domingo, 30 de outubro de 2011

Incompletude

Há dias em que sinto uma inexistência infinita.
As dimensões do tempo diluem numa realidade eterna.
Não sei quem sou, nem me acho: labirinto interminável.
E, inconclusa, busco a solução do enigma de ser assim: indefinível.
A cada janela da memória, uma experiência incompleta,
um mosaico de mim se forma no etéreo ilimitado.
Sinto-me, apenas, e isso é tudo: uma realidade incerta.
E a angústia de não ser exata,
faz-me prisioneira, cativa do não-ser liberta.
Triste espectro me sustenta, assim, muda, ensimesmada.
E, na órbita de mim, personas variadas.
Eu, ora centro, ora extremidade,
Na surda agonia, de ser assim, efemeridade.
Quem dera, ser eu como a primavera,
cuja presença é essencial ao jardim.
Sem ela, as flores não seriam elas,
no colorido existir.
Quem dera, ser eu o próprio sol,
vital, aos pântanos, aos prados verdejantes.
Sem ele, a vida não seria luz, mas como eu, treva constante.
Inconcebível imaginar a vida sem a vida, atroz dilema.
E nesse delírio consciente, sentir a dor de ser ausente,
Na eterna realidade de ser assim,
incompleta e existente.
É ousadia do pirilampo sonhar ser estrela?
E nos pântanos abrigar a primavera?
Mas o que seria da esperança, não ser gerúndio
de uma paciente e infindável espera?
Viver assim é martírio, é quimera?
Mas o que faço eu de mim,
se já não sou o que fui, deixei-me na estrada.
Se lá fiquei, não me trouxe como bagagem?
Que farei eu de mim, na ânsia do término da viagem,
ao encontrar-me, de mãos vazias, nas estações do tempo,
para nenhum porto de passagem?

Célia Firmino

sábado, 27 de agosto de 2011

Uma viola-de-amor

Vinícius de Moraes

Dêem ao homem uma viola-de-amor e façam-no cantar um canto assim... "Sairei de mim mesmo e irei ao encontro das flores humildes dos caminhos e das lentas aves dos crepúsculos, cujo pipilo suspende na paisagem uma lágrima que nunca se derrama. Sairei de mim mesmo em busca de mim mesmo, em busca de minha imagem perdida nos abismos do desespero, minha imagem de cuja face já não me lembro mais...
"Sairei de mim mesmo em busca das melodias esquecidas na memória, em busca dos instantes de total abandono e beleza, em busca dos milagres ainda não acontecidos...
"Que eu seja novamente aquele que ergue do chão o pássaro ferido e, no calor de sua mão, dá-lhe de morrer em paz; aquele que, em sua eterna peregrinação em busca da vida, ajuda o camponês a consertar a roda do seu carro...
"Que me seja dado, em minhas andanças, restituir a cada ser humano o consolo de chorar dias de lágrimas; e depois levá-lo lá onde existe a luz e chorar eu próprio ante a beleza do seu pranto ao sol...
"Possa eu mirar novamente os pélagos e compreendê-los; atravessar os desertos e amá-los. Possa eu deitar-me à noite na areia das praias e manter com as estrelas em delírio o colóquio da eternidade. Possa eu voltar a ser aquele que não teme ficar só consigo mesmo, numa dura solidão sem deliquescência...
"Bem haja o meu irmão no meu caminho, com as suas úlceras à mostra, que a ele eu hei de curar e dar abrigo no meu peito, Bem haja no meu caminho a dor do meu semelhante, que a ela estarei desvelado e atento...
"Seja a mulher a mãe, a esposa, a amante, a filha, a bem-amada do meu coração; possa eu amá-la e respeitá-la, dar-lhe filhos e silêncios. Possa eu coroá-la de folhas da primavera em seu nascimento, seu conúbio e sua morte. Tenha eu no meu pensamento a ideia constante de querê-la e lhe prestar serviço...
"Que o meu rosto reflita nos espelhos um olhar doce e tranquilo, mesmo no mais fundo sofrimento; e que eu não me esqueça nunca que devo estar constantemente em guarda de mim mesmo, para que sejam humanos e dignos o meu orgulho e a minha humildade, e para eu cresça sempre no sentido de Tempo...
"Pois o meu coração está antes de tudo com os que têm menos do que eu, e com os que, tendo mais do que eu, nada têm. Pois o meu coração está com a ovelha e não com o lobo; com o condenado e não com o carrasco…
"E que este seja o meu canto e o escutem os surdos de carinho e de piedade; e que ele vibre com um sino nos ouvidos dos falsos apóstolos dos falsos apóstatas; pois eu sou o homem, ser de poesia, portador do segredo e sua incomunicabilidade – e o meu largo canto vibra acima dos ócios e ressentimentos, das intrigas e vinganças, nos espaços infinitos...".
Dêem ao homem uma viola-de-amor e façam-no cantar um canto assim, que sua voz está rouca de tanto insulto inútil e seu coração triste, de tanta vã mentira que lhe ensinaram.

in Para uma menina com uma flor (crônicas)
in Poesia completa e prosa: "Para uma menina com uma flor"



sábado, 16 de abril de 2011

A criança que fui chora na estrada

por Célia Firmino


A criança que fui chora na estrada.
Deixei-a ali quando vim ser quem sou;
Mas hoje, vendo que o que sou é nada,
Quero ir buscar quem fui onde ficou.

Ah, como hei-de encontrá-lo? Quem errou
A vinda tem a regressão errada.
Já não sei de onde vim nem onde estou.
De o não saber, minha alma está parada.

Se ao menos atingir neste lugar
Um alto monte, de onde possa enfim
O que esqueci, olhando-o, relembrar,

Na ausência, ao menos, saberei de mim,
E, ao ver-me tal qual fui ao longe, achar
Em mim um pouco de quando era assim.


Eu não tenho filosofias, tenho sentidos. E é movida pelos sentidos que ouso arriscar uma possibilidade de sentido, dentre tantos já publicados, para esse profundo soneto de Pessoa. Ninguém filosofou mais sobre a vida do que ele. Avesso a metafísicas, praticou a filosofia dos sentidos por acreditar que já há metafísica bastante o não pensar em nada. E, paradoxalmente, não pensar em nada é pensar sobre tudo. E como pensou! Com os olhos, com os ouvidos, com as mãos, com os pés, com todos os sentidos. Fez-se guardador de rebanhos, para ele, seus próprios pensamentos. E por tê- los amado tanto é que torna-se-nos possível estarmos aqui a filosofar sobre seus rebanhos.
Pessoas, natureza, estradas, sentidos e sentimentos foram a base de sua filosofia, afilosófica, e de seus heterônimos. Nas memórias e saudades, no que já passou antes e no que passará depois, nas coisas que um dia foram e nas coisas que nunca serão, nas ausências e saudades de si, residem a profunda existência de Pessoa que, dentre tantos outros, talvez não tenha conseguido ser ele mesmo. O fato é que, ele mesmo, talvez não saiba, nos despiu em tantos outros e, aprendemos, ainda que tardiamente que, o essencial é saber ver, sem estar a pensar e isso exige um estudo profundo, uma aprendizagem do desaprender. E tristes de nós que trazemos a alma vestida. Tiremos as máscaras pegadas à cara de tanto representarmos o que não somos. Quantos de nós ficamos pelos caminhos do ser quem somos? Que sentimento de ausência de nós nos acompanha, a cada passo que avançamos no ser adulto? Que filosofias fomos cultivando que nos distanciam de nós mesmos? Por que é que ver e ouvir não significa conhecer-nos, nem sentir-nos? A ausência de fidelidade entre o que pensamos e o que somos torna-nos tristes e filósofos. E a necessidade de buscar quem fomos quando vimos ser quem somos, obriga-nos a refletir sobre a perplexidade da existência.
A indagação do sujeito lírico remete-nos à necessidade de atarmos as duas pontas de nossas vidas – o passado e o presente – para encontrarmos as respostas que preenchem as lacunas de nosso vazio interior. Necessariamente, o que somos deve ser o resultado do que fomos. A criança é a imagem, não da inocência, mas das possibilidades do aprender, do neófito que, submetido à vida, deve vivenciar as experiências naturais da infância que prepara a maturidade, num processo evolutivo integral, sem que infância signifique a ruptura para a fase adulta, mas a sua contigüidade. Deixar a criança para ser o adulto, para o eu lírico, significa mutilação do eu profundo, uma dicotomia que, se não conciliada, compromete o ser integral pela paralisia existencial. O sacrifício da infância interior condena a maturidade a uma existência vazia de encantos.
O sentido de descoberta reside na constatação de que o adulto sacrificou a criança e, por isso, o sentimento de vazio só será preenchido com o reencontro entre a criança abandonada que fomos e o adulto vazio que somos, em algum lugar, desta estrada chamada vida.
Estrada é o símbolo do desenvolvimento humano, a trajetória por excelência. O caminho por onde todos, inevitavelmente, teremos de percorrer para avançarmos na conquista da aprendizagem.
O começo é o de todos: ser criança, como condição sine qua non para a maturidade, uma conquista que, para ser integral, deve conciliar as várias etapas da vida, numa convivência harmoniosa, entre os seres plurais que somos, entre os papéis que representamos ao longo da existência. A criança é o protótipo do adulto, assim como o adulto deve integrar a criança que foi no que já aprendeu a ser. Ser adulto não deve significar deixar a criança que fomos. E reviver a criança que fomos no adulto que somos não significa a volta à imaturidade, mas o resgate da simplicidade e de uma certa ingenuidade que tornam as relações humanas mais naturais e sublimes.
Afinal, evoluir implica o movimento de integração e emancipação, em convivência harmoniosa, consolidando os traços da identidade: ser adulto convivendo com criança interior, significa a aprendizagem do humano, em potência máxima. E uma das mais belas aprendizagens é gozar o segredo comum de saber que por toda a parte não há mistério no mundo e que tudo vale a pena. Somos seres plurais, pelas múltiplas experiências e papéis representados nas existências sucessivas. E estes não devem ser contraditórios, mas interdependentes e harmônicos.
No entanto, por um processo de ruptura e contradições, vamos deixando, ao longo da estrada, os outros eus, na crença de que para ser é necessário deixar o que se foi, como página virada, desvinculada dos capítulos atuais de nossa existência. O resultado é o sentimento de frustração por não alcançar a plenitude, uma vez que esta é o resultado da harmonização de todos os “eus”.
O ser fragmentado e estagnado, sem saber muito bem por onde deve seguir, é a tônica da segunda estrofe. O não-saber paralisa as forças interiores e superlativa a angústia.
A busca, no entanto, é a urgência da consciência que desperta. Quais são os laços que nos vinculam à criança interior? Que lugar é esse de nossa memória capaz de nos trazer de volta à infância e nela integrar o adulto? A lembrança é o ponto de contato entre o passado e o presente. O lugar da memória é o porto de passagem para reconciliar os tempos dissociados entre o esquecimento e a lembrança. Não apenas a memória factual, mas a emocional. É disso que trata o poema - olhar para trás significa recordar e reviver. Recordar, etimologicamente, significa voltar a viver no coração. E revivendo, resgatar um pouco do que fomos no que somos, já que “ser adulto” significa, nos tempos modernos, “deixar de ser criança”. O preço é sempre o sentimento de incompletude, amenizado pela lembrança do ser feliz, associado, via de regra, à infância. De qualquer forma, a reconciliação com a criança interior parece-nos uma emergência para a felicidade, um resgate emocional do que fomos como condição para o “vir -a - ser”. A criança que fomos, uma vez reencontrada, traz o sentido renovação do que somos:
“A Criança Nova que habita onde vivo
Dá-me uma mão a mim
E a outra a tudo o que existe
E assim, vamos os três pelo caminho que houver.”

Referências:

PESSOA, Fernando. O Eu profundo e os outros Eus. 15ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980.

Peregrinação

Peregrinação

De que areias e desertos,
É feita tua solidão, tão frágil
Como os rastros na poeira
Esparsos pelo vento?

De que distâncias são feitos
Esses horizontes, imensos,
Paralelos, contínuos,
intocáveis?

Em que céus sem estrelas
Habitam teus sonhos
Tristes, vagos, desconhecidos?

Em que sorriso escondeu
Tua alegria?

Que ilusão roubou-te
A fantasia?

E agora nua e fria,
Por onde andas
a procura de ti?

Célia Firmino

sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

Foram muitos, os professores...

(Discurso de Paraninfa da turma de Letras 2010)

A vocês que compuseram a minha história...

“Foram muitos, os professores...”
"Há um tempo em que é preciso abandonar as roupas usadas...
Que já têm a forma do nosso corpo...
E esquecer os nossos caminhos que nos levam sempre aos mesmos lugares ...
É o tempo da travessia ...E se não ousarmos fazê-la ...
Teremos ficado ... para sempre ...
À margem de nós mesmos..."

Nesse momento, nenhum pensamento expressa melhor o sentido de estarmos aqui, do que a idéia de travessia. É preciso saber quando uma etapa chega ao final. Se insistirmos em permanecer nela mais do que o tempo necessário, perdemos a alegria e o sentido das outras etapas que precisamos viver. É o sentimento de busca que move esse espírito sempre inquieto, insatisfeito e eternamente aprendiz.
Não poderia deixar de registrar minhas múltiplas aprendizagens nesse longo percurso, participando de uma turma tão especial. O direito à licença poética me autoriza a parafrasear Shakespeare e outros autores:
- Aprendi que trabalhar não significa ganhar dinheiro. Ganhar a vida não é mesma coisa que saber vivê-la. Há aquisições, cujo valor não se traduz em pecúnia. A amizade, a ética, a integridade moral, por exemplo.
Aprendi que se dar do que temos é bom, dar do que somos é sublime. Pessoas. amigos, parceiros, aprendizagens não podem ser mensuráveis monetariamente. O essencial é invisível aos olhos.
- Aprendi a enxergar com o coração, quando as coisas se tornam difíceis e os olhos ficam cegos.
Aprendi que amigos e parceiros, de verdade, podemos usar (e às vezes abusar) sem o risco de perdê-los. Eles ficarão conosco até o fim, apesar de nossas sombras. Com eles, somos livres para errar sem medo, para aprender do jeito que somos.
- Aprendi que uma aula pode ser muito mais que um tempo e uma pauta, pode ser um encontro. E um encontro só acontece quando você consegue tocar a alma. Estar juntos só é possível quando estamos do lado de dentro.
- Aprendi que não importa o tipo de relacionamento que tenhamos com nossos alunos e parceiros de trabalho; um dia sentiremos falta deles: do sorriso, da depressão, do mau humor, da participação, do silêncio, das piadas, das cobranças, da indiferença, do envolvimento, das perguntas, das respostas, enfim, da humanidade de cada um.
- Aprendi que por trás da irritação, da ira, da ansiedade, da tristeza, do silêncio, da contestação, há uma pessoa que espera ser compreendida e amada; basta esculpi-la com o olhar e encontramos sempre um diamante de rara beleza.
- Aprendi que cada pessoa é insubstituível, porque é única. As funções, as profissões são impessoais e transitórias; as coisas passam, a essência fica,; as s pessoas continuam irrepetíveis. Deixam sua marca pessoal no caminho trilhado, como nenhuma outra: isso se chama identidade.
- Aprendi que cativar é ter necessidade um do outro. E a necessidade é a consciência de que é preciso compartilhar para sermos inteiros.
- Aprendi que não é a perfeição que torna o mundo mais bonito; é a paixão. Quando se é apaixonado pelo que faz, o mundo se transforma num espetáculo inesquecível e todas as pessoas, sem exceção, valem por estrelas; irradiam luzes, mesmo em noite escura.
- Aprendi que, às vezes, os nossos melhores professores são os alunos que nos submetem aos testes mais difíceis para esculpir as nossas almas. São os que exigem de nós paciência, tolerância, compreensão, aceitação incondicional, compaixão. Estão por toda a parte, representam os mais variados papeis. São os nossos “amores exigentes.”
- Aprendi que tempo não pára e, no entanto, ele envelhece. Nada é mais perecível do que o tempo. Mas, detemos o poder da eternidade. Eternizamos, em nós, os que aprendemos a amar (a mais sublime aprendizagem); e nos eternizamos nos corações que nos acolheram e nos deram de si mesmos..
- Aprendi, então, que cada pessoa é portadora de uma mensagem e, ao passar por nossas vidas, deixa sempre um pouco de si, assim como leva um pouco de nós. E se alguém se torna bagagem, a saudade é o sintoma de que estamos irremediavelmente do lado de dentro; deixamos de ser “eu” para sermos “nós”; isso se chama crescimento.
Hoje, revisitando a nossa trajetória, posso concluir que, parafraseando o escritor Bartolomeu Campos Queiroz, múltiplas foram as aprendizagens, muitos foram os meus mestres, e saibam que vocês, queridos formandos, estão entre os inesquecíveis. E de cada um juntei cada pedaço e protegi em minha intimidade como o mais valioso bem que possuo e que ninguém pode me tirar. E se posso compartilhar meu segredo, de tudo mais, resta ainda, a certeza da paixão como a primordial metodologia. E essencialmente por isso, tudo ficou definitivamente impossível de ser desaprendido.

Minha eterna e sincera gratidão.

Andradina, 17 de dezembro de 2010.

Profa. Msc. Célia Firmino