenças , às culturas dogmáticas, e. portanto pressões autoritárias das quais necessitam libertar-se, quanto como cidadãos em condições de contribuírem para a construção coletiva de uma sociedade solidária.
Ponderar sobre os limites da liberdade, no processo educacional é tarefa bastante complexa. Acolher os interesses das crianças, não pode significar espontaneísmo a título de democracia. Conduzir a alma humana por mundos inabitáveis, como o faz Gigito a Estrelinho é caminho perigoso por excesso de manipulação de “verdades” pessoais e produção de realidades virtuais. O investimento educacional deve ser no sentido de ensinar a ver para que cada uma seja capaz de caminhar conforme as próprias luzes. Estrelinho tinha no próprio nome o simbolismo da luz, que embora pequena, era a sua luz. No compartilhamento com Gigito aprendeu que embora cego, tinha decisão de passo e estrada, e por isso, foi possível mostrar a Infelizmina o caminho.
Educar para a liberdade pressupõe a compreensão do significado da aprendizagem do humano que envolve a liberdade de aprender ou não aprender. Escolher o que aprender e a liberdade de opinar. Liberdades que se conquistam por aprendizagem gradativamente por uma concepção de educação libertadora e não castradora como historicamente a escola se constituiu: um espaço de silêncio.
Temos muito a aprender com a metáfora de Estrelinho e Infelizmina. Temos muito a refletir sobre a transitoriedade de Gigito ao ver o mundo com olhos que esperança deseja. Esperança, luz, amor, decisão de passo e estrada, ou seja, conhecer para onde se vai, podem, de fato, humanizar homens, leis, justiça e sociedade.



BOFF, Leonardo. A águia e a galinha. Rio de Janeiro: Vozes, 1998.
RUSSEL, Bertrand. Liberdade e autoridade no ensino. In: Estudo, Pensamento e Criação. Livro I. Campinas: UNICAMP. 2006. p. 19.
1 BOFF, Leonardo. A águia e a galinha. Rio d Janeiro: Vozes, 1988.
2 COUTO, Mia. O cego Estrelinho. In: Material de apoio. Escola Gesta e Cultura. Campinas: UNICAMP. 2006.
3 RUSSEL, Bertrand. Liberdade e autoridade no ensino.In: Estudo, Pensamento e Criação. Livro I. Campinas: UNICAMP. 2006. p. 19.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
COUTO, Mia. O cego Estrelinho. In: Material de apoio. Escola Gesta e Cultura. Campinas: UNICAMP. 2006.

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