segunda-feira, 19 de fevereiro de 2007

Contos e desencontros: em busca de um olhar do leitor



Célia FIRMINO e Elísio Vieira de FARIA*

Como pode a leitura de uma obra ativar, no leitor, os conhecimentos prévios, indagações em direção à construção do sentido do texto?
Para responder à questão proposta é preciso investigar a relação entre autor, obra e público
1, tríade indissolúvel no processo de configuração da obra como Arte, percebida como um sistema simbólico de comunicação inter-humana .
Para Candido, a obra depende do olhar do artista e das condições que determinam sua posição frente aos valores de sociais, ideologias e sistemas de seu tempo. O autor é o intermediador entre a obra e o público, ou seja, o refletor da imagem do artista enquanto criador.
A busca da construção do sentido do texto não se esgota tão somente à luz da concepção da Sociologia, assim é oportuno considerar outros elementos que, se por si, também não explicam toda a obra, contribuem para ampliar os horizontes na compreensão do fenômeno literário.
Para Jauss (1994) a estética da recepção é imprescindível à compreensão da Literatura, vinculada à historicidade em que a perspectiva de época contribua para a produção e compreensão do texto
2. Isto posto, é preciso perceber a história da arte como um processo e, especificamente, com relação à história literária compreendê- la como um processo de recepção e produção estética.
A ciranda da roda autor-obra-público pode produzir efeitos se o acontecimento literário provocar uma retomada no sentido da reapropriação da obra passada por outros (ou o mesmo) autores, tendo a literatura efetivada como acontecimento pelas vias dos horizontes de expectativas dos atores em referência, agregando-se, ainda, os novos leitores, novos críticos e mesmo os autores, os pósteros, na experienciação da obra.
Relativamente aos horizontes de expectativas, o leitor assume o papel enquanto construtor de sentidos e determinador da obra enquanto arte, ativando seus conhecimentos prévios, sua leitura de mundo, sua experimentação frente à teoria da recepção, num contexto experiencial, num fazer experiencial.
Para ilustrar alguns pontos investigados, colocamos em apreciação o conto O Alienista, de Machado de Assis, considerando a existência de um leitor real
3 e não indefinido como considera Leyla Perrone – Moysés 4.
O impacto causado pela obra concerne às relações de poder, que se subdivide em dois tipos: o da ciência e o da política. De acordo com o contexto experiencial do leitor, a questão política ganha relevância, focando o olhar sobre a ideologia que determina as atitudes do personagem Simão Bacamarte, num jogo de disputa, tornando-se árbitro do poder, que decide os destinos das pessoas sob o seu domínio.
Assim, relacionando os acontecimentos narrados por Machado de Assis aos conhecimentos prévios do leitor, referentes às condições da América, da África e de outras regiões de dominação e também das relações político-sociais observadas num contexto de realidade, facilitou a relação texto-contexto.
O autoritarismo pode conduzir e dominar vidas. Itaguaí é um exemplo. Itaguaí é o Brasil. Das senzalas à Casa Verde
5, da cegueira da ciência à falsificação de medicamentos, dos loucos da Casa de Orates6 aos racionais do Palácio da Alvorada, há muito mais que uma simples ruptura do horizonte de expectativa. É o desvelamento de um sentido subjacente à metáfora do homem que, em nome da ciência cega, se arroga o arbítrio de coibir a liberdade humana, assim como os representantes do povo se arrogam o arbítrio de decidir, os destinos do país, a preço de interesses pessoais e das cartilhas ditadas por Organismos Internacionais. Itaguaí é o universo de Simão Bacamarte. E o Brasil, é o universo de quem?
Do ponto de vista estético, Literatura, História e Sociedade estão imbricadas por um estilo extraordinário, o que confere a Machado de Assis a insígnia de maior contista da Literatura Brasileira, portanto, exímio produtor de Arte. Não há como desvincular a relação público-obra-leitor da co-produção de sentido do texto artístico, posto que o conto em análise remete a um constante olhar sobre o mundo recortado em Itaguaí, onde a vida presente na arte traduz a arte de representar a vida.


Referências Bibliográficas

ASSIS, Machado. O alienista. São Paulo: Ática, 1978.
CANDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade. Estudos de teoria e história literária. São Paulo: Nacional, 1965.
JAUSS, Hans Robert. A História da Literatura como provocação à teoria literária. São Paulo: Ática, 1994.
MOISÉS, Leyla Perrone. Altas literaturas: escolha e valor na obra crítica de escritores modernos. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.



* Mestrandos do Curso de Pós-graduação – Mestrado em Letras da UFMS, em Três Lagoas. Disciplina: Literatura História e Sociedade, ministrada pela Prof.a Dr.a Alda Maria Quadros Couto, 1999.
1 CANDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade – Estudos de Teoria e História Literária. (1965: p. 38)
2 A teoria estético-recepcional não permite somente apreender sentido e forma da obra literária no desdobramento histórico de sua compreensão. Ela demanda também que se insira a obra isolada em sua “série literária”, a fim de se conheça sua posição e significado histórico no contexto da experiência da literatura.

3 Os autores do trabalho consideram-se leitores reais, a título de aferição do grau de ruptura e quebra do horizonte de expectativa produzida pela obra em análise.
4 Leyla Perrone-Moisés cita Jauss: “A proposta fundamental de Jauss é que se leve em conta o leitor real. Mas esse leitor não fica definido. Onde iríamos buscar suas marcas? Por que dados recuperaríamos, como propõe Jauss, sua sensibilidade, seu gosto, suas reações?” E o objetivo final da arte que para ele é modificar a vida cotidiana do leitor é menos verificável. (Altas Literaturas: Escolha e valor na obra crítica de escritores modernos. 1998. p. 48)
5 Nome dado ao asilo, por alusão à cor das janelas. (O Alienista. 1978. p. 12)
6 No sentido próprio, “casa de loucos”; por extensão, “casa” de gente insensata, onde ninguém se entende. (O Alienista. 1978. p. 9)

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