quarta-feira, 21 de fevereiro de 2007

Platão e o Simulacro: sentidos possíveis em Deleuze



Célia Firmino[*]


Ser ou não ser, eis a questão. A proposta de Hamlet remete-nos ao diálogo sobre o SOFISTA, em Platão, cuja questão central é tentar uma definição sobre sua arte – a arte do simulacro, ou mimética do ilusionismo. Até que ponto é possível unir ou “entrelaçar o ser e o não-ser na distinção da coisa ou “objeto” e suas imagens, o original e a cópia, o modelo e o simulacro?

A fim de filtrar a verdade do erro, o projeto da divisão é o método proposto, empregado para encurralar o sofista, o justo pretendente à verdade. Partindo de exemplos simples, busca a pesca como primeiro conceito do que é arte, definindo-a como arte de aquisição e arte da captura, referindo-se a esta como ardilosa, já que se utiliza de subterfúgios como arpão, anzol para capturar a sua caça. A metáfora da pesca, portanto, é o mais significativo conceito atribuído ao sofista, por agir como um pescador na captura de sua presa – espíritos inadvertidos que se deixam fisgar por discursos insinuosos, em outras palavras, simulacros de verdade. O sofista seria, assim, um produtor de imagens, habilidade desenvolvida na arte do simulacro.

É importante considerar, inferindo-se do método da divisão exemplificado na pesca e em todo o desenvolvimento do diálogo, que a dialética platônica não é a dialética da contradição, como é o pressuposto hegeliano, mas, a dialética da competitividade, da rivalidade, cujo objetivo é a seleção da linhagem, uma forma de hierarquização estabelecida para aproximação do que é original e do que é cópia, ou seja, as pretensões são julgadas criteriosamente pela moralidade de intenções, em virtude do que Platão considera semelhança (ou essência), a fim de distinguir o verdadeiro do falso pretendente.

Esta dialética permeia a teoria de Platão, cuja base reside na existência do mundo das idéias, mundo inteligível (da essência) e o mundo fenomênico, dos objetos físicos, mundo dos sentidos, sensível (das aparências). Não é uma dualidade que se contrapõe, mas partes constitutivas de uma mesma realidade, ou melhor, o mundo das aparências seria a “materialização” do mundo das idéias, das formas primitivas, dos modelos, da originalidade. Em outras palavras, tudo o que é fenomênico, sensível, aparente, com realidade projetada no plano material, seria uma imitação do que já existe, antes, no mundo inteligível, o das essências. Portanto, os objetos físicos aparecem como cópias imperfeitas dos arquétipos ideais, incorpóreos, cujos modelos seriam as idéias eternas. Estabelece-se, aí, nesta primeira divisão, a distinção do que é original e do que é cópia.

Daí, conceituar a arte como mimética – imitação -, já que tem como proposta a representação de mundo das essências nas formas das aparências, respectivamente de seres e não-seres, subdivididas em mimética da cópia e mimética do simulacro. A primeira - a arte de copiar tem na cópia, por meio do processo seletivo de hierarquização da linhagem, a candidatura a primeira à fidelidade e autenticidade em relação ao original. A segunda - a arte de simular a cópia ou simulacro -, estaria, em relação a imitação, em um nível de distanciamento maior do que a imitação, ou seja, as imagens produzidas seriam cópia da cópia e, portanto, uma pretensão à arte da qual o sofista se faz porta voz. Assim, temos novamente a competição, a pretensão à legitimidade enquanto obra de arte, segundo maior ou menor autenticidade em relação ao modelo original.

Para analisar a questão, reportemo-nos ao conceito platônico de Imagem, como o segundo objeto, copiado do verdadeiro, do modelo. A imagem é dividida em duas formas:
1. A cópia bem fundamentada, possuidora, em segundo lugar, de semelhança, entendendo-se semelhança como a essência interior – a idéia, a “alma” do objeto, o que levou Platão a chamar de cópia-ícone.
2. O simulacro: a imagem destituída de semelhança (de essência), simulação da cópia, construída a partir da dessemelhança, uma espécie de imagem “esfumaçada” da segunda cópia, também chamada de cópia-fantasma.
Importa ressaltar que efeito de ilusão é obtido, não apenas pela habilidade do ilusionista, mas também pela inclusão de um ponto de vista diferenciado do espectador que, dependendo das proporções da obra e do posicionamento desfavorável em que se coloca não é capaz de alcançar plenamente proporções tão vastas. Neste sentido o espectador faz parte do simulacro, já que a obra se transforma e deforma segundo o seu ponto de vista.
Assim, a diferença fundamental reside na observação de que, enquanto no simulacro há a perda da existência moral, entrando na realidade estética superficial – apenas das aparências -, na cópia bem fundamentada, o artista preserva a semelhança – a essência -, assegurando a possível vitória da cópia sobre o simulacro como pretendia Platão. Assim, os conceitos de cópia e de simulacro coloca em questão outro conceito, não menos importante: o de usuário, produtor, imitador.

Platão coloca que o usuário seria aquele que se posiciona do alto da hierarquia. Detentor de um saber julga sobre os fins e dispõe sobre a ideia ou modelo. O produtor, quando realiza uma cópia fundamentada, assegurando-lhe a essência espiritual e interior imita o modelo, caracterizando, portanto, sua obra como uma verdadeira produção. Quando, no entanto, a imitação não passa de mera simulação da cópia, cujo efeito de semelhança é apenas aparente, o valor conceitual passa a ter um sentido pejorativo, porque produzido a partir da disparidade, ou seja, obtido por um ardil ou subversão do sofista em relação ao espectador e a obra.
Como se observa os conceitos platônicos pressupõem ponto de vista privilegiado, capaz de julgar com competência o falso do verdadeiro, a cópia do simulacro, tendo como base o ser e não-ser, a essência e aparência, imagem e semelhança. Sabe-se que tais conceitos fundamentaram um conceito de arte como representação de mundo das ideias e dos sentidos, constituindo-se cânones orientadores para selecionar o que seria arte pura e arte simulada ou “não arte”.
No entanto, o mundo está num ininterrupto processo de devir (vir- a – ser,) em que as disparidades, as multiplicidades são a base da totalidade, ou seja, o todo é o resultado de múltiplos elementos; em que a estética inclui o observador (e pontos de vista) como elemento importante para a “re-produção” do sentido, possibilitando leituras de mundo diversificadas e diferenciadas. A arte é entendida também como experiência do real, o que implica representação de um mundo (de essência e aparência) cuja totalidade é também o resultado de disparidades, multiplicidades de experiências vividas na relação produtor, obra, leitor.

A arte pressupõe a criatividade, o que implica dizer que, a simulação de realidades, os pontos de vista como resultado de experiências vividas ou diferenciadas visões de mundo, não são necessariamente falsas ou simulacros. A linguagem da arte, construída a partir de plurissignificação do signo linguístico, não são simulacros da verdade, mas formas diferentes de representação das realidades.
Deste ponto de vista, o ser e o não-ser platônico (entendido como vir-a-ser no plano existencial) são entrelaçamentos indissociáveis. Consequentemente, o simulacro, construído sobre as bases de essência e aparência, semelhança e diferença deve ser analisado, uma vez que não se sustenta mais o ponto de vista privilegiado capaz de julgar e definir o verdadeiro do falso. Pensar a diferença a partir da similitude, pensar a similitude como produto de uma disparidade é pressuposto indispensável à construção de um sentido para o simulacro capaz de elevá-lo de cópia degradada à condição de cópia criativa, multifacetada das verdades diversas dos modelos representacionais da arte, portando níveis variados de essências e, portanto, também arte.

Situar o simulacro na modernidade, talvez não seja tarefa apenas da arte, mas essencialmente da filosofia. Não mais a Filosofia da Academia, mas a filosofia comprometida com as disparidades sociais, das ruas, das favelas. É possível, neste aspecto, uma reversão do platonismo, não pretendida por Nietzsche como abolição do mundo das ideias e do mundo das aparências, ou seja, a destruição de modelos para dar lugar ao caos, mas a restauração do simulacro como um “caos organizado” a partir do qual é possível repensar o ser e o não-ser, construindo um mundo em que a imagem, submetida à semelhança resulte em modelos que seja possível a reprodução da integridade humana.


Bibliografia:

1. DELEUZE. G. “Platão e o simulacro”. In: Lógica do sentido. São Paulo: Perspectiva, 1974
2.PLATÃO. Diálogos. O Banquete/Fédon/Sofista/Político.Textos de José Américo Pessanha; traduções e notas de José Cavalcante de Souza, Jorge Paleikat e João Cruz Costa.-2 ed. – São Paulo: Abril Cultural,1983.

----- Original Message -----

[*] Resenha apresentada como proposta parcial de trabalho para a disciplina de Tópicos Especiais em Correntes da Crítica Literária, sob a orientação do Prof. Dr. Paulo Sérgio Nolasco dos Santos, do Curso de Pós Graduação em Estudos Literários da UFMS, 1999.

terça-feira, 20 de fevereiro de 2007

Blade Runner: paródia ou paráfrase da divina comédia humana?
“O homem criou o homem à sua imagem e semelhança...
Agora o problema é seu...”

Célia Firmino[*]


“Em chamas, os anjos caíram...trovões ecoando ao redor de suas praias queimando com os fogos de Orc.” O discurso do líder replicante, louro, olhos azuis, auto suficiente, o mais belo dos arcanjos, cópia esteticamente perfeita para os supostos padrões de beleza humanos, reflete nitidamente a imagem bíblica, arquetípica, do anjo decaído.
Não tendo podido apropriar-se da glória celeste pela excessiva ambição de pretender ser humano, esforça-se por implantar seu reino na terra. Para preencher a distância infinita que separa a sua imagem da essência pretendida, quer unir-se à divindade reunindo em si elementos da natureza divina e humana: direito às emoções, à vida, à uma história, ao medo, à morte imprevisível. “O criador pode consertar a criação? Eu quero mais vida.” Roy Batter é Lúcifer, o herói da epopéia, bela forma, mas de existência moral inferior ao homem do século XXI. Na impossibilidade de ser homem ou anjo, prefere ser o parodístico reverso – o demônio. Projetado para ser ou parecer à imagem do homem que, por sua vez, é a pretensa imagem e semelhança de Deus e, insatisfeito por ser apenas criatura, com limitações impostas pelo código genético, reveste-se de um poder antagônico, isto é, utiliza-se das habilidades recebidas ou desenvolvidas – habilidade para o combate e auto suficiência - para rivalizar com o criador, Tyrell, o pai da obra.

Resguardados os limites das representações, o texto fílmico, interdiscursivamente, dialoga com o mito bíblico da criação, a mais evidente paródia da divina epopéia humana. Protagonistas e antagonistas revestidos de competência, rivalizam entre o ser e o não ser, ter ou não ter o direito de existir. De um lado, Tyrell, o gênio criador, humano e divino em sua genialidade. De outro, Roy Batter, sua obra prima perfeita (o mais humano possível), o herói parodiado: pensa, mas não existe; tem emoções como ódio, chora diante da morte, deseja vingança, destrói, mas não é humano. E na disputa por ser e não ser real e/ou verdadeiro, a dialética platônica traz a tona o discurso do sofista e a questão do simulacro.
Os simulacros, segundo Platão, são como falsos pretendentes, construídos a partir de uma dissimilitude, implicando uma perversão, resultado da imagem (aparência), superficial sem semelhança (essência Interior) em relação ao modelo. No jogo de quem é quem, o líder replicante figura como o falso pretendente à condição de humano, belo efeito de ilusionismo, no estilo parece que é, mas não é, porém pretende ser. No que se refere ao jogo da disputa, vale tudo, até mesmo atitude edipiana de matar o pai, por amor à vida. Discurso dissimulado, insinua, recobre a dessemelhança assim como um desequilíbrio interno. Se a pretensão é justa ou não, falsa ou verdadeira, cabe à Filosofia argumentar. A imitação necessariamente não deve ser má, pode ser uma boa cópia, contudo pode tomar um sentido pejorativo na medida em que não consegue passar de uma dissimulação , refletindo um efeito de semelhança apenas exterior, formal, sem essência ou de conteúdo pervertido.
Na dialética da rivalidade em Platão, os pretendentes competitivamente buscam a legitimidade de ser cópias bem fundamentadas, disputam em nível de igualdade a posição da qual se julgam legítimos herdeiros. Em Blade Runner, o líder replicante renuncia, à condição que lhe foi dada ou imposta, às bem aventuranças de ser um andróide feliz em seus quatro anos de vida sem emoções, à juventude permanente sem longevidade para lutar pelo direito de ter as mesmas características do modelo, de “ser igual”, embora as diferenças.

A eterna dualidade entre criador e criatura, essência e aparência, imagem e semelhança, ser e não ser, cópia e simulacro são dialogadas em Platão. Quem somos? De onde viemos? O que fazemos aqui? Para onde vamos? Para tentar um resposta para estas e outras tantas questões existenciais, a filosofia platônica divide o mundo em duas dimensões: o da essência ou das idéias – o mundo primitivo -, do qual todos originamos e voltaremos após as experiências vividas , num círculo contínuo de eterno retorno e o mundo fenomênico, o das aparências, da materialização do mundo das idéias, definido como cópia imperfeita deste mundo. Objetivo: ascendermos do primitivismo à angelitude, através de experiências sucessivas, necessárias à purificação do espírito. Estabelece assim, os discutidos conceitos de originalidade e modelo, cópia, imitação, simulacro, hierarquia, moralidade e perversão, deformidade e perfeição, bases para a filosofia da dualidade que terá reflexos na formação do pensamento ocidental bem como nos conceitos de arte em suas diversas expressões.
O ser pressupõe o não-ser e nesse entrelaçamento de realidades e verdades perdem-se os limites do modelo e da imitação, do original e da cópia. Como recurso possível para as necessárias delimitações, pensar em “re-produções”, remete-nos não para além do simulacro, mas para uma das suas representações – a paródia. Pensar em paródia significa pensar ainda em paráfrase, já que, ora o produto reafirma o modelo, ora constitui-se-lhe a projeção invertida, simulada.

Considerando o mundo fenomênico como cópia imperfeita do mundo das idéias, da essência, campo de manifestações de sentimentos como ambição, ódio, orgulho, vaidade, vingança, destruição, as deformidades de caráter em geral, enfim, este palco em que se encenam diariamente as mais variadas tragédias, poder-se-ia dizer que seria a mais perfeita paródia do Criador?
Ser ou não ser humano, paródia ou paráfrase, eis a questão. A imagem reivindica direito à semelhança. A imitação pretende ser cópia, cópia pretende ser modelo. Réplica pretende ser unidade. Simulacro pretende ser verdade. Pretender a reversão do simulacro é pretender a conversão da paródia em paráfrase: ascender o suposto pervertido à reafirmação das qualidades do pretenso modelo, cópia do original. Ser ou não ser possível, agora é a questão.
Do silogismo: o homem foi criado por Deus “à sua imagem e semelhança”, o homem cria o homem à sua imagem e semelhança, logo o homem quer ser “deus”, infere-se um outro conceito platônico na hierarquia do processo de “re-produção”– o de usuário, já que este se posiciona do alto da hierarquia e, detentor de um saber, julga sobre os fins e dispõe sobre idéia ou modelo. Quando imita o modelo, assegurando-lhe essência espiritual e interior, realiza uma verdadeira produção porque bem fundamentada. É o caso de Rachel, a replicante especial, cópia bem sucedida, já que tem assegurada em si a existência moral. No entanto, quando se realiza uma cópia de cópia, cujo efeito estético simula a semelhança, mas não a assegura, provoca ilusionismo e, portanto, simulacro. É o que se apreende da aplicação desses conceitos à produção dos replicantes da série Néxus 6.

A imitação pode ser uma boa cópia, mas pode tomar sentido pejorativo na medida em que não consegue passar de uma dissimulação e reflete um efeito de semelhança apenas exterior e improdutivo, obtido por um ardil ou subversão.
Cópia, simulacro, paródia. Bem estreitos são os limites que as separam. Para o sofista, uma “arte – manha” de desviar da imagem real o ponto de vista do observador, atingindo um efeito de subversão. Paródia é uma ode que perverte o sentido de outra ode. Simulacros: aquilo a que pretendem, o objeto, a qualidade, etc. Pretendem-no por baixo do pano, graças a uma agressão, de uma insinuação, de uma subversão. Neste ponto, as fronteiras se diluem. Diferem-se, todavia, quando a paródia propõe também a possibilidade de uma inversão positiva, de uma ascensão, ao contrário do simulacro que assume sempre o sentido pejorativo da imagem projetada. Equivale dizer que a paródia pode conter imagem sem semelhança, imagem e semelhança sem, no entanto, deixar de ser paródia. Pretender a condição de legítimo herdeiro pressupõe por à prova a identidade . O princípio de alteridade, do Outro como modelo e através do Outro, o Mesmo que se reafirma como determinação abstrata do fundamento é o modelo platônico. A semelhança é a essência da cópia, corresponde à similitude, à “igualdade” na diferença. Se a cópia, a imitação preserva essa essência, torna-se legitimamente exemplar, com direito à segunda posição em relação ao modelo na escala hierárquica. Identificar quais são os elementos essenciais à preservação da semelhança é o grande desafio.

Os replicantes não deveriam ter passado, já que este é a base para as emoções, reafirmação do essencial à condição de ser humano. A memória temporal e a memória emocional são o suporte para a ressignificação do momento presente. As experiências vividas são ressignificadas pelas lembranças implantadas que seriam o traço mnemônico, viabilizador da identidade, de individualidade. Ora, não há identidade sem a chancela social que a legitima, já que a identidade é um processo de construção de imagem por meio do outro. Portanto, o modelo é a base de todas as variantes através das quais a identidade se faz representar. Se tais representações são humanas ou divinas, pervertidas ou reafirmadas, eis o que determina a distinção entre paródia e paráfrase. No entanto, o procedimento comparativo entre modelo e imitação, forma e conteúdo é imprescindível ao discernimento das fronteiras que dividem este complexo universo de seres e não seres.
Os replicantes sabem quanto tempo lhes resta e lutam por prolongá-lo, reivindicam esse direito de seu “criador”, querem mais, existir de fato, possuir identidade, emoções, uma história de vida, o que lhes é negado. Utilizam-se de uma história artificial representada pelas fotos que mostram padrões de vida humanos. Uma espécie de memória armazenada, construída a partir de modelos sociais. Evidenciando, portanto uma visão Antropológica e Sociológica de que a identidade só é possível de ser atribuída , mantida e só transformada socialmente. É também, a partir de Deckard (o Outro) que Rachel passa a existir; é ele que a “humaniza”, que a aproxima do modelo, cria-lhe uma memória emocional movido por um sentimento de amor ou desejo, uma emoção virtual e paradigmática do anjo, introjeta-lhe os elementos de identificação, os mesmos que os aproximam, garantem-lhe a existência moral , elaborando, portanto, uma representação parafrásica do modelo. Roy Batter, de imagem parafrásica, porque reafirma a forma do modelo e de semelhança parodiada, já que subverte, antagoniza a essência - representa a possibilidade de convivência de dois tipos de “re-produção” num mesmo continente – o “texto”.

Mas o ser humano não é, por definição, um texto em que antagonizam virtudes e imperfeições, bem e mal, certezas e incertezas, amor e ódio, em busca constante do equilíbrio, da individuação, da identidade, do ser? Em outras palavras, as respostas para o que somos, o que devemos ser, o que é a vida, para onde vamos? Todos, de alguma forma, não buscamos a paráfrase da perfeição e, para tanto, não percorremos dialeticamente o caminho do não-ser? Daí, Platão dizer que “nada de falso é possível sem condição de supor o não-ser como ser”. E acrescentaríamos que nada de verdadeiro é possível sem a condição de experienciar o falso, a realidade do não-ser. A arte de separar, de dissociar o melhor do pior é condição sine qua non da “purificação”, da preservação da boa cópia, da imitação bem fundamentada.

O que há de paródia e o que há de paráfrase na criatura, na “reescritura”?
Roy Batter é o filósofo . Convive com a arbitrariedade da duração da vida, com a experiência de saber-se finito, com a precisão do tempo medido materialmente – 4 anos. É a luz que brilha o dobro, mas que deve arder a metade do tempo, com muito brilho. É a representação da imagem que busca em tempo irrisório construir a sua semelhança, a sua identidade. Para ele, não há a decrepitude acelerada de um corpo transitório que marca, imprecisamente, a aproximação do fim. Há o tempo preciso, exatamente quatro anos, e um código genético que não pode ser alterado. Quatro anos apenas para reverter a paródia, o simulacro, em perfeita paráfrase de ser e de existir, não apenas porque pensa, mas porque ama, odeia, tem medo e esperanças. O suposto simulacro, candidato a pretendente quer a identidade. Talvez, para ele, ser humano significasse ter direito às mesmas perguntas sem respostas. A semelhança pressupõe, necessariamente, a existência do Outro, já que não é possível ser semelhante sozinho, como é incoerente ser dessemelhante sem relação à coisa alguma. A imitação sobrevive por causa do modelo. O espelho só tem razão de ser porque reflete a imagem. “Há um pouco de mim em vocês” – diz o projetista. O líder replicante quer a reversão: “O criador pode consertar a criação?” O código genético que não pode ser alterado é a essência, a identificação. Quem vive afinal? Apenas isto bastaria para torná-lo humano, “igual”. Mas quer deixar também um pouco de si mesmo no Outro. Sabe que o preço da semelhança de uma cópia imperfeita é a morte da imagem. No momento em que precisa decidir sobre deixar viver ou morrer uma vida “ao fio da navalha”, as últimas diferenças diluem-se como lágrimas na chuva. Sublima a própria agonia e deixa-se morrer suavemente como pássaro que se liberta. Neste sentido, a reversão torna-se possível .

[*] Artigo produzido em 1999, sob a orientação do Prof Dr. Paulo Nolasco, no curso de Pós-Graduação, em nível de mestrado da UFMS – Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, pela mestranda Célia Firmino.

BIBLIOGRAFIA
DELEUZE, G. “Platão e o simulacro”. In: Lógica do sentido. São Paulo: Perspectiva. 1974.

PESSANHA, José Américo Motta. “Sofista”. In: Platão. Diálogos. Traduções e notas de José Cavalcante de Souza, Jorge Paleikat e João Cruz Costa. 2. ed. São Paulo. Abril Cultural, 1983.
SANT’ANNA, Affonso Romano de. Paródia, Paráfrase & Cia. São Paulo. Ática.1991.

segunda-feira, 19 de fevereiro de 2007

Minsk: uma releitura de Graciliano Ramos

por Célia Firmino*

- Eh! Eh!
Saudei, assim, a menina que me olhava admirada e triunfante. Talvez nunca tivesse visto alguma coisa assim como eu: grande, com manchas amarelas, inchado, andar torto – um periquito verdadeiro.
Tio Severino é o responsável. Aquele lugar não era a fazenda e aquela menina olhando maravilhada, soltando gritos selvagens, fez-me sentir um estranho no ninho. E que ninho estranho...
Luciana, sem demora, acomodou-me no fura-bolo e entrou comigo a passear pela casa, a conhecer as pessoas, tão rapidamente, deixando-me um tanto quanto desnorteado. Expôs-me à cozinheira e Maria Júlia. Já refeito e mais equilibrado do passeio, observei que ambas não se importaram comigo. Não me viram atenciosamente. Começava a perceber a insignificância das pequenas coisas para a gente grande.
A menina estava feliz demais para reagir às incompreensões. Voltou-se para mim carinhosamente, com o intuito de batizar-me e adentramos a casa. Paramos na sala de jantar, ela sentou-se à mesa e casualmente abriu um livro. Desci à superfície, curioso, atraído pelas cores e divisões com letras centrais; andava de um lado a outro, desajeitado, observando estranhamente aqueles riscos envolvidos por uma tonalidade semelhante aos rios da fazenda. Parei, olhei para Luciana como quem interroga.
- É um Atlas. Explicou-me atenciosamente.
Em seguida, chamou a irmã:
- Maria Julia, como se chama este lugar? Perguntou, apontando para os meus pés.
- Minsk.
- Minsk?!
Com tom de dúvida na voz, pegou o livro e aproximou-se da mãe.
- Leia isto, mamãe.
- Minsk.
Neste momento, Luciana olhou para mim como quem dá a sentença final, decididamente, sem apelações.
Meus pés e meus passos levaram-me a chamarem-me Minsk. Que engraçado para um periquito.
Luciana era realmente surpreendente. Levou-me a conhecer os móveis, o cômodo, o quintal, as árvores. Aí, senti-me mais familiarizado; parecia um pedacinho da fazenda.
Em seguida, apresentou-me o gato.
Ah! O gato. Sempre ouvia histórias trágicas a respeito de gatos e pássaros. A impressão de que seria atentamente observado fez-me colocar em posição defensiva. Meu instinto de sobrevivência alertava-me de que é bom ser importante, nunca, porém, para um gato, principalmente se ele estiver faminto. Aguardei atentamente.
Luciana advertia-o para que fôssemos amigos, afinal eu não era um rato.
- Um rato? De penas coloridas? Seria possível um gato pensar assim?
Não era possível, conclui. Um instinto animal nunca se engana, especialmente o faro.
Todos estes pensamentos passavam velozmente pela minha cabeça, ao mesmo tempo em que espreitava os movimentos do meu novo amigo.
Nenhuma reação. O bichano, tranqüilo, cerrava os olhos ao sol, preguiçosamente. Parece que perdera o faro para qualquer encrenca. Queria paz. Tanto que, manhoso, aceitava vez em quando, carinhosas periquitadas na cabeça e os restos da afeição que Luciana dispensava a mim.
A minha chegada mudou, a olhos vistos, os hábitos da menina. De natureza sonhadora e imaginação fértil, desceu do mundo da lua, onde as crianças costumam construir a infância de aventuras e mágico faz-de-conta.
D. Henriqueta da Boa-Vista, metamorfose que Luciana criava quando queria ser moça antes da hora, foi substituída por um periquito de fazenda. Um personagem real, de nome engraçado, vive agora, constantemente, empoleirado em seu ombro e fantasias. Transformei-me em companheiro de seu agitado, solitário e encantado mundo infantil.
Seu pai, após um dia inteiro de ausência, preferia o jornal; sua mãe irritava-se à toa; a criada, rabugenta, resmungava o tempo todo; o tio Severino já estava velho e falava difícil; Maria Julia, preguiçosa descansava entre revistas e bruxas de pano. Ninguém compartilhava as invencionices de Luciana. Ninguém entendia as conversas de Luciana.
Seu Adão carroceiro, às vezes, tentava decifrá-las. Pensava, coçava o pixaim, inutilmente. Os adultos não sabiam ser crianças, mesmo de vez em quando. Todos estavam sempre ocupados. Não havia tempo. Por isso, Luciana inventava interlocutores, fazia confidências às árvores e às paredes, personagens invisíveis, doces e silenciosos.
Fui, rapidamente promovido a seu confidente. Recebia-lhe carícias, atenção. Um periquito ruidoso, colorido e compreensivo. Chamava-me, afetuosamente.
- Minsk.
- Eh! Eh! Respondia- lhe o afeto em periquitês.
Quando o dia começava a despertar, meu grito soava pela casa. Chegava, desajeitadamente à cama de Luciana, escalava a coberta e aninhava-me em seus braços magros. Viajávamos, pelo sonho, ao nosso paraíso.
Encontrava nas travessuras de Luciana um significado novo de liberdade. Nestes momentos, agitava-se em mim as recordações do mato, o gosto por aventuras.
Pulava de galho em galho, buscava outras árvores, outros quintais... Sentia a terra sob meus pés, o vento mover minhas penas e voava. Quando satisfeito, voltava.
Acontecia, às vezes, que absorto em meus pensamentos perdia a direção e me distanciava. Não tardava o tempo e já me alcançava os gritos desesperados da menina, inquieta, estabanada, procurando-me.
- Eh! Eh!
Era o sinal. Dava as buscas e logo me encontrava. Colocava-me em seu ombro, alegre, expansiva, enviando-me beijos e eu retribuía-lhe em periquitadas carinhosas no couro cabeludo, bicadas nas orelhas, escondendo minha cabeça em seus cabelos revoltos.
Assim era eu. Assim era Luciana.
Afligia-me, porém, o espírito de periquito, observar que ela não prestava muita atenção aos lugares onde pisava. Esbarrava-se em quinas de mesa, chutava pés de móveis. Manchas, arranhões, galos na cabeça, já eram-lhe características. Marcas do comportamento estabanado, descuidado. Desatenta e desafiadora. Tinha ainda o irritante costume de andar com os olhos fechados e de costas. Irritantes para as pessoas conhecidas e ranzinzas.
Fazia por desafio. Se conseguia fazer um percurso de olhos fechados e de costas, sentia-se triunfante, vencedora e orgulhosa. Porém, se chocava-se com objetos, pisava em falso, era o bastante para sentir-se humilhada, pois justificava, assim, as opiniões caseiras. Mas, desistir jamais. Recomeçava sempre, até acertar.
Um certo dia, ouvi o grito de Luciana abafado, senti a voz angustiada.
- Minsk!...
Quase num sussurro, gritava-me o nome. Senti-me como se eu tivesse perdido a direção. Deus do céu? O que estava acontecendo? Por que ela estava tão aflita? Por que eu me sentia distante, dolorido, mole?
- Minsk! Não morra!
Ouvia novamente a voz triste e sem força de Luciana. Como se alguém, fazendo a marcha de olhos fechados, tivesse-lhe pisado sem ver, deixando-lhe um restinho de vida. Como se fosse um sonho ruim. Assim me sentia também: uma mancha dolorosa...as asas sem se mover...
- Minsk!! Pobrezinho! Como dói...
Ela repetia, muito longe... O eco da voz sumindo no fim do abismo... Silêncio.
- Eh! Eh!
Como um beijo, saudei, assim, a menina.

*Aluna do Curso de Pós-Graduação, em nível de mestrado, da UFMS – Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. Adaptação do Conto Minsk, de Graciliano Ramos, na perspectiva do narrador, sob orientação do Prof. Dr. Orlando Antunes Batista. 1999.

Contos e desencontros: em busca de um olhar do leitor



Célia FIRMINO e Elísio Vieira de FARIA*

Como pode a leitura de uma obra ativar, no leitor, os conhecimentos prévios, indagações em direção à construção do sentido do texto?
Para responder à questão proposta é preciso investigar a relação entre autor, obra e público
1, tríade indissolúvel no processo de configuração da obra como Arte, percebida como um sistema simbólico de comunicação inter-humana .
Para Candido, a obra depende do olhar do artista e das condições que determinam sua posição frente aos valores de sociais, ideologias e sistemas de seu tempo. O autor é o intermediador entre a obra e o público, ou seja, o refletor da imagem do artista enquanto criador.
A busca da construção do sentido do texto não se esgota tão somente à luz da concepção da Sociologia, assim é oportuno considerar outros elementos que, se por si, também não explicam toda a obra, contribuem para ampliar os horizontes na compreensão do fenômeno literário.
Para Jauss (1994) a estética da recepção é imprescindível à compreensão da Literatura, vinculada à historicidade em que a perspectiva de época contribua para a produção e compreensão do texto
2. Isto posto, é preciso perceber a história da arte como um processo e, especificamente, com relação à história literária compreendê- la como um processo de recepção e produção estética.
A ciranda da roda autor-obra-público pode produzir efeitos se o acontecimento literário provocar uma retomada no sentido da reapropriação da obra passada por outros (ou o mesmo) autores, tendo a literatura efetivada como acontecimento pelas vias dos horizontes de expectativas dos atores em referência, agregando-se, ainda, os novos leitores, novos críticos e mesmo os autores, os pósteros, na experienciação da obra.
Relativamente aos horizontes de expectativas, o leitor assume o papel enquanto construtor de sentidos e determinador da obra enquanto arte, ativando seus conhecimentos prévios, sua leitura de mundo, sua experimentação frente à teoria da recepção, num contexto experiencial, num fazer experiencial.
Para ilustrar alguns pontos investigados, colocamos em apreciação o conto O Alienista, de Machado de Assis, considerando a existência de um leitor real
3 e não indefinido como considera Leyla Perrone – Moysés 4.
O impacto causado pela obra concerne às relações de poder, que se subdivide em dois tipos: o da ciência e o da política. De acordo com o contexto experiencial do leitor, a questão política ganha relevância, focando o olhar sobre a ideologia que determina as atitudes do personagem Simão Bacamarte, num jogo de disputa, tornando-se árbitro do poder, que decide os destinos das pessoas sob o seu domínio.
Assim, relacionando os acontecimentos narrados por Machado de Assis aos conhecimentos prévios do leitor, referentes às condições da América, da África e de outras regiões de dominação e também das relações político-sociais observadas num contexto de realidade, facilitou a relação texto-contexto.
O autoritarismo pode conduzir e dominar vidas. Itaguaí é um exemplo. Itaguaí é o Brasil. Das senzalas à Casa Verde
5, da cegueira da ciência à falsificação de medicamentos, dos loucos da Casa de Orates6 aos racionais do Palácio da Alvorada, há muito mais que uma simples ruptura do horizonte de expectativa. É o desvelamento de um sentido subjacente à metáfora do homem que, em nome da ciência cega, se arroga o arbítrio de coibir a liberdade humana, assim como os representantes do povo se arrogam o arbítrio de decidir, os destinos do país, a preço de interesses pessoais e das cartilhas ditadas por Organismos Internacionais. Itaguaí é o universo de Simão Bacamarte. E o Brasil, é o universo de quem?
Do ponto de vista estético, Literatura, História e Sociedade estão imbricadas por um estilo extraordinário, o que confere a Machado de Assis a insígnia de maior contista da Literatura Brasileira, portanto, exímio produtor de Arte. Não há como desvincular a relação público-obra-leitor da co-produção de sentido do texto artístico, posto que o conto em análise remete a um constante olhar sobre o mundo recortado em Itaguaí, onde a vida presente na arte traduz a arte de representar a vida.


Referências Bibliográficas

ASSIS, Machado. O alienista. São Paulo: Ática, 1978.
CANDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade. Estudos de teoria e história literária. São Paulo: Nacional, 1965.
JAUSS, Hans Robert. A História da Literatura como provocação à teoria literária. São Paulo: Ática, 1994.
MOISÉS, Leyla Perrone. Altas literaturas: escolha e valor na obra crítica de escritores modernos. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.



* Mestrandos do Curso de Pós-graduação – Mestrado em Letras da UFMS, em Três Lagoas. Disciplina: Literatura História e Sociedade, ministrada pela Prof.a Dr.a Alda Maria Quadros Couto, 1999.
1 CANDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade – Estudos de Teoria e História Literária. (1965: p. 38)
2 A teoria estético-recepcional não permite somente apreender sentido e forma da obra literária no desdobramento histórico de sua compreensão. Ela demanda também que se insira a obra isolada em sua “série literária”, a fim de se conheça sua posição e significado histórico no contexto da experiência da literatura.

3 Os autores do trabalho consideram-se leitores reais, a título de aferição do grau de ruptura e quebra do horizonte de expectativa produzida pela obra em análise.
4 Leyla Perrone-Moisés cita Jauss: “A proposta fundamental de Jauss é que se leve em conta o leitor real. Mas esse leitor não fica definido. Onde iríamos buscar suas marcas? Por que dados recuperaríamos, como propõe Jauss, sua sensibilidade, seu gosto, suas reações?” E o objetivo final da arte que para ele é modificar a vida cotidiana do leitor é menos verificável. (Altas Literaturas: Escolha e valor na obra crítica de escritores modernos. 1998. p. 48)
5 Nome dado ao asilo, por alusão à cor das janelas. (O Alienista. 1978. p. 12)
6 No sentido próprio, “casa de loucos”; por extensão, “casa” de gente insensata, onde ninguém se entende. (O Alienista. 1978. p. 9)

quinta-feira, 15 de fevereiro de 2007

A Leitura em Questão: Foucambert pela Leiturização social

por Célia Firmino*


1. Por que incentivar a leitura?

Há um discurso recorrente de que o brasileiro ainda lê muito pouco. Em 1991, metade da população era praticamente analfabeta. Muitos dos que sabiam assinar o nome, não eram capazes de ler e compreender uma mensagem escrita – eram chamados de analfabetos funcionais. Para o pesquisador Jean Foucambert, “Analfabetismo é o desconhecimento das técnicas de utilização da escrita; iletrismo é a falta de familiaridade com o mundo da escrita, uma exclusão em relação ao todo ou a parte desse modo de comunicação”. (1994, p. 18). Assim, podemos considerar que todos nós, em algum campo do conhecimento, somos iletrados, porém todos somos de alguma forma letrados em outras áreas na medida em que aprendemos a dominar as técnicas de usos sociais da escrita.

No entanto, há que se considerar que o conceito de alfabetização, historicamente, vem sofrendo alterações determinadas por revoluções sociais tecnológicas. Para o referido pesquisador, na primeira metade do século XX, com o advento da revolução industrial iniciada no fim do século XIX, o conceito de analfabetismo era o resultado de ausência de escolarização. Atualmente, este conceito aparece como conseqüência do iletrismo (FOUCAMBERT, 1994, p 18), em contraponto ao conceito de letramento[1]. Este fenômeno reside nos mecanismos de uma sociedade que excluem do processo de decisão e poder cerca de 50 e 70% dos “cidadãos”. O pesquisador sugere que,

uma sociedade hierarquizada com base em classes sociais, a distribuição desigual das técnicas de acesso aos bens simbólicos reforça e realimenta as características excludentes dessa sociedade. Poucos são letrados (e não se busca saber o que os torna letrados), enquanto muito são apenas alfabetizados (e indaga-se por que, alfabetizados não se tornam letrados). Ma tanto os alfabetizados quanto os analfabetos são frutos do mesmo processo de exclusão, do iletrismo – que, por sua vez, resulta da exclusão de ambos das condições que lhes permitiriam participar das redes de circulação de impressos. Para aqueles que socialmente vivem essas condições de exclusão, o destino é a alfabetização ou mesmo o analfabetismo – num caso ou noutro, a não-leitura. (1994, p.vii)

Considerando-se a concepção marxista de sociedade e a relação com a escrita, observa-se que a escola, tradicionalmente, contrapõe ensinar a escrever com ensinar a ler, o que gera uma sociedade excludente dos poderes que a escrita e a leitura confere aos que as dominam. Significa dizer que a escola alfabetiza, mas não produz leitores capazes de, socialmente, exercer competências de leitura e escrita que os contextos sociais exigem. Tal fenômeno impõe a escola repensar suas funções e reconceitualização de texto e leitor, adequando-os às demandas sociais, ou seja, o ensino de leitura e escrita como práticas sociais.
Para se ter noção do problema ora exposto, em 1997, finalizou-se na cidade de São Paulo, um estudo para definir, a partir de dados concretos, o que é analfabetismo funcional num contexto urbano da América Latina (RIBEIRO, 2002, p 45-54). O estudo foi feito com uma amostra representativa da população paulistana de 15 a 54 anos, mostrou que 7,4% são analfabetos absolutos; 25,5% são analfabetos funcionais, pois fazem pouco uso da leitura e da escrita em sua vida diária, demonstrando ter uma compreensão mínima de um texto escrito; 35,5% apresentaram apenas uma compreensão básica da leitura e somente 33,5% atingem níveis mais elevados dessa habilidade e fazem um uso mais intenso e diversificado da linguagem escrita, por exemplo, lendo jornais periodicamente ou utilizando meios escritos para obter novos conhecimentos ou planejar atividades complexas.
Pesquisas na França (FOUCAMBERT, 1994, p. 19) revelam que hoje, cerca de 15% dos cidadãos, escolarizados e que falam a língua francesa, são incapazes de achar significado num texto simples, relacionado à sua vida diária. Nos Estados unidos, a proporção é de 20% e alguns levantamentos constatam que o número de analfabetos vem aumentando anualmente em algo próximo a um milhão e quinhentos mil. Tais dados apontam para um contexto mundial e não apenas relacionados à América Latina, o que acentua o processo de exclusão social da marginalização de cidadãos, na medida em que apenas uma minoria exerce os poderes que a escrita confere. Reportando-nos ao pesquisador francês,
a noção de poder está ligada à própria natureza da comunicação escrita na sua exigência de distanciamento e de teorização: o poder sobre si mesmo; o poder de se conhecer, de se compreender e de situar-se; o poder sobre sua maneira de aprender, sobre a gestão de seu tempo e de seu espaço; o poder de participar da vida, das decisões, dos projetos de diferentes grupos; o poder sobre o ambienta físico e social para compreende-lo, transformando-o e agindo sobre ele através de produções. (FOUCAMBERT, 1994. p. 34)

Considerando o quadro exposto, defrontam-nos com uma emergência social, antes atribuída apenas à escola. O saber-decifrar não é suficiente ao nível de letramento imposto pela sociedade contemporânea. O saber-ler não pode ser confundido com o saber-decifrar. À escola e à sociedade impõem-se a urgência de uma reconceitualização do status de leitor para atender ao desafio de incorporar todos os alunos e cidadãos à cultura do escrito. “Para formar todos os alunos como praticantes da cultura escrita, é necessário reconceitualizar o objeto de ensino e construí-lo tomando como referência fundamental as práticas sociais de leitura e escrita. Por em cena uma versão escolar dessas práticas que mantenha certa fidelidade à versão social (não-escolar), requer que a escola funcione como uma microcomunidade de leitores e escritores.” (LERNER, 2002, p. 17)
Tal reconceitualização implica fundamentalmente em uma reflexão, não apenas sobre os textos que devem circular na escola, mas, sobretudo o que significa a leitura. Ler não significa apenas passar por algo escrito, ou fazer a versão oral do escrito. Ler significa muito mais do que decodificar. Ler significa ser questionado pelo mundo e por si mesmo, significa buscar respostas que podem ser encontradas na escrita, mas que para isso, é preciso ter acesso a essa escrita; significa um processo de interação entre texto e leitor. Ler significa construir uma resposta que integra conhecimentos prévios a novos conhecimentos que o texto escrito proporciona. A leitura é, portanto, um ato; um meio de interrogação para o qual não tolera a amputação de nenhum de seus aspectos. Ler é, essencialmente, criar significados.
Se é por meio da leitura que temos acesso a maior parte dos conhecimentos acumulados pela humanidade, ampliamos nossa visão de mundo, desenvolvemos a compreensão, a comunicação e o senso crítico. Colocando-nos em contato com um mundo simbólico e abstrato, a palavra escrita torna possível a vivência de realidades diversas e a descoberta de pessoas e idéias. A leitura é, portanto, portas para vivermos plenamente nossa cidadania, transformando a nós mesmos e a realidade que nos cerca.

2. Leiturização: a desescolarização da leitura

Por que desescolarizar a leitura? Já discutimos anteriormente que ensinar a ler e escrever na escola é um desafio que transcende amplamente a alfabetização. As práticas escolares devem considerar a sociedade como um espaço de práticas de leitura e de escrita, o que implica dizer que, fundamentalmente, é a sociedade que determina para a escola quais os conteúdos e competências necessárias ao exercício da cidadania. É lá, para além dos muros da escola, que está o âmbito da prática do que se deve ensinar na escola, para que ela – a escola – tenha sentido. “O necessário é fazer da escola um âmbito onde a leitura e escrita sejam práticas vivas e vitais, onde ler e escrever sejam instrumentos poderosos que permitem repensar o mundo e reorganizar o próprio pensamento, onde interpretar e produzir textos sejam direitos que é legítimo exercer e responsabilidades que é necessário assumir.” (LERNER, 2002, p.18)
Escola e Sociedade estão indissoluvelmente vinculadas para a formação de sujeitos capazes de exercer cidadania a bem da justiça social. Imprescindível, portanto, repensar as instâncias educativas, até então, atribuídas apenas a escola.
César Coll (O Bairro-escola e sua base teórica) coloca que a obrigatoriedade do ensino básico tem levado, ao longo do século XX, a uma “crescente des-responsabilização social e comunitária dos temas educativos.”. A conseqüência é que a sociedade transfere para a escola a função de responder a todas as demandas sociais, desde a violência juvenil, o consumo de drogas, a gravidez na adolescência etc. É certo que a expressão “comunidade escolar” ainda se restringe somente aos atores intra-escola: professores, alunos, pais de alunos, gestores. O entorno, o bairro, o município não são considerados participantes de tal comunidade. Esta concepção, de certa forma, é de responsabilidade da própria escola que ainda não se “abriu” (não apenas as suas portas, mas, essencialmente, as suas concepções e práticas) para participações efetivas de aprendizagens no coletivo. A educadora mexicana Rosa Maria Torres propõe que a educação deixe de ser vista como “comunidade escolar”, para ser assumida como “comunidade de aprendizagem”, o que modifica substancialmente o paradigma atual, para a concepção de comunidade como um núcleo mais abrangente e co-responsável pelo processo educativo, hoje restrito a escola. Significa considerar a localidade como fonte de referenciais para planos educativos que tenham relação com as necessidades e potencialidades locais da escola. Isso garantiria uma identidade comunitária para a escola, não apenas como características específicas, mas como participante da construção, execução e avaliação do Projeto Político Pedagógico da Escola. Para tanto, há que se repensar quem educa quem, quem aprende com quem, a quem cabe ensinar, a quem cabe aprender, enfim, quem são os responsáveis por uma educação que se pretende social. Quais alianças são necessárias, quais os papéis devem ser representados por quais atores neste processo? Pensar a educação para além dos muros da escola requer um amplo processo de reflexão e de compartilhamento de responsabilidades.
Tais concepções, em relação ao ensino de leitura, vão encontrar sintonia tanto em Foucambert (1994), quanto em Lerner (2002) no sentido de que é necessário desescolarizar a leitura e a escrita, o que significa conceber que, tanto em relação às crianças quanto aos adultos, todas as instâncias educativas devem ter o cuidado de formar leitor sob o ângulo da técnica e do manuseio do livro e demais textos escritos. Os textos escritos, por exemplo, jornais, livros, revistas, enfim, em todos os gêneros[2] sob os quais se apresentam são ferramentas que funcionam com objetivos e características determinados e, para usá-los, é preciso uma certa iniciação ao seu funcionamento, ou suja, é necessário o ensino de estratégias[3] de leitura para serem utilizadas como ferramentas no exercício de cidadania. Como leitura é um ato que se pratica socialmente, em âmbitos educativos diversos, em diferentes contextos, é utopia imaginar que haja receitas padronizadas que se apliquem para todas as exigências de leitura e que somente a escola é determinante de tal processo.
Para Foucambert (1994), a idéia de desescolarização da leitura é a de formação permanente do leitor a ser assumida por todas as instâncias educativas, já que a leitura não é um processo que se conclui na escola. Para ele, “(...).Aprende-se a ler em qualquer idade e continua-se sempre aprendendo. A escola é um momento da formação do leitor. Mas se essa formação for abandonada mais tarde, ou seja, se as instâncias educativas não se dedicarem sempre a ela, teremos pessoas que, por motivos sociais e culturais, continuarão sendo leitores e progredirão em suas leitura, e outras que retrocederão e abandonarão qualquer processo de leitura. (p.17)"

É decorrente desta concepção que Foucambert propõe o conceito de desescolarização da leitura e o de Leiturização da sociedade. Retornando às suas pesquisas, cerca de 70% dos cidadãos são excluídos deste processo de leiturização por não encontrarem motivos para continuarem o processo. Isto porque “as sociedades industriais construíram seu desenvolvimento e prosperidade do trabalho, o taylorismo, o enquadramento do maior número de pessoas em tarefas de execução que não abrem espaço à iniciativa e à decisão” (1994, p.19). Daí, argumenta ele, o retorno ao analfabetismo. A leitura é, portanto, o produto de um status social que se constrói em determinadas condições sociais, o que significa dizer que a leitura, além de ser uma questão de técnica, é também de status, de estatuto de leitor. Modificar esta realidade é urgente, pois está em jogo não apenas condições favoráveis à sobrevivência nas sociedades modernas, mas também à construção da real democracia. A participação popular neste processo é determinante para a justiça social. Tais transformações operam-se legitimamente, não de forma solitária, mas no conjunto das relações sociais, tanto no sistema produtivo como na vida das coletividades, nos meios de informação, na participação política, no sistema educativo e na família. Ao considerar estas instâncias como educativas, o pesquisador francês considera que, quando a consciência dos problemas se impõe, as soluções se espelham como possibilidades concretas.


O que se propõe como reflexão é que muito fatores entram em jogo quando se discute leitura. As querelas escolares fomentadas por políticas públicas giram essencialmente em torno dos métodos sem considerar as questões sociais, políticas, econômicas, culturais das quais originam o leitor, um sujeito social, antes do contato com o texto. O aprendizado de leitura depende também da organização geral da escola e do seu entorno, da política coerente que a equipe pedagógica decide adotar para o ensino em seu conjunto; das articulações possíveis com parceiros; da consideração de público-alvo não apenas o corpo discente, mas também os que estão à margem do sistema educativo institucionalizado, enfim, das comunidades carentes de oportunidades de participação social. A pergunta que se coloca, então, é: a quem interessa a omissão de tais fatores? Por várias razões, a demanda social instaurada pelas relações de poder exige que as discussões sobre o ensino de leitura e de escrita avance de um saber rudimentar - para o qual comportamentos alfabéticos sãos satisfatórios – para estratégias mais complexas de usos da leitura e da escrita como emancipação de consciências.
Neste sentido, afirma Foucambert, “o problema totalmente novo, colocado para todos, é inventar as condições e abordagens de uma política de “leiturização” que responda às necessidades individuais e sociais de nosso tempo, da mesma maneira que a política de alfabetização satisfez as exigências dos últimos cem anos” (1994, p. 33).
Em vista da importância das idéias expostas, garantir acesso à leitura passa a ser uma tarefa de responsabilidade da sociedade como um todo. Para que isso aconteça, a leiturização social deve implicar um processo contínuo de formação de leitores, por meio de programas educativos que atuem em duas direções: desenvolver tanto habilidades de leitura de diversos gêneros textuais como também atitudes favoráveis à leitura enquanto veículo de aquisição de novos conhecimentos e de aprimoramento cultural.
É necessário um rigoroso mapeamento da situação atual, não apenas da escola, mas do contexto social em todas as suas vertentes: econômicas, políticas, culturais, na medida em que a escola não é uma ilha, nem o bairro, nem o município. Estamos todos interligados por relações globais, o que altera significativamente a forma de abordagem da educação no século XXI. O desafio é o de vincular a escola a este contexto sem, no entanto, perder a sua identidade, as suas características, o seu “território”. Começar por construir visibilidade deste panorama é a ação primordial para se repensar percursos de uma educação que, efetivamente, seja de todos, para todos.


*Mestre em Estudos Literários, Especialista em Língua Portuguesa, professora da rede pública estadual, professora de Ensino Superior. Trabalho parcial apresentado à UNICAMP, no Curso de Gestão Escolar, 2006.
[1]
Letramento, aqui, é entendido como produto da participação em práticas sociais que usam a escrita como sistema simbólico e tecnologia. São práticas discursivas que precisam da escrita para torná-las significativas, ainda que às vezes não envolvam as atividades específicas de ler ou escrever. Dessa concepção decorre o entendimento de que, nas sociedades urbanas modernas, não existe grau zero de letramento, pois nelas é impossível não participar, de alguma forma, de algumas dessas práticas. (PCNS, vol. 2. p. 23)
[2]
Os Gêneros são determinados historicamente. As intenções comunicativas, como parte das condições de produção dos discursos, geram usos sociais que determinam os gêneros que darão forma aos textos. O termo gênero é utilizado aqui como proposto por Bakhtin e Schneuwly. ( 2004)
[3]
Uma estratégia de leitura é um amplo esquema para obter, avaliar e utilizar informação. As estratégias são um recurso para construir significado enquanto se lê. Estratégias de seleção possibilitam ao leitor se ater apenas aos índices úteis, desprezando os irrelevantes; de antecipação permitem supor o que ainda está por vir; de inferência permitem captar o que não está dito explicitamente no texto e de verificação tornam possível o “controle” sobre a eficácia ou não das demais estratégias. O uso dessas estratégias durante a leitura não ocorre de forma deliberada – a menos que, intencionalmente, se pretenda faze-lo para análise do processo. (PCNS, p. 53)


Bibliografia:

BAJARD, Élie. Caminhos da escrita: espaços de aprendizagem. São Paulo: Cortez, 2002. p.195.

BRASIL, Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares nacionais: língua portuguesa. Brasília: 144p.

FOUCAMBERT, Jean. A leitura em questão. Porto Alegre: Artes Médicas, 1994. 157p.

GANDOLFI, Giselda. Compreensão leitora: a compreensão como conteúdo de ensino. Projeto Ler e Viver. São Paulo: Moderna, 2005.

______Compreensão leitora: o desenvolvimento da compreensão leitora. São Paulo: Moderna, 2005.

_______Compreensão leitora: A compreensão das narrativas literárias. São Paulo: Moderna, 2005.

LERNER, Délia. Ler e Escrever na escola: o real, o possível e o necessário. Porto Alegre: Artmed. 2002, 120p.

NASPOLINI, Ana Tereza. Didática de Português: leitura e produção escrita. São Paulo: FTD, 1996, 195p.

RIBEIRO, V.M. A promoção do alfabetismo em programas de educação de jovens e adultos. In: Educação em debate. Ano 3, n 2. Mauá: Secretaria de educação de Mauá. Junho de 2002, p 45-54.

SÃO PAULO, Secretaria de Estado da Educação; CENPEC. Ensinar e Aprender: construindo uma proposta. Impulso Inicial, vol.1, vol. 2, vol. 3. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado. [2004?]

SÃO PAULO, PMSP; CENPEC; WOLKSWAGEN, Fundação. Projeto Entre na Roda. CENPEC, 2004.

SOLÉ, Isabel. Estratégias de Leitura.. 6 ed. Porto Alegre: Artes Médicas, 1998, 194p



UM PONTO DE VISTA É APENAS A VISTA DE UM PONTO

Leonardo Boff, ao introduzir seu livro1, coloca-nos uma questão tão fundamental quanto existencial na relação do homem com o mundo: para entender como alguém lê e, portanto, constrói sua visão, é necessário saber como são os seus olhos, pois a cabeça pensa a partir de onde os pés pisam, a partir do mundo em que habita.
Estrelinho
2, destituído de visão física, encontra em Gigito a luz para os seus olhos. O cego queria saber tudo. O guia desfolhava-lhe o universo de tal forma que o fez habitar um mundo para o qual o sempre era pouco e o tudo insuficiente. Gigito desenha a Estrelinho uma realidade de fantasias e rendilhados, fértil em detalhes e maravilhas: descrevia o que não havia. Por ausência dos olhos, significativamente para a cultura popular como a porta da alma e do mundo, Estrelinho se enchia da ideação de Gigito. Na “escureza” da visão, tão fácil lhe era “ver” pela audição e sentidos táteis – como o dar a mão - que isto passou-lhe a ser o sentido de sua existência. O mundo sem Gigito não existia. Passou a habitar nele de tal forma que era impossível imaginar a vida sem os caminhos que o guia lhe mostrava.
Porém, o erro da pessoa é pensar que os silêncios são todos iguais, que as cegueiras são todas iguais. É Estrelinho quem dá a lição maior ao referir-se ao seu silêncio, à sua escuridão: cada um é cada um, desbotado à sua maneira neste nada apagado que estes meus olhos tocam. Embora o cenário pintado por Gigito, Estelinho movimentava-se nele à sua maneira, orientado pelos seus sentidos;
Tanto que, na ausência da luz primeira, quando Gigito é convocado para a guerra, uma segunda se fez. Não tão encantadora como só uma alma em estado de céu pode imaginar. Mas outros caminhos se desenharam..Gigito via o que não havia, lembremos deste detalhe. E porque Estrelinho não via, poderia haver. Ambos habitam mundos diferentes e no compartilhamento de saberes, em liberdade plena, poderiam fertilizar a imaginação e construir existências. Para Estrelinho, o conhecimento valia a pena, porque era pra ser sonhado, não vivido. Faltava a Estrelinho o contraponto, a perda, a ausência, o esforço, a autonomia.
Quando Infelizmina entra em cena, ele experimenta um “desmoronamento” do já construído. Aprende que se na escureza pode-se ver a luz, na luz, pode-se perder o brilho das estrelas. É como perder a visão, embora vendo. Cada ponto de vista é apenas a vista de um ponto. E o cego fez-se guia para a que olhava, porém não via, tal era o desencanto da irmã de Gigito encarregada de continuar-lhe a tarefa de desenhar mundos. Espantosamente, Estrelinho experimenta os conflitos da transitoriedade da aprendizagem. Reinventar um outro mundo, a partir dos olhos de Infelizmina. Um mundo mais humano, talvez. A personagem lhe dá a chave da autonomia. Não poderia fazer mais por ele a não ser mostrar-lhe que a vida tem desencantos. E pela primeira vez, Estrelinho sente que pode compartilhar. E experimenta outro aprendizado: o amor.
Para compreender como alguém vê, é essencial conhecer o lugar social de quem olha; que experiências tem, que desejos alimenta, que esperanças o habitam, como assume os dramas existenciais, como a vida e a morte; como concebe a liberdade e a atitude; como se coloca no seu espaço, que contribuições dá à vida e de que forma as recebe no compartilhamento com o outro, que interesses o movem, em que direção? Enfim, quais significados de mundo constrói, a partir de quais referenciais?
Imaginemos que nesta metáfora do cego e do guia, Estrelinho represente a criança que inicia sua trajetória na descoberta do mundo. Destituída das experiências necessárias para orientar a sua própria vida, de acordo com o ponto de vista de Russel
3, é presa dos interesses – sinistros (ou não), que prevalecem face à sua inocência. Neste sentido, ela vê o que lhe desenham.
Imaginemos ainda que, a criança sujeita à educação dos sentidos, dependa de alguém ou de instituições que, supostamente, tenham olhos capazes de orientar-lhe a visão e teremos nesta imagem o significado essencial da educação.
No entanto, a educação, também sujeita à consideração dos muitos pontos de vista: o do Estado, o da Igreja, o dos professores, o dos pais, ou mesmo – e essencialmente, embora esquecido – o das crianças, termina por perder de vista o seu foco de ação, tão conflitantes são os interesses que cada uma defende. Russel (2006, p.19) sintetiza:

Para que a autoridade governe o ensino, deve repousar num ou em vários poderes que consideramos: O Estado, a Igreja, o mestre-escola ou o pai. Já vimos que a nenhum deles se pode confiar o cuidado pelo bem-estar da criança, porque cada qual deseja encaminha-la a um objetivo que nada tem a ver com o seu bem-estar.”

Privar a criança da realidade que a cerca a fim de poupá-la de dissabores não educa para a vida. O mundo maravilhoso que Gigito apresenta a Estrelinho, não o impede de ir para a guerra e lá perder a vida. Assim como a Infelizmina não consegue apresentar a Estrelinho a continuidade do mundo encantado de Gigito pela razão natural de que o lugar social e cultural dela é diferente do irmão. Ou seja, as circunstâncias da vida obedecem a regras que fogem ao controle humano, porém, fazem parte das contradições naturais da vida.
A educação e o espaço escolar, para que justifiquem suas finalidades devem considerar as diferentes necessidades e contextos sócio-histórico-culturais das crianças e adolescentes, a fim de que os interesses institucionais (incluindo a família) não apresentem às crianças o mundo como um mosaico confuso para o qual o melhor seria não vê-lo, gerando a “cegueira” da dependência, o que compromete a autonomia de decisão e escolha tão necessárias na sociedade contemporânea para a preservação da vida e do bem-estar social.
Ao considerar o ponto de vista da criança, as instituições devem exercer a autoridade que lhes é conferida, porém, não de forma autoritária como única verdade possível. A autoridade deve ser exercida de forma a apresentar-se e “esconder-se” ao mesmo tempo para que os impulsos e desejos naturais das crianças e jovens possam ser utilizados na educação, fazendo valer a proposta de uma escola democrática. O exercício da liberdade deve ser objeto da educação, sobretudo na atualidade, em que as demandas sociais exigem pessoas comprometidas com a construção de uma sociedade mais justa e igualitária e, portanto, prontas para saber decidir, saber aprender, saber ser. Estas são competências essenciais para autonomia, promovendo auto descobertas, tanto como pessoas cujos potenciais, muitas vezes subjazem às crenças , às culturas dogmáticas, e. portanto pressões autoritárias das quais necessitam libertar-se, quanto como cidadãos em condições de contribuírem para a construção coletiva de uma sociedade solidária.
Ponderar sobre os limites da liberdade, no processo educacional é tarefa bastante complexa. Acolher os interesses das crianças, não pode significar espontaneísmo a título de democracia. Conduzir a alma humana por mundos inabitáveis, como o faz Gigito a Estrelinho é caminho perigoso por excesso de manipulação de “verdades” pessoais e produção de realidades virtuais. O investimento educacional deve ser no sentido de ensinar a ver para que cada uma seja capaz de caminhar conforme as próprias luzes. Estrelinho tinha no próprio nome o simbolismo da luz, que embora pequena, era a sua luz. No compartilhamento com Gigito aprendeu que embora cego, tinha decisão de passo e estrada, e por isso, foi possível mostrar a Infelizmina o caminho.
Educar para a liberdade pressupõe a compreensão do significado da aprendizagem do humano que envolve a liberdade de aprender ou não aprender. Escolher o que aprender e a liberdade de opinar. Liberdades que se conquistam por aprendizagem gradativamente por uma concepção de educação libertadora e não castradora como historicamente a escola se constituiu: um espaço de silêncio.
Temos muito a aprender com a metáfora de Estrelinho e Infelizmina. Temos muito a refletir sobre a transitoriedade de Gigito ao ver o mundo com olhos que esperança deseja. Esperança, luz, amor, decisão de passo e estrada, ou seja, conhecer para onde se vai, podem, de fato, humanizar homens, leis, justiça e sociedade.



BOFF, Leonardo. A águia e a galinha. Rio de Janeiro: Vozes, 1998.
RUSSEL, Bertrand. Liberdade e autoridade no ensino. In: Estudo, Pensamento e Criação. Livro I. Campinas: UNICAMP. 2006. p. 19.
1 BOFF, Leonardo. A águia e a galinha. Rio d Janeiro: Vozes, 1988.
2 COUTO, Mia. O cego Estrelinho. In: Material de apoio. Escola Gesta e Cultura. Campinas: UNICAMP. 2006.
3 RUSSEL, Bertrand. Liberdade e autoridade no ensino.In: Estudo, Pensamento e Criação. Livro I. Campinas: UNICAMP. 2006. p. 19.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
COUTO, Mia. O cego Estrelinho. In: Material de apoio. Escola Gesta e Cultura. Campinas: UNICAMP. 2006.