domingo, 20 de maio de 2007

LIBERTAR: A PARÁBOLA DA CORDA [1]



Se estar certo é teu objetivo,
acharás erros no mundo,
e procurarás corrigi-los.
Mas não esperes por paz de espírito.

Se paz de espírito é teu objetivo
procura pelos erros em tuas crenças e expectativas.
procura mudá-los, não mudar o mundo.
E estejas sempre pronto para estar errado.

Uma mente apegada a suas crenças é como um homem agarrado a uma corda.
Ele se agarra à corda para preservar sua vida, pois sabe que, se soltá-la, cairá para a morte. Seus pais, seus professores e muitos outros lhe disseram que assim é; e, quando olha em volta, ele vê que todos fazem o mesmo.
Nada o induziria a soltar a corda.
E o sábio se aproxima. Ele sabe que é inútil agarrar-se à corda, sabe que a segurança oferecida é ilusória e apenas nos mantém onde estamos. Assim, procura um modo de dissipar as ilusões daquele homem e ajudá-lo a libertar-se.
Fala da segurança real, da alegria mais profunda, da verdadeira felicidade, da paz de espírito. Diz-lhe que ele pode provar tudo isso; basta soltar um dedo da corda.
“Um dedo”, pensa o homem. “Um dedo não é muito para arriscar por um gostinho do êxtase”. E concorda em fazer sua primeira iniciação.
E sente o gosto de maior alegria, felicidade e paz de espírito.
Mas não o suficiente para lhe trazer realização duradoura.
“Podes ter ainda maior alegria, felicidade e paz”, diz o sábio, “basta soltares um segundo dedo.”
“Isso”, pensa o homem, “já vai ser mais difícil. Será que eu consigo? Será que é seguro? Será que eu tenho coragem? “ Hesita, flexiona o dedo, sente como seria se soltasse a corda um pouco mais...e se arrisca.
Está aliviado por descobrir que não caiu para a morte; pelo contrário, descobre maior felicidade e paz interior.
Seria possível ter ainda mais?
“Acredita em mim”, diz o sábio. “Não deu certo até agora? Conheço os teus medos, sei o que tua mente está a te dizer – que isso é uma loucura, que vai contra tudo o que aprendeste – mas, por favor, confia em mim. Olha pra mim, não sou livre? Prometo que estarás a salvo e conhecerás ainda maior felicidade e contentamento.”
“Será que realmente quero tanto a felicidade e a paz interior”, pergunta-se o homem, “para arriscar tudo o que tanto amo? Em princípio, sim; mas como posso ter certeza de que estarei a salvo, de que não cairei?” Com uma pequena prece, ele começa a olhar para seus medos, a considerar a fonte de seus medos e a explorar aquilo que realmente quer.
Vagarosamente, sente que seus dedos perdem a tensão e relaxam. Ele sabe que pode fazê-lo. E sabe que precisa fazê-lo. É apenas uma questão de tempo até soltar a corda.
E, quando a solta, uma sensação de paz ainda maior flui através dele.
Ele pende agora por um único dedo. A razão lhe diz que já deveria ter caído há um ou dois dedos atrás, mas ele não caiu. “Há algo errado em agarrar-se?” , ele se pergunta. “Eu estive errado o tempo todo?”
“Esse último dedo depende apenas de ti mesmo”, diz o sábio. “Não posso te ajudar mais. Mas lembra, teus medos não têm razão de ser.”
Confiando em sua calma voz interior, ele aos poucos solta o último dedo.
E nada acontece.
Ele fica exatamente onde estava.
E então percebe por quê. Ele estava com os pés no chão o tempo todo.
E, ao olhar para o chão, sabendo que nunca mais precisará agarrar-se à corda, ele encontra a verdadeira paz de espírito.


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Milenarmente, o homem lançado ao mundo tem sido uma sucessão de experiências, cujo objetivo maior é a autolibertação. Não no sentido físico, espacial, geográfico. O grande desafio é a consciência desperta, um estado de espírito autônomo que garanta a liberdade de ir e vir no fluxo da paz interior, livres dos medos, das algemas que nos impedem de ser.
Se a viagem geográfica é possível a quem possa garanti-la materialmente, o trânsito consciencial não é conquista que valha valor pecuniário. A livre consciência é resultado de muitas conquistas no âmbito do espírito e está diretamente subordinada aos valores e crenças individuais que nos orientam no percurso existencial.
Temos tanto medo dos nossos medos que preferimos transformá-los em única realidade possível, travestidos de verdades, que qualquer possibilidade de julgamento nos faz defensores do nosso direito de pensar e agir, negando-nos, talvez, a única possibilidade de vislumbrar uma luz na escuridão. Acionamos potencialmente nossos mecanismos de defesas, agarrando-nos as nossas cordas de tal forma que preferimos digladiar contra o mundo que nos contesta a admitir que possamos estar errados.
Imaginamos que sob os nossos pés haja um abismo impedindo-nos de soltarmo-nos da corda. Tão frágeis são as nossas crenças quanto é impossível sermos felizes verdadeiramente com elas.
O medo de sermos rejeitados, de não sermos compreendidos, de que o outro saiba o que sentimos ou pensamos; o medo de não sermos aceitos como somos; o medo de que o outro nos abandone; o medo de que percamos o espaço caso não façamos o que esperam de nós; as fantasias que criamos para camuflar o nosso verdadeiro “eu”; enfim, as alegorias que representam nossas vidas nada mais são do que cordas nas quais nos agarramos para viver. E há os que só sobrevivem porque criam ancoradouros para suas existências.
Privamo-nos da única liberdade possível: a que resulta de uma consciência tranqüila, de uma conquista interior, de uma compreensão mais espiritualizada da vida.
É comum colocarmos as possibilidades de felicidade em coisas e pessoas; do tipo: só serei feliz se conquistar uma vida confortável, sem privações; só serei feliz se estiver com quem amo etc. Depositamos algo tão valioso – a felicidade – na dependência de situações tão frágeis, pois que as coisas passam e as pessoas são falíveis. Pior ainda, atribuímos a culpa da nossa infelicidade a coisas e pessoas e nunca às nossas fraquezas e distorções da realidade: atribuirmos a alguém ou alguma coisa a tremenda responsabilidade de nos fazer felizes. Agimos com a vida de forma pueril e dependente, em que haverá sempre um culpado para nossos fracassos porque nossas crenças são frágeis e insustentáveis. Ninguém renasce com a responsabilidade de nos fazer felizes, mas para melhorar a si mesmo.
O único lugar, onde a felicidade é intransferível e legítima, é dentro de nós mesmos. É lá que devemos depositar nossas expectativas e possibilidades. Se não formos capazes de nos fazermos felizes, ninguém mais o será. É um nível de consciência difícil de ser atingido, senão sob esforços contínuos de meditação, reflexão e, necessariamente, de solidão. Nesse sentido, todos somos irremediavelmente sós; trazemos uma tarefa intransferível, no íntimo de nossas consciências: tornarmo-nos pessoas melhores, menos egoístas, mais solidárias e mais solitárias, no sentido de sermos autônomos. Termos a consciência de que somos solitários não significa dizer, existencialmente falando, que tenhamos de nos sentir sozinhos, tampouco nos isolarmos do mundo. Estar consigo mesmo já é uma conquista tremendamente difícil, no sentido de se pertencer, não ser joguete de crenças e influências dispersas. Pertencermos-nos é o grande desafio para o qual nos deixamos perder tantas vezes. Pertencermos-nos significa ter a consciência do que somos, do que fazemos aqui, qual o nosso dever no percurso da existência. Significa compreender qual é o nosso limite de amar o outro como nos amamos; em última instância, compreender o que significa amarmo-nos. Viver significa empreender a maravilhosa jornada do autoconhecimento, do auto-amor.
O sábio da parábola da corda representa as tentativas que aquele que aprendeu faz para mostrar os caminhos a quem ainda reluta em se agarrar a corda de suas crenças fragilizadas, embora haja chão para pisar.
Nesse sentido, não estamos sozinhos, haverá sempre aquele que volta no caminho para mostrar como podemos caminhar; e haverá sempre um ponto do percurso em que deveremos decidir sozinhos, pois faz parte do aprendizado da autonomia. E haverá sempre um sábio a se voltar para trás e observar o que fizemos de nossa decisão.

Célia Firmino


[1] RUSSSEL, Peter. Libertar: a parábola da corda. In: O Buraco branco no tempo:nossa evolução futura e o significado do agora. São Paulo: Aquariana. 1992. p. 143.