quinta-feira, 1 de março de 2007

Ideologia e Discurso: uma introdução

Célia Firmino[*]


O termo Ideologia foi criado por Destutt de Tracy em 1796 para denominar, a princípio, ciência cujo objeto é a gênese das idéias. Com o desenrolar do processo histórico e social, o termo assumiu concepções tão variadas e, às vezes, antagônicas, e pejorativas que a clareza do conceito, por força da necessidade de adaptar-se aos novos tempos, perdeu-se nas rupturas, continuidades e descontinuidades do pensamento ocidental.

Para Durozoi e Roussel
1, o sentido mais freqüente do emprego contemporâneo vem do marxismo, em que a ideologia designa a representação falseada do mundo imposta pela classe dominante para seu próprio interesse à classe dominada, a primeira acreditando eventualmente que ela corresponde à realidade. A ideologia é desse modo uma espécie de mentira coletiva mais ou menos involuntária proveniente de uma ignorância da determinação das superestruturas intelectuais e espirituais pela infra-estrutura econômica, submetendo aos seus poderes todos os domínios do pensamento humano. Pejorativamente, o conceito designa discussão vazia de idéias sem correspondência com a realidade.
A fim de tentar desmistificar o conceito, livrá-lo das malhas confusas de interesses partidários, particulares, institucionais, a-científicos, e restituí-lo ao campo dialético da interlocução científica, Terry Eagleton propõe delinear a história do conceito de ideologia e, refletir sobre as confusões que o enredam, além de posicionar-se a respeito da questão.
O primeiro conceito abordado por Eagleton é o da ideologia como idéia de reificação, coisificação ou “materialização”, não, porém, identificável pelos sentidos físicos como o tato, paladar, ou visual, mas uma reificação toda própria. O termo ideologia é uma forma de classificar em uma única categoria uma porção de coisas que fazemos com os signos. E signos, conforme conceituação saussureana, é elemento material da linguagem.
Neste sentido, como entender a ideologia em termos de consciência e de idéias, como tradicionalmente se convencionou formular, considerando a idéia de reificação? Ora, a “consciência” é também um tipo de reificação, uma abstração de nossas efetivas práticas discursivas. A revolução lingüística do século XX trouxe-nos a possibilidade de deixar de pensarmos nas palavras em termos de conceitos para pensarmos em conceitos em termos de palavras, e pensar em palavras significa utilizar-se de signos. Construir um conceito, portanto, é mais uma prática, um exercício discursivo, que um estado mental.

Entre pensar a ideologia como idéias sem corpo ou considerá-la apenas como uma questão de padrões de comportamento, Eagleton apresenta uma terceira vertente: a ideologia como um fenômeno discursivo ou semiótico. Esta perspectiva é desenvolvida pelo filósofo soviético V.N. Voloshinov, em 1929, na obra Marxismo e Filosofia da Linguagem. Para ele, sem signos não há ideologias. Signos e ideologias são co-extensivos, logo, a consciência só pode surgir na corporificação material dos significantes, e como esses significantes são em si mesmos materiais, não são apenas “reflexos” da realidade, mas uma parte integral dela. A lógica da consciência é a lógica da comunicação ideológica, da intenção semiótica de um grupo social. Portanto, a palavra é o fenômeno ideológico por excelência, e a própria consciência é a internalização de palavras, um tipo que nos constitui inteiramente. Se a ideologia não pode ser divorciada do signo, o signo não pode ser isolado das formas concretas de intercâmbio social. O signo e sua situação social estão inextricavelmente fundidos, determinando a partir de dentro a forma e a estrutura de uma elocução, ou seja, a condição social determina a escolha das palavras ou frases que conduzirão a forma de expressão numa determinada sociedade. Inicia-se aí, a luta de interesses sociais e antagônicos no nível do signo, pois o signo social particular é puxado de um lado para outro por interesses sociais em competição. Estabelecendo a visão de ideologia como luta de interesses, Voloshinov constitui-se precursor da “Análise do discurso” que acompanha o jogo do poder social no âmbito da própria linguagem.

Pêcheux, autor de Language, Semantics and Ideology (1975), desenvolve as idéias de Voloshinov, propondo, no entanto, ir além da distinção saussereana entre langue (o sistema abstrato da língua) e parole (elocuções particulares) como os conceitos de processo discursivo e formação discursiva.
Uma formação discursiva, segundo Pêcheux, pode ser vista como um conjunto de regras que determina o que pode e deve ser dito a partir de certa posição na vida social, e as expressões têm significado apenas em virtude das formações discursivas em que ocorrem, mudando de significado quando são transportadas de uma para outra. Uma formação discursiva constitui uma ” matriz de significado” ou sistema de relações lingüísticas dentro do qual são gerados processos discursivos efetivos. Cada formação discursiva, seria portanto, um interdiscurso no qual está encerrada a formação ideológica que contém tanto práticas discursivas quanto práticas não discursivas. No entanto, a identificação do sujeito falante com a formação discursiva ocorre de maneira acrítica, uma vez que ele não tem a consciência do processo. O ocultamento da posição da formação discursiva se dá por uma espécie de “esquecimento”, dando ao falante a impressão ou “certeza” de que os significados são evidentes e naturais. Ele esquece, então, que é apenas a função de uma formação discursiva ou ideológica e, assim, vem a reconhecer-se erroneamente como autor de seu próprio discurso.

Assim, o papel de uma semântica discursiva será o de examinar como os elementos de uma formação específica estão ligados para formar processos discursivos em relação com o contexto ideológico.
Tanto o trabalho de Voloshinov quanto de Pêcheux, estabelecendo a perspectiva lingüística de análise, abriu uma nova dimensão para uma teoria da ideologia tradicionalmente mais interessada na “consciência” do que no desempenho lingüístico, mais nas idéias que na interação social.


A partir da década de 1970, surge uma nova corrente de investigação que caracterizou o pensamento europeu de vanguarda, com uma proposta diferente sobre a linguagem e ideologia.
Para essa corrente européia, associada à publicação francesa Tel Quel, a ideologia é essencialmente uma questão de “fixar” o processo de significação em torno de certos significantes dominantes com os quais o sujeito individual pode então identificar-se. No processo de forjar “representações”, cada significante está sujeito a um “fechamento” arbitrário, restringindo o jogo livre do significante, responsável pela produtividade da linguagem, a um significado adulterado e determinado que então pode ser recebido pelo sujeito como natural e inevitável. O significante, reduzido a uma unidade imaginária, detém a linguagem no mundo selado da estabilidade ideológica.

Paralelamente ao “esquecimento” de Pêcheux, essa corrente entende que a ideologia reprime o trabalho da linguagem pelo processo de “fechamento” no significante, i.é., o processo material da produção subjacente a esses significados coerentes são limitados a sentidos específicos, direcionados e mascarados, impondo ao sujeito uma aceitação passiva como se fosse a ordem natural das coisas.
Eagleton questiona esta “fixação”, ao ponderar que as ideologias consumistas do capitalismo avançado têm encorajado o sujeito a viver provisoriamente, deslizar de signo para signo, conforme os interesses imediatistas dos quais ela se nutre. É preciso considerar o contexto discursivo e ideológico para concluir se tal fechamento é positivo ou negativo, já que este modo de análise, centrando o foco no sujeito, tende a negligenciar tais fatores.

Uma outra contribuição semiótica, esclarecedora para esta área, é a ideologia como “naturalização”, desenvolvida por Roland Barthes, em Mitologias (1975).
Barthes estabelece que mito (ou ideologia) é o que transforma a história em natureza emprestando a signos arbitrários um conjunto de conotações aparentemente óbvio, inalterável. “O mito não nega as coisas, pelo contrário, sua função é falar sobre elas; simplesmente ele as purifica, as torna inocentes, lhes dá justificação natural e eterna, lhes dá clareza que não é a de uma explicação, mas de uma afirmação de fato.”
Conforme o pensador, há dois tipos de signos: o saudável e o insano. O primeiro é aquele que não estabelece vínculo auto-evidente entre ele e o que representa, permitindo possibilidades de desnivelamento. O segundo, seria aquele que, paralelamente ao “fechamento” do significado ao significante da corrente européia de 1970 e ao “esquecimento” de Pêcheux, suprime o trabalho semiótico que o produziu e, assim, permite que o recebamos como “natural” ou “transparente”, contemplando através de sua superfície inocente o conceito ou o significado, ao qual nos permite o acesso magicamente, sem o esforço de atribuir significados; é uma naturalização adulterada.
Toda ideologia é uma naturalização falsificada da linguagem. Essa afirmação de Paul de Man é enfatizada em The Resistance to Theory: “ideologia é precisamente a confusão de realidade lingüística com realidade natural, de referência com o fenomenalismo”.
Eagleton critica tanto Barthes quanto De Man, quando analisa que ambos cometem falha quando pressupõem que todo discurso ideológico opera por meio de tal naturalização. Ambos pecam pela ausência de argumentação e pela desconsideração de outras facetas da questão. Alerta que quase sempre, na crítica da ideologia, um paradigma particular de consciência ideológica é colocado a serviço de todo um leque de formas e dispositivos ideológicos, sem considerar que há outros estilos de discurso ideológico que não o organicista.


A perspectiva pós-estruturalista ou pós-modernista concebe o discurso como um jogo de desejo e de poder, um campo de lutas, de interesses, cuja arma é a linguagem, através de uma elocução competente, e neste sentido, toda a linguagem é tida como retórica.
Eagleton posiciona-se esclarecendo que a ideologia é a luta para unir conceitos verbais e intuições sensoriais, mas a força do pensamento verdadeiramente crítico - “ou desconstrutivo” - é demonstrar como a natureza insidiosamente figurativa, retórica do discurso sempre se interpõe para romper esse casamento auspicioso. Todo discurso tem como objetivo a produção de certos efeitos em seus receptores e é emitido a partir de uma “posição subjetiva” tendenciosa, e, nessa medida, podemos concluir, juntamente com os sofistas gregos, que tudo o que dizemos é realmente uma questão de desempenho retórico no qual questões de verdade ou cognição estão estritamente subordinadas. E vai além, se toda linguagem articula interesses específicos, então, aparentemente, toda linguagem seria ideológica. Retoma o conceito clássico de ideologia considerando que neste âmbito, a ideologia não se limita ao discurso interessado ou à reprodução de efeitos persuasivos; refere-se ao processo pelo qual os interesses de certo tipo são mascarados, racionalizados, naturalizados, universalizados, legitimados em nome de certas formas de poder político, e há muito a perder politicamente quando essas estratégias discursivas vitais são dissolvidas em alguma categoria indiferenciada e amorfa de interesses.

John Plamenatz diverge do ponto de vista clássico assumindo que um discurso pode codificar certos interesses, por exemplo, mas não pode ter a intenção de promovê-los ou legitimá-los diretamente, e os interesses em questão, de qualquer modo podem não ter nenhuma relação crucialmente relevante para a sustentação de toda uma ordem social.
Eagleton, não pretende esgotar todas as teorias que tentam conceituar ideologia, mas expondo os diversos ângulos sob os quais ela é vista, considera que todas têm pontos relevantes, mas não bastam a si mesmas, uma vez que, se satisfizeram a uma determinada época, já não resistem intocáveis ao processo histórico, responsável pela tessitura de diferentes contextos. Lidar com ideologia, afirma ele, é lidar com uma rede sobreposta de “semelhanças de família” entre diferentes estilos de significação. É preciso cautela e até mesmo um certo ceticismo ao refletir sobre os vários argumentos essencialistas a respeito de ideologia. Tanto o argumento historicista de que a ideologia é a visão de mundo coerente com um “sujeito de classe” forjado pelas estruturas econômicas em uma rede de contradições, quanto a visão sociológica, para a qual ideologia provê o cimento para uma formação social ou o mapa cognitivo que orienta seus agentes para a ação, pode provocar um efeito despolitizador, esvaziando o conceito de ideologia de conflito e contradição. Por isso, ambas as concepções apresentam falhas se analisadas isoladamente, assim como, ambas contém vertentes coerentes com o processo de construção de um conceito que suporte o confronto com a realidade.

De acordo com Eagleton, a ideologia deve afigurar-se como uma força social organizadora que constitui ativamente sujeitos humanos nas raízes de sua experiência vivida e busca equipá-los com formas de valor e crença relevantes para suas tarefas sociais específicas e para a reprodução geral da ordem social. O sujeito deve ser considerado parte importante do processo, porém, a ideologia não pode ser centrada nele, isto é, não se pode reduzir–la à questões de subjetividade, já que existem operadores ideológicos institucionais, processos políticos impessoais mais relevantes do que o sujeito, confundindo quase sempre causa e efeito.

A complexidade das relações entre discursos ideológicos e interesses sociais são complexas, variáveis que, é perfeitamente aceitável considerar o significante, às vezes como pomo de discórdia entre forças sociais conflitantes e, outras vezes, como uma questão de relações mais internas entre modos de significação e formas de poder social.
A ideologia é mais uma questão de discurso que de linguagem, contribui para a constituição de interesses sociais e legisla a existência de tais posições por sua própria onipotência. Ela não deve, portanto, ser igualada a formas de partidarismo discursivos, discurso ‘interessado” ou viés retórico.
Nesta perspectiva, o conceito de ideologia tem como objetivo revelar algo da relação entre uma enunciação (o ato de dizer) e suas condições materiais de possibilidades vistas à luz de certas lutas de poder centrais para a reprodução (ou contestação) de toda uma forma da vida social; entre as formas de luta, a luta política será, efetivamente, o lugar em que as formas de consciência podem ser transformadas.

O trabalho de Eagleton reflete legitimamente o que significa um campo de contradições, lutas “ideológicas” – pelo direito a um espaço de existência de um conceito; pelo direito de ser discutido, questionado, confrontado. Vários teóricos estiveram sob um teste de resistência e sobrevivência de suas concepções para fazer valer o teor científico de seus trabalhos. A ciência cujo objeto é a gênese das idéias, é ideologia, segundo Tracy. Neste sentido, Eagleton é um ideólogo – e seu texto, ideologia. Da interlocução tecida por ele, emergiu um campo complexo de domínios conceituais, cujas contradições a ciência humana ainda não logrou superar.
De todos os percalços enfrentados na intelecção do texto, não seria sensato retomar aqui, em forma de síntese, a diversidade e complexidade dos raciocínios gestados pelo autor que, vale dizer, registrados aqui em nível de superfície, por ser um tema de sentidos tão polêmicos quanto inesgotáveis.
Todavia, no que se refere ao conceito de ideologia, ressalta-se as considerações do próprio Eagleton quando estabelece que o valor de uma teoria da ideologia está nas dimensões afetivas, inconscientes, míticas ou simbólicas com as quais constitui as relações vividas, aparentemente espontâneas do sujeito com uma estrutura de poder e provê a cor invisível da própria vida cotidiana. Uma teoria da ideologia só tem valor se contribuir para a libertação das consciências das crenças letais que submetem homens e mulheres ao jugo de um poder que os escraviza às suas próprias limitações em nome de uma “lei natural.”


[*] Resenha apresentada como trabalho parcial da disciplina “Análise do Discurso”, sob a orientação da Profa. Dra. Sílvia Helena Barbi Cardoso, no curso de Pós-graduação Strictu Sensu em Estudos Literários, da UFMS – Universidade Federal de Mato do Grosso do Sul, em 1998.

1 Duroi, G., Roussel.ª Dicionário de filosofia. 2. d. Campinas, S.P. Papirus. 1996, pág.244


REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

Eagleton, Terry. Ideologia. Uma Introdução. São Paulo. Unesp. 1997 (trad. De Ideology. Na Introduction, 1991)

Gérard, Durozoi; Roussel, André. Dicionário de Filosofia. Campinas, S.P. Papirus. 2.ed. 1996.