sábado, 2 de fevereiro de 2008

Todo ponto de vista é a vista de um ponto: um estudo sobre Focalização

Célia Firmino
Mestre em Estudos Literários – UFMS/CEUL

Resumo


O artigo é o resultado de um estudo sobre os tipos de focalização em teoria narrativa, e propõe um diálogo entre teóricos sobre a questão, cujas reflexões possibilitam investigar o comportamento do narrador ou foco narrativo em diversos ângulos, ampliando o repertório conceitual sobre esse fascinante personagem do universo ficcional.

Palavras-chave: Focalização – narrador - narrativa – ficção.

ABSTRACT
The article is the result of studies on the types of way in narrative theory, considering a dialogue among theoreticians on the question, whose reflections make possible to investigate the behavior of the narrator or the narrative focus in several points, extending the conceptual set on the fascinating character of the ficcional universe.

Keywords: reading - history - society - school - community.


O mundo deixa de ser inexplicável quando se narra o mundo.
Roland Barthes

Na cultura de todos os povos, em todas as épocas, pensar e conhecer o mundo tem sido o desafio que atravessa gerações. Em estelas de pedra, tijolos de barro cozido, papiros, as marcas das ações do homem no mundo. Hieróglifos, imagens, símbolos, desenhos, formas geométricas, escritas cuneiformes, ideogramas (gênese de palavras) narram a História e as estórias, marcas de um tempo e de um espaço em que a linguagem natural era apenas uma faculdade, ainda inexplicável, de se registrar conhecimentos e experiências ainda rudimentares, o que seria, séculos mais tarde, matéria de acirradas discussões acadêmicas para construir o conceito de narrar e seus termos correlatos: narrativa e narração.
Indagar, investigar, conhecer, contar, relatar, representar [1] são atividades de deciframento inerentes ao homem em sua trajetória na compreensão do próprio universo. Da caverna à luz, da ignorância à verdade, a narrativa é o veículo, através do qual a humanidade trafega para reconstituir e construir, no plano científico, a sua História; no plano estético, as suas estórias. No primeiro, o historiador trabalhando a verdade dos fatos; no segundo, o contador de histórias, reinventando a própria história, num jogo lúdico de faz-de-conta do que é, mas não é, porém pode ser. Afinal, conclui Leite (1983), aquele que narra, não narra só o que viu, o que viveu, o que testemunhou. Mas narra também o que imaginou, o que sonhou, o que desejou. Por essa razão, os limites entre narração e ficção são tão tênues, o que vale dizer que narração e ficção praticamente nascem juntas.
Barthes (apud ROSSUM-GUYON, [s.d]) afirma que a narrativa começa com a própria humanidade, naturalmente, numa variedade de gêneros como se toda matéria fosse boa para o homem confiar suas narrativas. A narrativa está presente nos heróis lendários, divinos ou humanos, no mito, na lenda, na epopéia, no conto, na novela, no romance, na comédia, na tragédia, na pantomima, na pintura, na história, no cinema, nas histórias em quadrinhos, na conversação. Em todos os tempos, em todos os lugares, em todas as sociedades, em todas as culturas, nas mais variadas manifestações da linguagem. A narrativa está aí, como a vida, e na tessitura do enredo, o homem.
E quem é esse homo fictus, ou o homem criado pela ficção? E.M. Forster (1974, p.43) assim o definiu: [...] Geralmente nasce, é capaz de morrer, requer pouco alimento ou sono, está incansavelmente ocupado com relações humanas, e – o mais importante – podemos saber mais sobre ele do que sobre qualquer dos nossos semelhantes, porque seu criador e narrador são um só. Estivéssemos preparados para uma hipérbole, a esta altura, poderíamos exclamar: Se Deus pudesse contar a estória do Universo, o Universo se tornaria fictício.

Cada espaço, cada tempo, cada personagem, sob o ponto de vista de um astuto narrador (voz que nos fala, vela ou desvela, esconde-se por detrás das máscaras, marionetiza personagens) insere-se na história ou estória como recortes do cotidiano, constituindo-se desafio ao leitor o juntar-lhe os pedaços na recomposição da verdade ou da mentira; do universal ou particular, na constatação do verossímil ou do verdadeiro. Uma leitura competente exige esse desvelamento, o que só é possível quando se conhece o processo de construção da narrativa enquanto arte, os elementos estruturais engendrados com a finalidade de um efeito estético e reflexivo. Só então, podemos dar vida à narrativa, conferir-lhe os sentidos possíveis aos nossos sentidos.
Considerando, portanto, o caráter de universalidade da narrativa e sua variedade, compreende-se o vasto material de estudo existente sobre este gênero tão surpreendente e fascinante quanto a própria vida. Este trabalho, sem pretensão de originalidade, não tem o propósito de esgotar o que, por natureza, é inesgotável; tampouco, constituir-se um tratado filosófico e estético sobre a narrativa enquanto arte literária. No entanto, as considerações que se seguem tentarão tecer uma descrição e reflexão em torno do que já existe a respeito de um dos elementos da narrativa: o narrador e suas categorias ou tipologia, como prefere Friedman, em análise de Leite (1983). A escolha do tópico justifica-se por ser o narrador o demiurgo do universo ficcional a entidade que habita para além das máscaras, manejador de disfarces, ora onisciente, ora intruso, ora neutro, ora testemunha, ora protagonista, tratado nestas reflexões como o refletor sob cuja luz o mundo se reflete e é refletido, onde as estórias permanecem vivas como memória de uma História que não pode ser esquecida.

Imitar e Narrar: uma discussão filosófica

Qualquer tentativa de compreender a narrativa enquanto fenômeno literário ou ficção esbarra-se numa questão tão antiga quanto a filosofia: mimese ou imitação.
A arte enquanto representação da realidade, os modos de narrar e os efeitos que causam no leitor ou ouvinte tem suas origens em Platão e Aristóteles.
A distinção entre imitar e narrar aparece em A república, de Platão (1975, p.90-1):


[...] há uma maneira de falar e contar que acompanha o verdadeiro homem honesto, quando tem alguma coisa a dizer; e há uma outra, diferente, à qual se prende e se conforma sempre o homem de natureza e educação contrárias [...]. O homem ponderado, segundo me parece, quando tiver de referir, numa narração, uma frase ou uma ação de um homem bom, procurará exprimir-se como se fosse esse homem e não se envergonhará de tal imitação, sobretudo se imitar qualquer aspecto de firmeza e de sabedoria. Imitará menos vezes e menos bem o seu modelo quando este tiver falhado, sob o efeito da doença, do amor, da embriaguez ou de qualquer outro acidente. E, quando tiver de falar de um homem indigno dele, não se permitirá imitá-lo a sério, a não ser de passagem, quando esse homem tiver feito qualquer coisa de bem [...]

A concepção platônica de imitação como cópia imperfeita da realidade, de cujo ato o homem de bem deve envergonhar-se, como evidencia o trecho citado, é discutida no diálogo sobre o Sofista (PESSANHA, 1993). Lá, Platão (1975) conceitua a arte como arte do simulacro ou mimética do ilusionismo . A base de sua filosofia é a existência do mundo das essências (idéias), do qual o mundo das aparências (sensível) seria uma cópia degradada do modelo primitivo, original. Qualquer tentativa de representar o mundo inteligível redundaria em cópia de cópia: bem feita quando assegurada a sua semelhança [2] em relação ao original; e imperfeita, quando destituída de existência moral, logo, simulacro da verdade [3] e simulação de cópia.
A idéia contida no trecho da citação “numa narração [...] exprimir-se como se fosse esse homem e não se envergonhará de tal imitação, sobretudo se imitar qualquer aspecto de firmeza e de sabedoria” é a garantia de semelhança, marcada pelo elemento comparativo “como se” , assegurando a existência moral pelas virtudes “firmeza e sabedoria” . Conclui-se que narrar o que é bom e virtuoso seria a representação mais fiel ao modelo original, uma imitação que contribui para a elevação moral e espiritual do homem; enquanto imitar o que é degradante no mundo sensível é realizar uma má imitação (imitação da imitação) acorrentando o homem ao estado primitivo das paixões.
A concepção aristotélica é menos moralista na medida em que define imitação não como cópia das aparências, mas, ao contrário, como reveladora das essências. Para Aristóteles (1964, p. 264), “imitar é uma forma de conhecer que, inclusive diferencia o homem dos outros seres vivos”, e não degradar-se como concebe Platão. Diz ele, na sua Poética: [...] é possível imitar os mesmos objetos nas mesmas situações, numa simples narrativa, ou pela introdução de um terceiro, como faz Homero, ou insinuando-se a própria pessoa sem que intervenha outra personagem, ou ainda apresentando a imitação com a ajuda de personagens que vemos agirem e executarem elas próprias [...] Daí vem que alguns chamam a essas obras dramas, porque fazem aparecer e agir as próprias personagens.

Ao citar Homero, denuncia preferir a épica para imitação direta à narração das ações, invertendo assim, o juízo platônico, além de estabelecer os embriões dos tipos de focalização:

O poeta deve falar o menos possível por conta própria, pois não é procedendo assim que ele é imitador. Os outros poetas (...) ao longo do poema procedem como atores em cena, imitam pouco e raramente; ao passo que Homero, após curto preâmbulo, introduz imediatamente um homem, uma mulher ou outra personagem, e não somente nenhuma carece de caráter, senão que de cada uma são estudados os costumes. (ARISTÓTELES, 1964, p. 314.)

Focalização: teorias e conceitos críticos

É inquestionável que Platão e Aristóteles lançaram os germens da polêmica discussão em torna da narrativa, sua organização e função tanto no campo estético quanto histórico.
Arriscamos afirmar que nenhuma teoria sobre ficção ou arte pode-se constituir sem os questionamentos desses filósofos e que o caráter de universalidade da narrativa se deve a esses expoentes do pensamento ocidental. A variedade dessa forma literária dificulta a enumeração de todas as características, embora os traços comuns que a classifica como tal gênero. Não nos cabe aqui refletir sobre todas elas, porém elaborar um trabalho sistematizado sobre um dos seus elementos: ponto de vista ou perspectiva narrativa ou ainda focalização.
Retomando o conceito de mimese como imitação da realidade, entendemos que a questão do ponto de vista não é apenas uma discussão acadêmica de cunho literário, mas de caráter também filosófico e existencial. Analisando flashes do cotidiano, percebemos que emitir juízo de valor, posicionar-se, julgar coisas e pessoas de uma determinada perspectiva é uma atitude inerentemente humana. A narrativa literária, portanto, representa ou imita, essencialmente as ações do homem no mundo, situado num tempo e num espaço, interferindo no modus vivendi individual e social ao mesmo tempo em que é por ele influenciado. Portanto, mimese como imitação não deve ser reduzida à concepção de literatura como arte da mentira, como falsa representação da realidade. Da mesma forma que não se confunde realidade com verdade, o que é ficcional não é verdadeiro; porém, pode ter um efeito verossimilhança se a imitação é bem feita, levando o leitor à catarse [4].
Acreditamos que tais reflexões serviram de pressupostos para a teoria do ponto de vista ou focalização, que tentam explicar justamente as várias possibilidades de contar um fato, narrar uma história. A questão central dos pontos de vista é: quem narra? Em que pessoa: 1ª ou 3ª? de longe ou de perto? A noção de ponto de vista nos remete a todos os problemas levantados pelas relações que o narrador mantém com o leitor e que efeito pretende o autor conseguir com determinadas técnicas de focalização, entendendo-a como processo pelo qual os eventos diegéticos são representados.
Sabe-se que a disparidade de vocabulário é um dos problemas que obstaculizam a elaboração de uma teoria coerente e unificada, apresentado conceitos variados dependendo de cada país. É importante considerar que subjacente a cada teoria e conceitos, está o contexto histórico e ideológico tecendo regras e sentidos, legitimando o caráter científico dos trabalhos já consagrados.
Assim, delimitando o nosso objeto de estudo, foco narrativo, focalização ou ponto de vista são os três termos mais usados. No Brasil, o habitual é Foco Narrativo, contudo optamos por Focalização, já que o foco sugere a sensação de estaticidade, de um ponto gerador fixo e o processo narrativo é dinâmico. A focalização está centrada na veiculação, na movimentação de quantidade e qualidade de informações. O papel do focalizador é assumir uma voz, postar-se de uma perspectiva e informar:

- quantidade de informações: Onde? Quando? Quem? O quê?
- qualidade de informações: Como? Por quê? Para quê?

Como organizador das idéias, ele as seleciona de acordo com a necessidade, relevância, qualidade e importância. Mais uma vez, reafirmamos aqui a influência do contexto na qualidade das informações.
A seguir, uma descrição sumária das principais teorias e críticas sobre a Focalização.
Genette (1988, p. 249-255) estabelece três tipos de Focalização: externa, interna e onisciente, considerando a modalidade de perspectivação narrativa:

1. Focalização externa:
[...] a focalização externa é constituída pela estrita representação das características superficiais e materialmente observáveis de uma personagem, de um espaço ou de certas ações; sem outro intuito que não seja esse de limitar a informação faculta da ao exterior dos elementos diegéticos representados, a focalização externa decorre por vezes de um esforço do narrador, no sentido de se referir de modo objetivo e desapaixonado aos eventos e personagens que integram a história. [...]

2. Focalização interna:
[...] a focalização interna corresponde à instituição do ponto de vista de uma personagem inserida na ficção, o que normalmente resulta na restrição dos elementos informativos a relatar, em função da capacidade de conhecimento dessa personagem. Erigida em sujeito da focalização, a personagem desempenha então uma função de focalizador [...], filtro quantitiativo e qualitativo que rege a representação narrativa. O que está em causa não é, pois, estritamente aquilo que a personagem vê, mas de um modo geral o que cabe dentro do alcance do seu campo de consciência, ou seja, o que é realmente alcançado por outros sentidos, além da visão , bem como o que já é conhecido previamente e o que objeto de reflexão interiorizada.[...]

A focalização interna pode ser:
a) Fixa: a focalização centra-se numa só personagem (habitualmente o protagonista);
b) Múltipla: a focalização centra-se, de forma momentânea e episódica, não em uma personagem, mas em um grupo de personagens da história, com capacidade de conhecimento. Homogeneizadas para esse efeito. Por exemplo, O crime do Padre Amaro, “os empregados da administração”, “em grupo, de olho arregalado, observavam os dois padres, que tinham parado à esquina da igreja” (QUEIRÓS, E. de O crime do Padre Amaro, p. 204-5)
c) Variável: a circulação do núcleo focalizador do relato passa por várias personagens.

3. Focalização Onisciente

Por focalização onisciente entender-se-á, pois, toda a representação narrativa em que o narrador faz uso de uma capacidade de conhecimento praticamente ilimitada, podendo, por isso, facultar as informações que entender pertinentes para o conhecimento minudente da história; colocado numa posição de transcendência em relação ao universo diegético (a não confundir, no entanto, com essa outra transcendência do autor real que concebeu a história), o narrador comporta-se como demiurgo, controlando e manipulando soberanamente os eventos relatados, as personagens que os interpretam, o tempo em que se movem, os cenários nos quais se situam etc.

Carlos Reis e Lopes (1988) observa que, por mais onisciente pretenda ser o narrador, sempre haverá algo de seletivo na organização do relato, não implicando por isso uma representação absoluta e, portanto, é questionável o conceito de onisciência com o narrador que “tudo sabe”.
Analisando ainda a perspectiva narrativa, Genette (1988) propõe a seguinte classificação para o narrador:

a) Autodiegético: designa entidade responsável por uma situação ou atitude narrativa específica: aquela em que o narrador relata suas próprias experiências como personagem central dessa história.
b) Heterodiegético: designa particular relação narrativa: aquela em que o narrador relata uma história à qual é estranho, uma vez que não integra nem integrou, como personagem, o universo diegético em questão.[...] se caracteriza pelo fato de narrar uma história que conhece pela sua experiência de testemunha direta dessa história.
c) Homodiegético: é a entidade que veicula informações advindas da sua própria experiência diegética; quer isto dizer que, tendo vivido a história como personagem, o narrador retirou daí as informações de que carece para construir o seu relato, assim se distinguindo do narrador heterodiegético, na medida em que este último não dispõe de um conhecimento direto. Por outro lado, embora funcionalmente se assemelhe ao narrador autodiegético, o narrador homodiegético difere dele por ter participado na história não como protagonista, mas como figura cujo destaque pode ir da posição de simples testemunha imparcial a personagem secundária estreitamente solidária com a central.

Leite (1983), em estudo no qual faz dialogar os autores que se seguem, considera que Jean Poullion, em O tempo no romance, procura adaptar uma visão fenomenológica do mundo, inspirada em Sartre, a uma teoria das visões na narrativa, articulada à questão de tempo. O referido autor, analisando a relação narrador-personagem, estabelece três tipos de procedimento para o narrador:

1. A visão com: o narrador limita-se ao saber da própria personagem sobre si mesma e sobre os acontecimentos.
2. A visão por trás: o narrador domina todo um saber sobre a vida da personagem e sobre o seu destino. Corresponde ao narrador onisciente.
3. A visão de fora: se renuncia até mesmo ao saber que a personagem tem, e o narrador limita-se a descrever os acontecimentos, falando do exterior, sem que possamos nos adentrar nos pensamentos, emoções, intenções ou interpretações das personagens.

Leite (1983) observa que Maurice – Jean Lefebve ao reler Jean Pouillon tenta reaproveitar as suas categorias da visão à luz de uma distinção clara entre Diegese (ou história) e Discurso (narrativa).
Na sua concepção, a Visão por detrás, típica do romance clássico, especialmente do século XIX, traduziria a confiança burguesa na objetividade, na possibilidade de explicação racional e exaustiva dos fatos psicológicos e sociais. Nesse tipo de romance, discurso e diegese estão equilibrados. A visão com é típica de certa linha dos romances do século XX, em 1ª pessoa, com o uso do monólogo interior e o fluxo de consciência; e do romance epistolar do século XVIII. Nesses romances há predominância da narração sobre a diegese. Para Lefebvre, seria uma maneira de expressar a desconfiança do homem moderno na sua capacidade de apreender um mundo caótico e fragmentado, em que não consegue se situar com clareza. O mesmo efeito se observa com o uso da visão de fora, com forte influência do cinema, característica, portanto do século XX; nesse caso, há o predomínio da diegese sobre a narrativa.
Toda visão é convenção e, portanto, todo narrador finge. Alerta-nos ainda para os silêncio da narração, as elipses, as indeterminações, os brancos, o que a narrativa omite, a começar por tudo aquilo que ela faz supor ter acontecido antes de ela se iniciar.
Lefebvre não considera a distinção entre narrador e autor implícito, já que o narrador, uma vez enunciado ou mesmo pelo próprio ato de enunciação, acaba se transformando num ser ficcional, uma das tantas máscaras do autor implícito sempre à espreita.
Para Rossum-Guyon ([s.d.], p.26), Henry James (final do século XIX, início do século XX), analisando as técnicas romanescas, duma perspectiva crítica, em função dos efeitos procurados pelo artista, despreza o narrador onisciente, que acusa de irresponsabilidade a respeito das exigências de sua arte, e na relação com o leitor por “quebrar a ilusão”.
O critico inglês defende a idéia de um ponto de vista controlado, interior ao romance, situado no espírito de uma personagem. O efeito seria o de dar vida mental através da criação de uma ilusão de realidade intensa, de preservar a coerência de uma obra que deve ser auto-suficiente, de conferir a essa obra uma verdadeira espessura e consistência. Eis, em síntese, algumas de suas concepções:

- defesa de um ponto de vista único;
- antipatia pelas interferências que comentam e julgam, pelas digressões que desviam o leitor da história;
- o modelo ideal seria a presença discreta de um narrador, dando a impressão de que a história se conta a si própria;
- o narrador aloja-se na mente de uma personagem fazendo o papel de refletor de suas idéias;
- o narrador deve figurar como uma espécie de centro organizador da percepção que tenha uma rica sensibilidade, uma inteligência penetrante, para expressão da qual têm de ser trabalhados coerentemente os outros elementos da narrativa: da linguagem ao ambiente das personagens;
- desaparecimento estratégico do narrador disfarçado numa 3ª pessoa que se confunde com a 1ª.

Posteriormente, Percy Lubbock, citado por Leite (1983), teórico do romance, discípulo de James, retoma de seu mestre alguns princípios fundamentais para constituir a sua teoria:
1. O livro bem feito é aquele que o assunto e a forma coincidem;
2. A melhor forma é a que desenvolve pelo melhor as potencialidade do assunto;
3. O romancista deve permanecer fiel ao método que decidiu adotar;
4. A arte do romancista só começa quando este concebe a narrativa como qualquer coisa que deve ser “mostrada”, que deve ser oferecida ao leitor e impor-se por si mesma (num romance não há autoridade exterior ao próprio livro).
A partir desses pressupostos, estabelece o ponto de vista como o expediente fundamental na arte. Para ele, o ponto de vista, a relação do narrador com a história que conta domina todo o problema do método do romance. Algumas de suas considerações:

- só é arte da ficção as narrativas que não cometem esta indiscrição: interferência de um narrador intruso;
- a interferência do narrador se enquadra na “arte da narrativa”;
- a distinção entre narrar (telling) e mostrar (showing) tem a ver com a intromissão ou não do narrador: quanto mais intervenção, mais o narrador conta e menos mostra.

Utilizando-se do método indutivo, ou seja, parte da leitura de obras para apreender suas características. Como por exemplo, a distinção entre uma apresentação cênica de uma apresentação panorâmica (sumário) ou apresentação dramática:

1. Cena: os acontecimentos são mostrados ao leitor, sem a mediação do narrador. O uso da cena provoca um efeito de restrição da ação, apresentando-a num tempo presente e próximo do leitor.
2. Panorama (Sumário): o narrador conta e resume os acontecimentos, condensa-os, passando por cima dos detalhes e, às vezes sumariando em poucas páginas um longo tempo da história. O sumário amplifica a ação no tempo e no espaço, distanciando o leitor do narrado.
Quanto às formas de apresentação, faz a seguinte distinção entre o tratamento dado:
1. Tratamento dramático: quando apresentação se faz pela cena; predominância do discurso direto;
2. Tratamento Pictórico: quando ele é predominantemente feito pelo sumário; prevalece o discurso indireto;
3. Tratamento pictórico-dramático: combinação de cena e sumário – a “pintura” dos acontecimentos se reflete na mente de uma personagem, através da predominância do estilo indireto-livre.

Lubbock, conforme análise de Leite (1983), privilegia os tipos de pontos de vista em que o narrador é dramatizado e integrado na história. Como já foi explicitado, o romance basta a si mesmo e o leitor não tem de fazer nenhum apelo a nenhuma autoridade exterior (exemplo: o narrador de 1ª pessoa). O efeito de “objetividade” acontece quando tudo é “dramatizado” sem uma influência ou “subjetividade” exterior contando a história.
E.M. Forster (1974) discute a afirmação de Lubbock de que o expediente fundamental na arte seja o ponto de vista. Combate a condenação ao narrador que interfere na narração ou às mudanças do ponto de vista, num mesmo romance. Segundo Lubbock, o ser humano é mais estúpido em algumas ocasiões que em outras, detemos o poder de penetrar na mente das pessoas, às vezes, mas não sempre, porque o nosso próprio intelecto cansa: e esta interrupção propicia no transcorrer do tempo, variedade e colorido às nossas experiências.
Forster afirma que a mudança de ponto de vista é perfeitamente aceitável dependendo do resultado que o romancista obtenha.
Wayne Booth, analisado por Leite (1983), desloca a questão do ponto de vista de uma abordagem crítica e normativa para a abordagem retórica, para a análise das diferentes vozes do autor que se fazem ouvir através de diferentes técnicas. A preocupação aqui é entender os recursos utilizados e não valorizados. Neste aspecto, Booth opõe-se à tradição, considerando a retórica um “conjunto das técnicas postas em ação pelo romancista para comunicar com os seus leitores, isto é, para impor-lhes o seu modo fictício”. Nesta concepção, o fim primeiro de um romance não é tanto produzir ilusão quanto transmitir valores e neste aspecto, a retórica forneceria os meios pelos quais o autor consegue controlar seu leitor de modo a fazer-lhe partilhar desse sistema de valores que se pretende partilhar.
Portanto, mais importante que o processo utilizado, é o narrador que o utiliza, pois é através das vozes, expressas pelos diferentes modos de narração e apresentação que o autor chega a se comunicar.
Considerando a obra em sua materialidade lingüística, Booth não confunde ficção e realidade, personagens e pessoas, autor real e autor representado num mundo de palavras. Cria o termo autor implícito e põe fim à confusão entre o narrador doador do livro (organizador da narrativa na sua totalidade) e o narrador que, no interior do romance, parece contar (ou perceber) os acontecimentos. O que importa para o crítico é reintroduzir o autor (ainda que implícito e sob a forma de um “eu segundo”) na obra. Para ele, o autor implícito é uma imagem do autor real criada pela escrita, e é ele que comanda os movimentos do narrador, das personagens, dos acontecimentos narrados, do tempo cronológico e psicológico, do espaço e da linguagem em que se narram indiretamente os fatos ou em que se expressam diretamente as personagens envolvidas na história.
O pensamento de Booth é subordinar a visão do narrador uma “visão mais extensa e dominadora”: a do autor implícito; e só a relação entre os tipos de Foco com o autor implícito pode levar-nos a visão de mundo que transpira da obra, aos valores que ela veicula, à sua ideologia.
Numa tentativa de sintetizar as teorias e críticas já explicitadas, Norman Friedman, também analisado por Leite (1983), estabelece a sua tipologia do narrador, baseado em Lubbock.
Friedman concebe que o fim primeiro da ficção é produzir a ilusão da realidade. A questão da escolha do ponto de vista está ligada à do tema tratado e do “tipo de ilusão” que se quer produzir. As intrusões do autor, por exemplo, permitem a ironia e a generalização filosófica, recurso muito utilizado em Machado de Assis. O “eu” protagonista “permite mostrar um espírito em vias de descoberta.
Parte das seguintes interrogações para analisar seu objeto de estudo:

1.Quem conta a história? (1ª ou 3ª pessoa? Uma personagem em 1ª pessoa? Não há ninguém narrando?);
2. De que posição ou ângulo em relação à História? (Por cima? Na Periferia? Centro? Frente? Mudando?)
3.Que canais de informação o narrador usa para comunicar a história ao leitor? (palavras? pensamentos? percepções? sentimentos? do autor? da personagem? ações? falas do autor? da personagem? ou uma combinação de tudo isso?)
4. A que distância ele coloca o leitor da história? (próximo? distante? mudando?)
As possíveis respostas para essas perguntas fundamentaram a elaboração da teoria de Friedman, além da distinção entre cena e sumário, baseada em Lubbock

A diferença principal entre narrativa e cena está de acordo com o modelo geral particular: sumário narrativo é um relato generalizado ou a exposição de uma série de eventos abrangendo um certo período de tempo e uma variedade de locais, e parece ser o modo normal, simples, de narrar; a cena imediata emerge assim que os detalhes específicos, sucessivos e contínuos de tempo, lugar, ação, personagem e diálogo, começam a aparecer. Não apenas o diálogo mas detalhes concretos dentro de uma estrutura específica de tempo-lugar são os sine qua non da cena. (ROSSUM-GUYON, [s.d.], p. 119-20)

Situados os elementos essenciais da tipologia friedmniana, passamos à exposição das linhas básicas de cada uma delas seguida de um exemplo para ilustração do conceito. Por ser um trabalho essencialmente descritivo, não nos aprofundaremos em análise, detendo-nos, no momento, ao estudo conceitual da focalização.

1.Onisciência do autor-editor ( Editorial omnisciente ou autor onisciente intruso):

Caracteriza-se pelas intrusões do autor que podem estar ou não em relação com a história; o ponto de vista do autor é ilimitado, mas mal controlado. Há uma tendência ao sumário, embora possa também aparecer cena. Esse tipo de narrador tem a liberdade de narrar à vontade, de colocar-se acima, ou por trás, adotando um ponto de vista divino, ultrapassando os limites de tempo e espaço. Pode também narrar da periferia dos acontecimentos, ou do centro deles, ou ainda limitar-se e narrar como se estivesse de fora, ou de frente, podendo ainda, mudar e adotar sucessivamente várias posições. Como canais de informação, predominam suas próprias palavras, pensamentos e percepções. Seu traço característico é a intrusão, ou seja, seus comentários sobre a vida, os costumes, os caracteres, a moral, que podem ou não estar entrosados. Eis um exemplo em Machado de Assis:

Não, senhora minha, ainda não acabou este dia tão comprido; não sabemos o que se passou entre Sofia e o Palha, depois que todos foram embora. Pode se até que acheis aqui melhor sabor que no caso do enforcado.
Tende paciência; é vir agora outra vez a Santa Tereza. A sala está ainda alumiada, mas por um bico de gás; apagaram-se os outros, e ia apagar-se o último, quando o Palha mandou que o criado esperasse um pouco lá dentro. A mulher ia sair, o marido deteve-a, ela estremeceu. (ASSIS, MACHADO DE. Quincas Borba. Rio de Janeiro: Paris, Garnier, 1923, p.85).

2.Onisciência neutra (Neutral omniscience):

O autor não intervém diretamente, fala de maneira impessoal na 3ª pessoa. Contudo, os acontecimentos são apresentados e analisados tais como o autor os vê e não como os vê a personagem .Também tende ao sumário embora aí seja bastante freqüente o uso da cena para os momentos de diálogo e ação, enquanto, freqüentemente, a caracterização das personagens é feita pelo narrador que as descreve e explica para o leitor. As outras características referentes às outras questões (ângulo, distância, canais) são as mesmas do autor onisciente intruso, do qual este se distingue apenas pela ausência de instruções e comentários gerais ou mesmo sobre o comportamento das personagens, embora a sua presença, interpondo-se entre leitor e história, seja sempre muito clara. Observa-se em Flaubert:

Os peitilhos das camisas abaulavam-se como couraças! Todo mundo estava escanhoado; e mesmo alguns, que se levantaram antes do amanhecer, não tendo boa vista para se barbear, vinham com grandes arranhões diagonais por baixo do nariz e nos queixos pedaços de pele arrancada, do tamanho de moedas de 3 francos, os quais, inflamados pelo ar fresco, durante o caminho, marchetavam de nódoas rosadas aquelas caras brancas e alegres. (FLAUBERT, GUSTAVE. Madame Bovary. São Paulo: Abril Cultural, 1970.p.27)

3.“Eu” como testemunha (“I” as witness):

Este é o ponto de vista dos romances na primeira pessoa nos quais o narrador é diferente da personagem. O leitor que deve a sua visão dos acontecimentos ao narrador, vê a história a partir de uma periferia móvel. Não é o protagonista; se trata de uma personagem periférica.. Neste caso, o ângulo de visão é mais limitado. Como personagem secundária, ele narra da periferia dos acontecimentos, não consegue saber o que se passa na cabeça dos outros, apenas pode inferir, lança hipóteses, servindo-se também de informações, de coisas que viu ou ouviu, e, até mesmo, de cartas ou outros documentos secretos que tenham ido cair em suas mãos. Quanto à distância em que o leitor é colocado, pode ser próxima ou remota, ou ambas, porque esse narrador tanto sintetiza, quanto apresenta em cena. Um exemplo em Machado de Assis:

Enfim, casados. Venho agora da Prainha, aonde os fui embarcar para Petrópolis. O casamento foi ao meio-dia em ponto, na matriz da Glória, poucas pessoas, muita comoção. Fidélia vestia escuro e afogado, as mangas presas nos pulsos por botões de granada, e o gesto grave. D. Carmo, austeramente posta, é verdade, ia cheia de riso, e o marido também. Tristão estava radiante. Ao subir a escadaria, troquei um olhar com a mana Rita, e creio que sorrimos; não sei se nela, mas em mim era a lembrança daquele cemitério, e do que lhe ouvi sobre a viúva Noronha. Aí vínhamos nós com ela e outras núpcias. Tal era a vontade do Destino. Chamo-lhe assim, para dar um nome a que a leitura antiga me acostumou e francamente gosto dele. Tem um ar fixo e definitivo. Ao cabo, rima com divino, e poupa-me cogitações filosóficas. (ASSIS, MACHADO DE. Memorial de Aires. In: Obras Completas. Rio de Janeiro: Aguillar, 1971.v. 1, p.1194)

4. O eu como protagonista (Narrador-protagonista ou “I” as protagonist):

O narrador é igualmente a personagem principal. Aqui, desaparece a onisciência. O narrador, personagem central, não tem acesso ao estado mental das demais personagens. Narra de um centro fixo, limitado quase exclusivamente às suas percepções, pensamentos e sentimentos. Como no caso anterior, ele pode servir-se da cena ou do sumário, e, assim, a distância entre história e leitor pode ser próxima, distante, ou, ainda, mutável. Observe o exemplo que Guimarães Rosa nos oferece:

Sapateei, então me assuntando de que nem gota de nada sucedia, e a hora em vão passava. Então, ele não queria existir? Existisse. Viesse! Chegasse, para o desenlace desse passo. Digo direi, de verdade: eu estava bêbado de meu. Ah, esta vida, às não-vezes, é terrível bonita, horrorosamente, esta vida é grande. Remordi o ar:
- “Lúcifer! Lúcifer!...” – aí eu bramei, desengulindo. (...) Voz minha se estragasse, em mim tudo era cordas e cobras. E foi aí. Foi. Ele não existe, e não apareceu nem respondeu – que é um falso imaginado. Mas eu supri que ele tinha me ouvido. Me ouviu, a conforme a ciência da noite e o ouvir de espaços, que medeia. Como que adquirisse minhas palavras todas; fechou o arrocho do assunto. Ao que eu recebi de volta um adejo, um gozo de agarro, daí umas tranqüilidades – de pancada. Lembrei dum rio que viesse adentro a casa de meu pai. Vi asas, arquei o puxo do poder meu, naquele átimo. Aí podia ser mais? A peta, eu querer saldar: que isso não é falável. As coisas assim a gente mesmo não pega nem abarca. Cabem ; é no brilho da noite. Aragem do sagrado. Absolutas estrelas!” (ROSA, GUIMARÃES. Grande sertão: veredas. Rio de Janeiro: José Olympio, 1967. p. 319)

5. Onisciência seletiva múltipla (multisseletiva ou Multiple selective ominiscience):

A história é apresentada diretamente, tal qual é vivida pelas personagens, isto é, tal qual se reflete nos seus espíritos. O autor dá, aqui, os pensamentos, percepções e sentimentos tais como se sucedem nos espíritos das suas personagens, enquanto na onisciência neutra, ele os resume ou os analise depois de terem ocorrido. Há uma predomínio quase absoluto da cena. Difere da onisciência neutra porque agora o autor traduz os pensamentos, percepções e sentimentos, filtrados pela mente das personagens, detalhadamente, enquanto o narrador onisciente os resume conforme o autor os vê e não as personagens. O discurso predominante é o indireto livre, embora Friedman se refira às alterações de sintaxe o deslize do indireto para o indireto livre, como se percebe em Vidas Secas de Graciliano Ramos:

Sinhá Vitória

Pensou de novo na cama de varas e mentalmente xingou Fabiano. Dormiam naquilo, tinham-se acostumado, mas seria mais agradável dormirem numa cama de lastro de couro. Como outras pessoas. Fazia mais de um ano que falava nisso ao marido. Fabiano a princípio concordara com ela, mastigara cálculos, tudo errado. Tanto para o couro, tanto para a armação. Bem. Poderiam adquirir o móvel necessário economizando na roupa e no querosene. Sinhá Vitória respondera que isso era impossível, porque eles vestiam mal, as crianças andavam nuas, e recolhiam-se todos ao anoitecer. Para bem dizer, não se acendiam candeeiros na casa. (RAMOS, GRACILIANO. Vidas secas. São Paulo: Record, 1980. p. 40.)

Fabiano

Sinhá Vitória desejava possuir uma cama igual a de seu Tomás da bolandeira. Doidice. Não dizia nada para não contrariá-las, mas sabia que era doidice. Cambembes podiam ter luxo? E estavam ali de passagem. Qualquer dia o patrão os botaria fora, e eles ganhariam o mundo, sem rumo, nem teriam meio de conduzir os cacarecos. Viviam de trouxa arrumada, dormiriam bem debaixo de um pau. [...] (RAMOS, 1980, p.23)

6. Onisciência seletiva (Selective omniscience):

O autor limita-se ao espírito de uma só personagem. Em vez de uma composição de pontos de vista diferentes, (mas todos limitados) como na onisciência multisseletiva, o ponto de vista é fixado e centrado. O ângulo central, e os canais são limitados aos sentimentos, pensamentos e percepções da personagem central, sendo mostrados diretamente. Exemplo clássico em Clarice Lispector:

Por que ela estava tão ardente e leve, como o ar que vem do fogão que se destampa?
O dia tinha sido igual aos outros e talvez daí viesse o acúmulo de vida. Acordara cheia de luz do dia, invadida. Ainda na cama, pensara em areia, mar, beber água do mar na casa da tia morta, em sentir, sobretudo, sentir. Esperou alguns segundos sobre a cama e como nada acontecesse viveu um dia comum. Ainda não se libertara do desejo – poder – milagre, desde pequena. A fórmula se realizava tantas vezes: sentir a coisa sem possuí-la. [...] Quis o mar e sentiu os lençóis da cama. O dia prosseguiu e deixou-a atrás, sozinha. (LISPECTOR, CLARICE. Perto do coração selvagem. Rio de Janeiro: José Olympio, 1974. p. 19)

7. O modo dramático (The dramatic mode):

São apresentados apenas os atos e as palavras dos protagonistas, e não seus pensamentos ou sentimentos. Estes deverão ser inferidos pelo leitor a partir dos gestos e das palavras. O ângulo é frontal e fixo, e a distância entre a História e o leitor, pequena, já que o texto se faz por uma sucessão de cenas. Eis o recurso utilizado por Hemingway:

São onze horas da noite, e três soldados romanos estão numa taverna. Há barris nas paredes. Por trás do balcão de madeira está um hebreu vendedor de vinhos. Os três soldados romanos estão um pouco tocados.

1º soldado romano – Já experimentou o tinto?
2º soldado romano – Não, não experimentei.
1º soldado romano - É melhor experimentar.
2º soldado romano - Está bem, George, vamos tomar uma rodada do tinto.
Vendedor judeu – Aqui está, cavalheiros. Vão gostar.
(Coloca na mesa um jarro de barro que encheu numa das barricas.) É um vinhozinho decente.
1º soldado – Tome um pouco também. (Volta-se para o terceiro soldado romano que está encostado num barril. ) Que é que há com você?
3º soldado romano – Estou com dor de barriga.
2º soldado – Você andou bebendo água.
1º soldado – Experimente um pouco do tinto.
3º soldado – Não posso beber essa droga. Azeda-me a barriga
1º soldado – Você está aqui há muito tempo.
3º soldado – Bolas, pensa que não sei?
(Hemingway. Contos de Hemingway. 3. Ed. Rio de Janeiro, Civilizaçao Brasileira, 1976. p. 107)

8. A Câmera (The camera)

Tem o objetivo de retransmitir uma “fatia de vida” tal como aconteceu sem seleção ou organização. Esta categoria serve àquelas narrativas que tentam transmitir flashes da realidade como se apanhados por uma câmera, arbitrária e mecanicamente. A neutralidade e “exclusão” do autor é questionável, já que “por detrás” da câmera há o sujeito da enunciação que seleciona, combina, pela montagem, as imagens a mostrar. Neste caso, a subjetividade é apenas disfarçada pelo efeito de neutralidade, como se observa em Ricardo Ramos:

Chinelos, vaso, descarga. Pia, sabonete. Água. Escova, creme dental, água, espuma, creme de barbear, pincel, espuma, gilete, água, cortina, sabonete, água fria, água quente, toalha. Creme para cabelo, pente. Cueca, camisa, abotoaduras, calça, meias, sapatos, gravata, paletó. Carteira, níqueis, jornais, documentos, caneta, chaves,, relógio, maço de cigarros, caixa de fósforos. Jornal. Mesa, cadeiras, xícara e pires, prato, bule, talheres, guardanapo. (...) (RAMOS, RICARDO. Circuito Fechado.São Paulo: CERED. Col. Objetivo Livro 29, p. 105).

A classificação deste tipo de focalização coincide com o modelo de comunicação que veicula no mundo contemporâneo. Para uma sociedade que não tem tempo a perder, que se alimenta de flashes do cotidiano dada a velocidade com que as informações se modificam e as transformações acontecem, o Câmera caracteriza muito bem o olhar do homem hodierno em relação ao seu universo, globalizante e globalizado. Na tentativa de participar de seu tempo, de integrar-se a sociedade moderna busca reconstituir os inúmeros recortes de uma realidade que vertiginosamente lhe escapa. É a linguagem do cinema, da televisão, da literatura na modernidade que, longe de ser neutra, induz à concepção de ser humano tão dividido e recortado quanto as imagens que, embora simultâneas, constitui um quebra cabeças de difícil solução.



Considerações Finais: Ponto de vista sobre os pontos de vista

Quando uma época atravessa a agonia de uma transição profunda e as luzes se apagam, e um olhar sob refletores nos convida a enxergar além do que podemos ver.
Em cena, “eus testemunhas” de um tempo, cujos dramas cotidianos violentam os mais tenros sonhos. Gritos morrem na garganta, lábios ensaiam palavras, gestos traem palavras, sorrisos rascunham esperanças, lágrimas estáticas sem tempo de chorar, balbucios, frases ausentes... seres sem defesa. Sob as máscaras, histórias inenarráveis esperam ser contadas. O que é feito da arte literária nesses tempos de aceleradas transformações? É possível ver o belo no espaço da dor? São perguntas que aguardam a travessia para se transformarem em respostas.
O que é possível apreender em um estudo sobre focalização é que nossos juízos de valor estão em questão. Nossos pontos de vista sobre coisas e pessoas estão fragilizados. Em que perspectiva nos colocamos diante desse homem, matéria prima do homo fictus de Forster, que nasce, vive e é capaz de morrer de fome, de sono, de sonho?
Em que pese a nossa onisciência neutra, passiva, diante destes dramas existenciais, enquanto narradores da nossa história funcionamos quase sempre como refletores com deficiência de luz. Forster (1974) buscou no espaço da vida o perfil do seu homo fictus, Friedman citado por Leite (1983) forjou do comportamento humano as possibilidades de perspectiva diante dos acontecimentos, Booth também apontado por Leite (1983) tratou das vozes veladas e desveladas marcadas nos tipos de focalização, Platão e Aristóteles lançam as bases da arte enquanto representação de um mundo de essências e aparências, Barthes vai afirmar que a narrativa começa com a própria humanidade. Em síntese, a arte literária se estrutura, pelo esforço criador, sob as bases das percepções sensoriais e abstratas da relação do homem com o mundo. Se o seu campo de visão é recortado ou universal, se sua perspectiva é interna ou externa, neutra ou intrusa, participante ou testemunha, se é onisciente ou funciona como uma câmera que apenas registra os flashes, o que verdadeiramente importa é que a sensibilidade do artista, aliada a sua competência, o coloca diante de um inesgotável material de representação.
Não pretendemos encerrar aqui um assunto tão rico quanto a criatividade humana. Concordamos com Barthes, já fartamente citado e referendado, que a narrativa esta aí, como a vida e reafirmamos que, na tessitura do enredo de uma história que não pode ser esquecida, o próprio homem.


REFERÊNCIAS:

ARISTÓTELES. Arte Poética. In: Arte retórica. Arte Poética. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1964. p. 264

BARTHES, Roland. Introdução à análise estrutural da narrativa. In: ROSSUM-GUYON, F. Van ; HAMON, P. ; SALLENAVE, D. Categorias da narrativa. Lisboa: Vega Universidade, [S.d.]

FORSTER, E.M. Aspectos do romance. 2.ed. Porto Alegre: Globo, 1974. p. 43.

GENETTE, Gerard. Introdução. In: Discurso da Narrativa. Lisboa: Col. Veja Universidade.

LEITE, Lígia Chiappini Moraes. O Foco Narrativo. 2.ed. São Paulo: Ática, 1983.

PESSANHA, José Américo Motta. Sofista. In: Platão. Diálogos. 2.ed. São Paulo: Abril Cultural, 1983.

REIS, Carlos; LOPES Ana Cristina M. Dicionário de Teoria da Narrativa. São Paulo: Ática, 1988. p. 249-255.

ROSSUM-GUYON, Françoise V. Pontos de Vista e Perspectiva narrativa. In: Categorias da Narrativa. Lisboa: Veja Universidade, [S.d.]

BIBLIOGRAFIA CONSULTADA:

ABDALA JUNIOR, Benjamin. Introdução à análise da narrativa. São Paulo: Scipione, 1995.

BELLEI, Sérgio Luiz Prado. Introdução ao Estudo da Narrativa. Minas Gerais: Universidade Federal de Viçosa, [S.d.].

D’ONOFRIO, Salvatore. Elementos estruturais da narrativa. In: O texto literário: teoria e aplicação. São Paulo: Duas Cidades, 1983. p.27 e 28.

NOTAS:
[1] Representação segundo a concepção de Aristóteles como reveladora de um mundo de essências, não como imitação deformadora do original, conforme a concepção moralista de Platão.

[2] Para Platão, semelhança é a essência interior, “ alma “ do objeto.

[3] Simulacro da verdade: imagem destituída de semelhança(de essência), simulação de cópia, construída a partir da dessemelhança, uma espécie de imagem “esfumaçada” da segunda cópia.

[4] Catarse: Teoria da Literatura como efeito, concebida por Aristóteles. Essa teoria transforma a literatura em uma função de efeito psicológico a ser atingido.


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