sábado, 16 de abril de 2011

A criança que fui chora na estrada

por Célia Firmino


A criança que fui chora na estrada.
Deixei-a ali quando vim ser quem sou;
Mas hoje, vendo que o que sou é nada,
Quero ir buscar quem fui onde ficou.

Ah, como hei-de encontrá-lo? Quem errou
A vinda tem a regressão errada.
Já não sei de onde vim nem onde estou.
De o não saber, minha alma está parada.

Se ao menos atingir neste lugar
Um alto monte, de onde possa enfim
O que esqueci, olhando-o, relembrar,

Na ausência, ao menos, saberei de mim,
E, ao ver-me tal qual fui ao longe, achar
Em mim um pouco de quando era assim.


Eu não tenho filosofias, tenho sentidos. E é movida pelos sentidos que ouso arriscar uma possibilidade de sentido, dentre tantos já publicados, para esse profundo soneto de Pessoa. Ninguém filosofou mais sobre a vida do que ele. Avesso a metafísicas, praticou a filosofia dos sentidos por acreditar que já há metafísica bastante o não pensar em nada. E, paradoxalmente, não pensar em nada é pensar sobre tudo. E como pensou! Com os olhos, com os ouvidos, com as mãos, com os pés, com todos os sentidos. Fez-se guardador de rebanhos, para ele, seus próprios pensamentos. E por tê- los amado tanto é que torna-se-nos possível estarmos aqui a filosofar sobre seus rebanhos.
Pessoas, natureza, estradas, sentidos e sentimentos foram a base de sua filosofia, afilosófica, e de seus heterônimos. Nas memórias e saudades, no que já passou antes e no que passará depois, nas coisas que um dia foram e nas coisas que nunca serão, nas ausências e saudades de si, residem a profunda existência de Pessoa que, dentre tantos outros, talvez não tenha conseguido ser ele mesmo. O fato é que, ele mesmo, talvez não saiba, nos despiu em tantos outros e, aprendemos, ainda que tardiamente que, o essencial é saber ver, sem estar a pensar e isso exige um estudo profundo, uma aprendizagem do desaprender. E tristes de nós que trazemos a alma vestida. Tiremos as máscaras pegadas à cara de tanto representarmos o que não somos. Quantos de nós ficamos pelos caminhos do ser quem somos? Que sentimento de ausência de nós nos acompanha, a cada passo que avançamos no ser adulto? Que filosofias fomos cultivando que nos distanciam de nós mesmos? Por que é que ver e ouvir não significa conhecer-nos, nem sentir-nos? A ausência de fidelidade entre o que pensamos e o que somos torna-nos tristes e filósofos. E a necessidade de buscar quem fomos quando vimos ser quem somos, obriga-nos a refletir sobre a perplexidade da existência.
A indagação do sujeito lírico remete-nos à necessidade de atarmos as duas pontas de nossas vidas – o passado e o presente – para encontrarmos as respostas que preenchem as lacunas de nosso vazio interior. Necessariamente, o que somos deve ser o resultado do que fomos. A criança é a imagem, não da inocência, mas das possibilidades do aprender, do neófito que, submetido à vida, deve vivenciar as experiências naturais da infância que prepara a maturidade, num processo evolutivo integral, sem que infância signifique a ruptura para a fase adulta, mas a sua contigüidade. Deixar a criança para ser o adulto, para o eu lírico, significa mutilação do eu profundo, uma dicotomia que, se não conciliada, compromete o ser integral pela paralisia existencial. O sacrifício da infância interior condena a maturidade a uma existência vazia de encantos.
O sentido de descoberta reside na constatação de que o adulto sacrificou a criança e, por isso, o sentimento de vazio só será preenchido com o reencontro entre a criança abandonada que fomos e o adulto vazio que somos, em algum lugar, desta estrada chamada vida.
Estrada é o símbolo do desenvolvimento humano, a trajetória por excelência. O caminho por onde todos, inevitavelmente, teremos de percorrer para avançarmos na conquista da aprendizagem.
O começo é o de todos: ser criança, como condição sine qua non para a maturidade, uma conquista que, para ser integral, deve conciliar as várias etapas da vida, numa convivência harmoniosa, entre os seres plurais que somos, entre os papéis que representamos ao longo da existência. A criança é o protótipo do adulto, assim como o adulto deve integrar a criança que foi no que já aprendeu a ser. Ser adulto não deve significar deixar a criança que fomos. E reviver a criança que fomos no adulto que somos não significa a volta à imaturidade, mas o resgate da simplicidade e de uma certa ingenuidade que tornam as relações humanas mais naturais e sublimes.
Afinal, evoluir implica o movimento de integração e emancipação, em convivência harmoniosa, consolidando os traços da identidade: ser adulto convivendo com criança interior, significa a aprendizagem do humano, em potência máxima. E uma das mais belas aprendizagens é gozar o segredo comum de saber que por toda a parte não há mistério no mundo e que tudo vale a pena. Somos seres plurais, pelas múltiplas experiências e papéis representados nas existências sucessivas. E estes não devem ser contraditórios, mas interdependentes e harmônicos.
No entanto, por um processo de ruptura e contradições, vamos deixando, ao longo da estrada, os outros eus, na crença de que para ser é necessário deixar o que se foi, como página virada, desvinculada dos capítulos atuais de nossa existência. O resultado é o sentimento de frustração por não alcançar a plenitude, uma vez que esta é o resultado da harmonização de todos os “eus”.
O ser fragmentado e estagnado, sem saber muito bem por onde deve seguir, é a tônica da segunda estrofe. O não-saber paralisa as forças interiores e superlativa a angústia.
A busca, no entanto, é a urgência da consciência que desperta. Quais são os laços que nos vinculam à criança interior? Que lugar é esse de nossa memória capaz de nos trazer de volta à infância e nela integrar o adulto? A lembrança é o ponto de contato entre o passado e o presente. O lugar da memória é o porto de passagem para reconciliar os tempos dissociados entre o esquecimento e a lembrança. Não apenas a memória factual, mas a emocional. É disso que trata o poema - olhar para trás significa recordar e reviver. Recordar, etimologicamente, significa voltar a viver no coração. E revivendo, resgatar um pouco do que fomos no que somos, já que “ser adulto” significa, nos tempos modernos, “deixar de ser criança”. O preço é sempre o sentimento de incompletude, amenizado pela lembrança do ser feliz, associado, via de regra, à infância. De qualquer forma, a reconciliação com a criança interior parece-nos uma emergência para a felicidade, um resgate emocional do que fomos como condição para o “vir -a - ser”. A criança que fomos, uma vez reencontrada, traz o sentido renovação do que somos:
“A Criança Nova que habita onde vivo
Dá-me uma mão a mim
E a outra a tudo o que existe
E assim, vamos os três pelo caminho que houver.”

Referências:

PESSOA, Fernando. O Eu profundo e os outros Eus. 15ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980.

Peregrinação

Peregrinação

De que areias e desertos,
É feita tua solidão, tão frágil
Como os rastros na poeira
Esparsos pelo vento?

De que distâncias são feitos
Esses horizontes, imensos,
Paralelos, contínuos,
intocáveis?

Em que céus sem estrelas
Habitam teus sonhos
Tristes, vagos, desconhecidos?

Em que sorriso escondeu
Tua alegria?

Que ilusão roubou-te
A fantasia?

E agora nua e fria,
Por onde andas
a procura de ti?

Célia Firmino