sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

Discurso e Ideologia(s): um diálogo entre Althusser e Pêcheux

por Célia Firmino [*]

Althusser e Michel Pêcheux, dois nomes, duas vertentes convergindo para a discussão de um mesmo tema: o que é Ideologia.
Althusser trata de uma categoria, criada por ele – Ideologia (em geral), para distinguir um mecanismo ideológico, abstrato, eterno, a-histórico, imutável em sua forma e em toda a extensão de sua história das ideologias particulares, veiculadas e materializadas através dos aparelhos ideológicos do Estado.
Para o teórico, autor do estruturalismo funcionalista das ciências sociais, tais ideologias particulares são determinadas pelas lutas de classe, cujas práticas e regras materiais são prescritas e reguladas pelos aparelhos, que teriam, assim a função de reproduzir e perpetuar as condições de produção.
A teoria da Ideologia de Althusser (l970) apresenta três hipóteses fundamentais: a ideologia representa a relação imaginária de indivíduos com suas reais condições de existência; a ideologia tem uma existência porque existe sempre num aparelho e nas suas práticas; a ideologia interpela os indivíduos como sujeitos, ou seja, o sujeito é constituído como sujeito pela ideologia; sem a qual, não haveria sujeito.
Estabelecidas as bases da teoria de Althusser, podemos agora introduzir Pêcheux, objeto central deste trabalho, justificando que não o fizemos logo de início por considerar o fato de que Pêcheux retoma Althusser para constituir sua própria teoria, sendo portanto, necessário um breve esboço de suas idéias.
Pêcheux, considerado o iniciador do movimento da análise do discurso, propõe discutir o já dito por Althusser, acrescentando apenas que o funcionamento das ideologias, bem como a interpelação dos indivíduos como sujeitos se dá pelo discurso. Estabelece como objetivo esclarecer os fundamentos de uma teoria materialista dos processos discursivos, iniciando pela explicitação do que significa a expressão condições ideológicas da reprodução/transformação das relações de produção.
Concorda com Althusser ao considerar que a reprodução/transformação se baseia numa divisão em classes, cujo princípio é a luta de classes, reforçando que a ideologia não é o único elemento dentro do qual se efetuaria a reprodução/transformação das relações de produção de uma formação social. Há que se considerar as determinações econômicas que, em última instância, condicionam essa reprodução no seu interior. A luta de classes atravessa o modo de produção em seu conjunto, o que, na área de ideologia, significa que a luta de classes passa por o que Althusser chamou de aparelhos ideológicos do Estado.
Há um caráter intrinsecamente contraditório atribuído ao termo reprodução/transformação e, por extensão, aos aspectos do termo aparelho ideológico do Estado que Pêcheux procura elucidar. Considera errôneo localizar em pontos diferentes, de um lado o que contribui para a reprodução das relações de produção, e do outro o que contribui para a sua transformação.
Algumas considerações que contribuíram para a “contradição” da expressão usada:
1. Os aparelhos ideológicos do estado não são realização da ideologia em geral (ou Ideologia, com maiúscula, segundo Althusser); a Ideologia não se reproduz sob a forma da mentalidade da época, nem sob os costumes do pensamento ou o espírito do tempo (Zeitgeist);
2. É impossível atribuir a cada classe sua ideologia como se cada uma delas vivesse previamente à luta de classes, em seu próprio campo, com suas condições específicas, cada uma com sua concepção de mundo como se a luta de classe fosse o encontro de dois mundos distintos e pré-existentes em que a classe mais forte imporia sua ideologia à outra;
3. Os aparelhos ideológicos do Estado não são a expressão da dominação da ideologia dominante, i.é., da ideologia da classe dominante; os aparelhos ideológicos do Estado são o lugar e meio de realização dessas ideologias.

Está claro para Pêcheux que ideologias não são feitas de idéias, mas de práticas e que o estabelecimento dos aparelhos ideológicos do estado é o palco de uma dura e ininterrupta luta de classes e constituem simultânea e contraditoriamente, o lugar e as condições ideológicas da transformação das relações de produção, daí a expressão reprodução/transformação das relações de produção .
Essas condições contraditórias são constituídas em um momento histórico dado e para uma formação social dada, pelo conjunto complexo, com relações de contradição-desigualdade-subordinação entre seus elementos. Infere-se daí, que os aparelhos não contribuem de maneira igual para a reprodução das relações de produção e para a sua transformação; a contribuição é relativa, tendo em vista as propriedades regionais – religião, política, conhecimento, etc.- no interior do conjunto dos aparelhos ideológicos de estado em função do estado de luta na formação social considerada.
Dessa forma, é possível falar em objetividade material da instância ideológica, sob a forma de formações ideológicas, caracterizada pela estrutura de desigualdade-subordinação do todo complexo com o dominante das formações ideológicas de uma formação social dada; estrutura que não é senão a da contradição reprodução/transformação que constitui a luta ideológica de classe.
É importante ressaltar que quando se coloca a questão da contradição, não se pode pensá-la como a oposição de duas forças que se exercem uma contra a outra em uma mesmo espaço. Segundo Pêcheux, a forma não é simétrica, no sentido de que cada uma tenderia a realizar em proveito próprio a mesma coisa que a outra; a relação de classe é dissimulada no funcionamento do aparelho ideológico do Estado pelo próprio mecanismo que a realiza dando a impressão e evidências naturais à produção e reprodução da sociedade, Estado e sujeitos de direito (livres e iguais no modo de produção capitalista). Tampouco se pode opor reprodução e transformação como se faz com “inércia e movimento”, uma vez que é um processo objetivo que é preciso desvendar.

Evocando tese central de Althusser – a ideologia interpela os indivíduos em sujeitos -,e respectivas proposições: só há prática através de o sob uma ideologia; só há ideologia pelo sujeito e para o sujeito (a categoria do sujeito é constitutiva de toda ideologia), Pêcheux introduz em sua análise alguns termos novos como: Ideologia (no singular), indivíduo, sujeito, interpelar e propõe uma distinção rigorosa entre formação ideológica, ideologia dominante e Ideologia.
Trata, primeiramente da Ideologia, interpelação e do “Efeito Münchhausen”, reforçando que as ideologias ou formações ideológicas têm existência histórica e concreta; enquanto a Ideologia não tem história, e se caracteriza por uma estrutura e um funcionamento que fazem dela uma realidade não-histórica, isto é, omni-histórica, no sentido em que esta estrutura e este funcionamento se apresentam na mesma foram imutável em toda a história. Ideologia (em geral), permite pensar “o homem” como animal ideológico, i.é., pensar em sua especificidade enquanto parte da natureza, segundo a filosofia espinosiana; a história é um imenso sistema “natural-humano” em movimento, cujo motor é a luta de classes. A história da luta de classes é a reprodução/transformação das relações de classes – com caracteres infra-estruturais (econômicos) e superestruturais (jurídico-políticos e ideológicos) que lhes correspondem. E é no interior desse processo “natural-humano” da história que a Ideologia é eterna (omni-histórico) e inconsciente.
O caráter comum das estruturas-funcionamentos designadas, respectivamente, como Ideologia e inconsciente é o de dissimular sua própria existência no interior mesmo de seu funcionamento, produzindo um tecido de evidências “subjetivas” (evidência do sentido), devendo entender-se este último adjetivo não como “que afetam o sujeito”, mas nas quais se constituem o sujeito como origem ou causa de si.
Assim, a evidência do sujeito está aproximada da evidência do sentido, como todas as evidências, inclusive aquelas que fazem com que uma palavra designe uma coisa ou possua um significado. A evidência o sujeito é o efeito ideológico elementar.
Temos então, pelo exposto, a determinação do trabalho de Pêcheux, determinação pela qual a questão das constituição do sentido junta-se à da constituição do sujeito na figura da interpelação. Essa figura tem o mérito de tornar tangível o vínculo superestrutural – determinado pela infra-estrutura econômica – entre o aparelho repressivo do Estado ( aparelho jurídico-político que distribui, verifica, controla “as entidades”) e os aparelhos ideológicos, portanto: o vínculo entre o “sujeito de direito” (aquele que entra em relação contratual com outros sujeitos de direito: seus iguais) e o sujeito ideológico ( aquele que diz ao falar de si mesmo: “Sou eu”). A figura da interpelação mostra esse vínculo entre o aparelho repressivo e o ideológico de maneira tal que o teatro da consciência é observado dos bastidores, lá onde se pode captar que se fala do sujeito, que se fala ao sujeito, antes de que o sujeito possa dizer: “Eu falo”.
Outro mérito da figura da interpelação é designar pela discrepância indivíduo/sujeito o paradoxo pelo qual o sujeito é chamado à existência, ou melhor, o não-sujeito é interpelado-constituído em sujeito pela ideologia. Essa concepção corta pela raiz qualquer tentativa que consiste em inverter, pura e simplesmente, a metáfora que liga o sujeito e as diversas “pessoas morais”, as quais, à primeira vista, parecem ser sujeitos constituídos a partir de uma coletividade de sujeitos, impondo a cada sujeito sua marca ideológica sob a forma de socialização do indivíduo nas “relações sociais” concebidas como intersubjetivas. A evidência do sujeito oculta o ato de que o sujeito é desde sempre um indivíduo interpelado em sujeito ao considerar-se como único, insubstituível e idêntico a si mesmo quando diz: “Sou eu”. A evidência da identidade oculta que esta resulta de um identificação-interpelação do sujeito, suja origem estranha é, contudo, estranhamente familiar.
Para explicar o processo, Pêcheux introduz a noção do “pré-construído” que consiste numa discrepância pela qual um elemento irrompe no enunciado como se tivesse sido pensado antes, em outro lugar, independentemente. O efeito do pré-construído pode então ser considerado uma modalidade discursiva da discrepância pela qual o indivíduo é interpelado em sujeito, ao mesmo tempo que é sempre já sujeito. Essa discrepância entre a estranheza familiar desse discurso já situado antes, em outro lugar, independentemente, e o sujeito identificável, que dá conta de seus atos, funciona por contradição que faz com que o sujeito seja submetido a ela por ignorância, ou apreensão por agudeza de espírito, i.é., estupidez ou ironia.
É nesse jogo de identidade de um sujeito, de uma coisa ou acontecimento, que se pode observar o sintoma evidente da interpelação-identificação. Não se trata aqui apenas de evocar palavras ou o papel da linguagem deixando incerta a questão do signo que designa alguma coisa para alguém, mas se trata fundamentalmente do significante – daquilo que representa o sujeito para um outro significante. É na questão do significante que reside o sujeito como processo de representação interior ao não-sujeito constituído pela rede de significantes, no sentido lacaniano, em que o sujeito é “preso”, resultando daí como causa de si mesmo. Eis aí a contradição: produzir como resultado uma causa (efeito) de si e seu papel motor em relação ao processo do significante na interpelação-identificação. No entanto, a consciência desse processo sofre um apagamento, para o qual, Pêcheux dá o nome de efeito Münchhausen, por alusão à memória do imortal barão que se elevava nos ares puxando-se pelos próprios cabelos.
A questão que se impõe agora, já que a ideologia recruta sujeitos entre os indivíduos, é tentar estabelecer de que modo todos os indivíduos recebem como evidente o sentido do que ouvem e dizem, lêem ou escrevem (do que eles querem e do que se quer lhes dizer), enquanto sujeitos falantes. Talvez a compreensão da forma como se desenvolve processo seja uma maneira de se evitar o efeito Münchhausen, colocando o sujeito como origem do sujeito, ou seja, colocando o sujeito do discurso como sujeito do discurso.

Já foi vimos que sob a evidência de que “eu sou realmente eu” (sujeito social com identidade, família, idéias, intenções e compromissos) há o processo de interpelação-identificação que produz o sujeito no lugar deixado vazio, sob diversas formas impostas pela relações jurídico-ideológicas. A título de exemplo, Pêcheux cita o futuro do subjuntivo da lei jurídica: “aquele que causar dano...” é um lugar vazio, porém a lei sempre encontra um jeito de “agarrar” alguém para esse lugar produzindo um sujeito de direito. O sujeito ideológico é interpelado e reduplica o sujeito de direito sob a evidência da constatação que veicula e mascara a norma identificadora. Assim, é a ideologia através do “hábito” e do “uso” que designa, ao mesmo tempo, o que é e o que deve ser, e isso às vezes por desvios lingüísticos como foi exemplificado. É ainda a ideologia que estabelece os conceitos que devem ser atribuídos a tal ou tal coisa; é a ideologia que estabelece evidências que fazem com que uma palavra ou um enunciado ‘queiram dizer o que realmente dizem” e que mascaram, assim, sob a forma de “transparência da linguagem, aquilo que Pêcheux chama de o caráter material do sentido das palavras e dos enunciados.
Esse caráter material transparente para o sujeito consiste na sua dependência constitutiva do “todo complexo das formações ideológicas”, que se dá por meio de duas teses:
1ª. pela Formação discursiva: aquilo que numa formação ideológica dada, isto é, a partir de uma posição dada numa conjuntura dada, determinada pelo estado de luta de classes, determina o que pode e deve ser dito ( articulado sob a forma de uma arenga, um sermão, de um panfleto,etc.). O sentido de uma palavra, de uma expressão, de uma proposição é determinado pelas posições ideológicas que estão em jogo no processo sócio-histórico que permitem a produção e a reprodução dos discursos que adquirem seu sentido em referência às formações ideológicas nas quais se inscrevem. Assim, os indivíduos são interpelados em sujeitos-falantes, em sujeitos de seu discurso pelas formações discursivas que representam “na linguagem” as formações ideológicas que lhes são correspondentes.
Se uma expressão, uma palavra pode ter um sentido diferente à cada formação discursiva, de modo correlato, palavras, expressões, proposições literalmente diferentes podem ter o mesmo sentido no interior de uma FD. A esse sistema de relações de substituição, paráfrases, sinonímias, etc. que funcionam entre elementos lingüísticos “significantes” em uma formação discursiva dada, designa-se processo discursivo.
Percebe-se um evidente deslocamento da concepção de Referência da lingüística, não mais a relação entre a palavra e o objeto, mas relação entre a palavra e a formação discursiva na qual os sentidos são produzidos e constituídos.
2ª. Pela dissimulação (apagamento) de como ocorre o processo:
É característico de toda FD dissimular, na transparência do sentido que nela se forma, a objetividade material contraditória do interdiscurso, que determina essa formação discursiva como tal, objetividade material essa que reside no fato de que “algo fala” (ça parle) sempre “antes, em outro lugar e independentemente”, isto é, sob a dominação do complexo das formações ideológicas.
Assim, teríamos duas formas de esquecimento [1]:
O esquecimento nº 1 , em que o sujeito é constituído pelo esquecimento daquilo que o determina; o sujeito apaga a FD, quando pensa que ele é a fonte de seu discurso; apagando a FD ele é a fonte, o fundador, “a causa em si”.
O esquecimento nº 2, o sujeito fala alguma coisa a partir de escolhas e reformulações no interior da FD que o domina; “re” – produz seqüência, enunciados de forma consciente ou “pré-consciente”, segundo a psicanálise. É uma espécie de mascaramento já percebido, o sujeito percebe as escolhas erradas.

Portanto, aquilo que se define como EGO (onde se constitui para o sujeito a relação imaginária com a realidade) não pode reconhecer sua subordinação-assujeitamento ao Outro porque esse processo se realiza no sujeito sob a forma de autonomia, ou seja, o sujeito se constitui pelo esquecimento daquilo que o determina.
O funcionamento da Ideologia como interpelação dos indivíduos em sujeitos e, especificamente em sujeitos de seu discurso, se realiza através do complexo das formações ideológica, através o interdiscurso intrincado neste complexo, fornecendo a cada sujeito a “sua realidade”, enquanto sistemas de evidências e de significações percebidas, aceitas, experimentadas.
A identificação do indivíduo com a FD que o domina, fundadora da unidade (imaginária) do sujeito, apoia-se no fato de que os elementos do interdiscurso (sob sua dupla forma – pré-construído e processo de sustentação) que constituem, no discurso do sujeito, os traços que o determina, são reinscritos no discurso do próprio sujeito que se acha então, autor do próprio discurso pelo processo de mascaramento.

Com referência ao interdiscurso e a forma como se dá sua tessitura, Pêcheux considera como aspectos diferenciais dois tipos de elementos: o pré-construído e as articulações, sendo imprescindível agora estabelecer algumas considerações.
Para o autor, o pré-construído e as articulações determinam o sujeito, impondo-dissimulando-lhe seu assujeitamento sob a aparência de autonomia, isto é, através da estrutura discursiva da forma-sujeito. A formação discursiva que veicula a forma-sujeito é a FD dominante. As formações discursivas determinam a dominação da FD dominante pelo interdiscuso que constituem. O pré-construído corresponde ao “sempre-já-aí” da interpelação ideológica que fornece-impõe a “realidade e seu sentido” sob a forma de universalidade (o mundo das coisas).
A articulação constitui o sujeito em sua relação com o sentido, de modo que ela representa, no interdiscurso, aquilo que determina a dominação da forma-sujeito2. Esta relação com o sentido se trata de possibilidades de substituição entre elementos (palavras, expressões, proposições) no interior de uma FD dada.
O interdiscurso, enquanto discurso transverso, atravessa e põe em conexão entre si os elementos discursivos constituídos pelo interdiscurso enquanto pré-construído, que fornece, por assim dizer, a matéria-prima na qual o sujeito se constitui como sujeito-falante, com a formação discursiva que o assujeita. Pêcheux considera que o intradiscurso (habitualmente concebido como o discurso em relação a ele mesmo), nada mais seria do que um efeito do interdiscurso sobre si mesmo, uma espécie de “interioridade” inteiramente determinada como tal do “exterior”. Assim, a forma-sujeito - pela qual o “sujeito do discurso” se identifica com a formação discursiva que o constitui – tende a absorve-esquecer o interdiscurso no intradiscurso, isto é, ela simula o interdiscuso no intradiscurso, de modo que o interdiscurso aparece como o puro “já-dito” do intradiscurso, no qual ele se articula por “co-referência”3.
A função do pré-construído seria ainda a de remeter simultaneamente “àquilo que todo mundo sabe”, isto é, aos conteúdos de pensamento do “sujeito universal”- suporte da identificação – e àquilo que todo mundo, em uma situação dada, pode ser e entender, sob a forma das evidências do “contexto situacional”. A articulação – e o discurso transverso como seu funcionamento – corresponde, ao mesmo tempo, a: “como dissemos” (evocação intradiscursiva); “como todo mundo sabe” (retorno do Universal no sujeito); “como todo mundo pode ver” (universalidade implícita de toda situação “humana”).
Pêcheux conclui que todo sujeito é assujeitado4 no universal como no singular “insubstituível”. A marca do inconsciente como “discurso do Outro” designa no sujeito a presença eficaz do “Sujeito”, que faz com que todo sujeito “funcione”, isto é, tome posição, “em total consciência e em total liberdade”, tome iniciativas pelas quais se torna “responsável como autor de seus atos”, e assim por diante. As noções de asserção e de enunciação estão aí para designar, no domínio da “linguagem”, os atos de tomada de posição do sujeito, enquanto sujeito-falante. A noção do “ato de linguagem” traduz, de fato, o desconhecimento da determinação do sujeito no discurso, já que a tomada de posição não é, de modo algum concebível como um ato originário do sujeito-falante, ela deve ser concebida como o efeito, na forma-sujeito, da determinação do interdiscurso como discurso-transverso, i.é., o efeito de exterioridade do real-ideológico-discursivo, na medida em que ela “se volta sobre si mesma” para se atravessar, resultando no retorno do Sujeito no sujeito. Todo discurso é, portanto, ocultação do inconsciente, assim como todo discurso é um interdiscurso, espaço de construção e reformulação do sentido pelo sujeito.

Sintetizando as controvérsias já abordadas, Pêcheux finaliza as discussões esclarecendo que toda a proposta que pretenda elaborar uma teoria materialista da ideologia e do discurso, esbarrará na problemática de se definir o conceito e situar o ponto de partida. Para Pêcheux , o verdadeiro ponto de partida para compreender a complexidade destas questões e estabelecer uma teoria que dê conta do processo que as realiza, não é o homem, o sujeito, a atividade humana, etc., mas é, sobretudo, as condições ideológicas da reprodução/transformação das relações de produção.

Nota:
[1]: O termo “esquecimento” não está designando aqui a perda de alguma coisa que se tenha sabido, como quando se fala de “perda de memória”, mas o acobertamento da causa do sujeito no próprio interior de seu efeito.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Althusser, L. Ideologia e aparelhos ideológicos de Estado. Lisboa, São Paulo: Presença-Martins Fontes, 1974. (trad. De Idéologie et appareils idéologiques d’ État, 1970)

Pêcheux, M. Discurso e Ideologia(s). In: Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Campinas: Pontes, 1990 (trad. De Discours: structure ou event, 1983).

[*]Resenha do texto Discurso e Ideologia(s), de Michel Pêcheux, produzida pela mestranda Célia Firmino, como trabalho parcial da disciplina de Análise do Discurso, ministrada pela profa. Dra. Silvia Helena Barbi Cardoso, do Curso de Mestrado, da UFMS - Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Campus de Três Lagoas, 1998.