sábado, 7 de julho de 2007

A LEITURA EM QUESTÃO: FOUCAMBERT PELA LEITURIZAÇÃO SOCIAL


Célia Firmino
Mestre em Estudos Literários – UFMS/CEUL

Resumo

O artigo propõe refletir sobre o lugar e da leitura para além dos limites intra-escolares, envolvendo o entorno da escola, constituindo-se, não só um benefício quanto uma necessidade emergencial de propiciar a convivência em ambiente letrado. Ensinar alunos a ler os mais diferentes gêneros textuais, assim como viabilizar a continuidade deste ambiente na comunidade extra-escolar pode garantir o seu sucesso ao longo de toda sua trajetória no contexto social que ora se apresenta, exigindo cada vez mais dos cidadãos participação ativa e decisória na história social, política, econômica e cultural na qual estão inseridos.

Palavras-chave: leiturização – leitura – sociedade – escola – comunidade.


1. Por que incentivar a leitura?

Há um discurso recorrente de que o brasileiro ainda lê muito pouco. Em 1991, metade da população era praticamente analfabeta. Muitos dos que sabiam assinar o nome, não eram capazes de ler e compreender uma mensagem escrita – eram chamados de analfabetos funcionais. Para o pesquisador Jean Foucambert, “Analfabetismo é o desconhecimento das técnicas de utilização da escrita; iletrismo é a falta de familiaridade com o mundo da escrita, uma exclusão em relação ao todo ou a parte desse modo de comunicação”. (1994, p. 18). Assim, podemos considerar que todos nós, em algum campo do conhecimento, somos iletrados, porém todos somos de alguma forma letrados em outras áreas na medida em que aprendemos a dominar as técnicas de usos sociais da escrita.
No entanto, há que se considerar que o conceito de alfabetização, historicamente, vem sofrendo alterações determinadas por revoluções sociais tecnológicas. Para o referido pesquisador, na primeira metade do século XX, com o advento da revolução industrial iniciada no fim do século XIX, o conceito de analfabetismo era o resultado de ausência de escolarização. Atualmente, este conceito aparece como conseqüência do iletrismo (FOUCAMBERT, 1994, p 18), em contraponto ao conceito de letramento[1]. Este fenômeno reside nos mecanismos de uma sociedade que excluem do processo de decisão e poder cerca de 50 e 70% dos “cidadãos”. O pesquisador reflete que,

uma sociedade hierarquizada com base em classes sociais, a distribuição desigual das técnicas de acesso aos bens simbólicos reforça e realimenta as características excludentes dessa sociedade. Poucos são letrados (e não se busca saber o que os torna letrados), enquanto muito são apenas alfabetizados (e indaga-se por que, alfabetizados não se tornam letrados). Mas tanto os alfabetizados quanto os analfabetos são frutos do mesmo processo de exclusão, do iletrismo – que, por sua vez, resulta da exclusão de ambos das condições que lhes permitiriam participar das redes de circulação de impressos. Para aqueles que socialmente vivem essas condições de exclusão, o destino é a alfabetização ou mesmo o analfabetismo – num caso ou noutro, a não-leitura. (1994, p.vii)

Considerando-se a concepção marxista de sociedade e a relação com a escrita, observa-se que a escola, tradicionalmente, contrapõe ensinar a escrever com ensinar a ler, o que gera uma sociedade excludente dos poderes que a escrita e a leitura conferem aos que as dominam. Significa dizer que a escola alfabetiza, mas não produz leitores capazes de, socialmente, exercer competências de leitura e escrita que os contextos sociais exigem. Tal fenômeno impõe a escola repensar suas funções e reconceitualização de texto e leitor, adequando-os às demandas sociais, ou seja, o ensino de leitura e escrita como práticas sociais.
Para se ter noção do problema ora exposto, em 1997, finalizou-se na cidade de São Paulo, um estudo para definir, a partir de dados concretos, o que é analfabetismo funcional num contexto urbano da América Latina (RIBEIRO, 2002, p 45-54). O estudo foi feito com uma amostra representativa da população paulistana de 15 a 54 anos, mostrou que 7,4% são analfabetos absolutos; 25,5% são analfabetos funcionais, pois fazem pouco uso da leitura e da escrita em sua vida diária, demonstrando ter uma compreensão mínima de um texto escrito; 35,5% apresentaram apenas uma compreensão básica da leitura e somente 33,5% atingem níveis mais elevados dessa habilidade e fazem um uso mais intenso e diversificado da linguagem escrita, por exemplo, lendo jornais periodicamente ou utilizando meios escritos para obter novos conhecimentos ou planejar atividades complexas.
Pesquisas na França (FOUCAMBERT, 1994, p. 19) revelam que hoje, cerca de 15% dos cidadãos, escolarizados e que falam a língua francesa, são incapazes de achar significado num texto simples, relacionado à sua vida diária. Nos Estados Unidos, a proporção é de 20% e alguns levantamentos constatam que o número de analfabetos vem aumentando anualmente em algo próximo a um milhão e quinhentos mil. Tais dados apontam para um contexto mundial e não apenas relacionados à América Latina, o que acentua o processo de exclusão social da marginalização de cidadãos, na medida em que apenas uma minoria exerce os poderes que a escrita confere. Reportando-nos ao pesquisador francês,
a noção de poder está ligada à própria natureza da comunicação escrita na sua exigência de distanciamento e de teorização: o poder sobre si mesmo; o poder de se conhecer, de se compreender e de situar-se; o poder sobre sua maneira de aprender, sobre a gestão de seu tempo e de seu espaço; o poder de participar da vida, das decisões, dos projetos de diferentes grupos; o poder sobre o ambienta físico e social para compreende-lo, transformando-o e agindo sobre ele através de produções. (FOUCAMBERT, 1994. p. 34)

Considerando o quadro exposto, defrontamo-nos com uma emergência social, antes atribuída apenas à escola. O saber-decifrar não é suficiente ao nível de letramento imposto pela sociedade contemporânea. O saber-ler não pode ser confundido com o saber-decifrar. À escola e à sociedade impõem-se a urgência de uma reconceitualização do status de leitor para atender ao desafio de incorporar todos os alunos e cidadãos à cultura do escrito. “Para formar todos os alunos como praticantes da cultura escrita, é necessário reconceitualizar o objeto de ensino e construí-lo tomando como referência fundamental as práticas sociais de leitura e escrita. Por em cena uma versão escolar dessas práticas que mantenha certa fidelidade à versão social (não-escolar), requer que a escola funcione como uma microcomunidade de leitores e escritores.” (LERNER, 2002, p. 17)
Tal reconceitualização implica fundamentalmente em uma reflexão, não apenas sobre os textos que devem circular na escola, mas, sobretudo o que significa a leitura. Ler não significa apenas passar por algo escrito, ou fazer a versão oral do escrito. Ler significa muito mais do que decodificar. Ler significa ser questionado pelo mundo e por si mesmo, significa buscar respostas que podem ser encontradas na escrita, mas que para isso, é preciso ter acesso a essa escrita; significa um processo de interação entre texto e leitor. Ler significa construir uma resposta que integra conhecimentos prévios a novos conhecimentos que o texto escrito proporciona. A leitura é, portanto, um ato; um meio de interrogação para o qual não tolera a amputação de nenhum de seus aspectos. Ler é, essencialmente, construir, tecer significados.
Se é por meio da leitura que temos acesso a maior parte dos conhecimentos acumulados pela humanidade, ampliamos nossa visão de mundo, desenvolvemos a compreensão, a comunicação e o senso crítico. Colocando-nos em contato com um mundo simbólico e abstrato, a palavra escrita torna possível a vivência de realidades diversas e a descoberta de pessoas e idéias. A leitura é, portanto, meio para vivermos plenamente nossa cidadania, transformando a nós mesmos e a realidade que nos cerca.

2. Leiturização: a desescolarização da leitura

Por que desescolarizar a leitura? Já discutimos anteriormente que ensinar a ler e escrever na escola é um desafio que transcende amplamente a alfabetização. As práticas escolares devem considerar a sociedade como um espaço de práticas de leitura e de escrita, o que implica dizer que, fundamentalmente, é a sociedade que determina para a escola quais os conteúdos e competências necessários ao exercício da cidadania. É lá, para além dos muros da escola, que está o âmbito da prática do que se deve ensinar na escola, para que ela – a escola – tenha sentido. “O necessário é fazer da escola um âmbito onde a leitura e escrita sejam práticas vivas e vitais, onde ler e escrever sejam instrumentos poderosos que permitem repensar o mundo e reorganizar o próprio pensamento, onde interpretar e produzir textos sejam direitos que é legítimo exercer e responsabilidades que é necessário assumir.” (LERNER, 2002, p.18)
Escola e Sociedade estão indissoluvelmente vinculadas para a formação de sujeitos capazes de exercer cidadania a bem da justiça social. Imprescindível, portanto, repensar as instâncias educativas, até então, atribuídas apenas a escola.
César Coll (2005, p.) coloca que a obrigatoriedade do ensino básico tem levado, ao longo do século XX, a uma “crescente des-responsabilização social e comunitária dos temas educativos.”. A conseqüência é que a sociedade transfere para a escola a função de responder a todas as demandas sociais, desde a violência juvenil, o consumo de drogas, a gravidez na adolescência etc. É certo que a expressão “comunidade escolar” ainda se restringe somente aos atores intra-escola: professores, alunos, pais de alunos, gestores. O entorno, o bairro, o município não são considerados participantes de tal comunidade. Esta concepção, de certa forma, é de responsabilidade da própria escola que ainda não se “abriu” (não apenas as suas portas, mas, essencialmente, as suas concepções e práticas) para participações efetivas de aprendizagens no coletivo. A educadora mexicana Rosa Maria Torres propõe que a educação deixe de ser vista como “comunidade escolar”, para ser assumida como “comunidade de aprendizagem”, o que modifica substancialmente o paradigma atual, para a concepção de comunidade como um núcleo mais abrangente e co-responsável pelo processo educativo, hoje restrito a escola. Significa considerar a localidade como fonte de referenciais para planos educativos que tenham relação com as necessidades e potencialidades locais da escola. Isso garantiria uma identidade comunitária para a escola, não apenas como características específicas, mas como participante da construção, execução e avaliação do Projeto Político Pedagógico da Escola. Para tanto, há que se repensar quem educa quem, quem aprende com quem, a quem cabe ensinar, a quem cabe aprender, enfim, quem são os responsáveis por uma educação que se pretende social. Quais alianças são necessárias, quais os papéis devem ser representados por quais atores neste processo? Pensar a educação para além dos muros da escola requer um amplo processo de reflexão e de compartilhamento de responsabilidades.
Tais concepções, em relação ao ensino de leitura, vão encontrar sintonia tanto em Foucambert (1994), quanto em Lerner (2002) no sentido de que é necessário desescolarizar a leitura e a escrita, o que significa conceber que, tanto em relação às crianças quanto aos adultos, todas as instâncias educativas devem ter o cuidado de formar leitor sob o ângulo da técnica e do manuseio do livro e demais textos escritos. Os textos escritos, por exemplo, jornais, livros, revistas, enfim, em todos os gêneros[2] sob os quais se apresentam são ferramentas que funcionam com objetivos e características determinados e, para usá-los, é preciso uma certa iniciação ao seu funcionamento, ou seja, é necessário o ensino de estratégias[3] de leitura para serem utilizadas como ferramentas no exercício de cidadania. Como leitura é um ato que se pratica socialmente, em âmbitos educativos diversos, em diferentes contextos, é utopia imaginar que haja receitas padronizadas que se apliquem para todas as exigências de leitura e que somente a escola é determinante de tal processo.
Para Foucambert (1994), a idéia de desescolarização da leitura é a de formação permanente do leitor a ser assumida por todas as instâncias educativas, já que a leitura não é um processo que se conclui na escola. Para ele,

(...).Aprende-se a ler em qualquer idade e continua-se sempre aprendendo. A escola é um momento da formação do leitor. Mas se essa formação for abandonada mais tarde, ou seja, se as instâncias educativas não se dedicarem sempre a ela, teremos pessoas que, por motivos sociais e culturais, continuarão sendo leitores e progredirão em suas leitura, e outras que retrocederão e abandonarão qualquer processo de leitura. (p.17)

É decorrente desta concepção que Foucambert propõe o conceito de desescolarização da leitura e o de Leiturização da sociedade. Retornando às suas pesquisas, cerca de 70% dos cidadãos são excluídos deste processo de leiturização por não encontrarem motivos para continuarem o processo. Isto porque “as sociedades industriais construíram seu desenvolvimento e prosperidade do trabalho, o taylorismo, o enquadramento do maior número de pessoas em tarefas de execução que não abrem espaço à iniciativa e à decisão” (1994, p.19). Daí, argumenta ele, o retorno ao analfabetismo. A leitura é, portanto, o produto de um status social que se constrói em determinadas condições sociais, o que significa dizer que a leitura, além de ser uma questão de técnica, é também de status, de estatuto de leitor. Modificar esta realidade é urgente, pois está em jogo não apenas condições favoráveis à sobrevivência nas sociedades modernas, mas também à construção da real democracia. A participação popular neste processo é determinante para a justiça social. Tais transformações operam-se legitimamente, não de forma solitária, mas no conjunto das relações sociais, tanto no sistema produtivo como na vida das coletividades, nos meios de informação, na participação política, no sistema educativo e na família. Ao considerar estas instâncias como educativas, o pesquisador francês considera que, quando a consciência dos problemas se impõe, as soluções se espelham como possibilidades concretas.
O que se propõe como reflexão é que muito fatores entram em jogo quando se discute leitura. As querelas escolares fomentadas por políticas públicas giram essencialmente em torno dos métodos sem considerar as questões sociais, políticas, econômicas, culturais das quais originam o leitor, um sujeito social, antes do contato com o texto escrito. O aprendizado de leitura depende também da organização geral da escola e do seu entorno, da política coerente que a equipe pedagógica decide adotar para o ensino em seu conjunto; das articulações possíveis com parceiros; da consideração de público-alvo não apenas o corpo discente, mas também os que estão à margem do sistema educativo institucionalizado, enfim, das comunidades carentes de oportunidades de participação social.
A pergunta que se coloca, então, é: a quem interessa a omissão de tais fatores? Por várias razões, a demanda social instaurada pelas relações de poder exige que as discussões sobre o ensino de leitura e de escrita avancem de um saber rudimentar - para o qual comportamentos alfabéticos sãos satisfatórios – para estratégias mais complexas de usos da leitura e da escrita como emancipação de consciências.
Neste sentido, afirma Foucambert, “o problema totalmente novo, colocado para todos, é inventar as condições e abordagens de uma política de “leiturização” que responda às necessidades individuais e sociais de nosso tempo, da mesma maneira que a política de alfabetização satisfez as exigências dos últimos cem anos” (1994, p. 33).
Em vista da importância das idéias expostas, garantir acesso à leitura passa a ser uma tarefa de responsabilidade da sociedade como um todo. Para que isso aconteça, a leiturização social deve implicar um processo contínuo de formação de leitores, por meio de programas educativos que atuem em duas direções: desenvolver tanto habilidades de leitura de diversos gêneros textuais como também atitudes favoráveis à leitura enquanto veículo de aquisição de novos conhecimentos e de aprimoramento cultural.
É necessário um rigoroso mapeamento da situação atual, não apenas da escola, mas do contexto social em todas as suas vertentes: econômicas, políticas, culturais, na medida em que a escola não é uma ilha, nem o bairro, nem o município. Estamos todos interligados por relações globais, o que altera significativamente a forma de abordagem da educação no século XXI. O desafio é o de vincular a escola a este contexto sem, no entanto, perder a sua identidade, as suas características, o seu “território”. Começar por construir visibilidade deste panorama é a ação primordial para se repensar percursos de uma educação que, efetivamente, seja de todos, para todos.


Referências Bibliográficas:

BAJARD, Élie. Caminhos da escrita: espaços de aprendizagem. São Paulo: Cortez, 2002. p.195.

BRASIL, Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares nacionais: língua portuguesa. Brasília: 144p.

MEDEIROS FLHO, Barnabé; GALIANO, Mônica Beatriz. Bairro-escola: uma nova geografia do aprendizado. A tecnologia da Cidade Escola Aprendiz para integrar escola e comunidade. São Paulo: Tempo D´Imagem, 2005.

FOUCAMBERT, Jean. A leitura em questão. Porto Alegre: Artes Médicas, 1994. 157p.

GANDOLFI, Giselda. Compreensão leitora: a compreensão como conteúdo de ensino. Projeto Ler e Viver. São Paulo: Moderna, 2005.

______Compreensão leitora: o desenvolvimento da compreensão leitora. São Paulo: Moderna, 2005.

_______Compreensão leitora: A compreensão das narrativas literárias. São Paulo: Moderna, 2005.

LERNER, Délia. Ler e Escrever na escola: o real, o possível e o necessário. Porto Alegre: Artmed. 2002, 120p.

NASPOLINI, Ana Tereza. Didática de Português: leitura e produção escrita. São Paulo: FTD, 1996, 195p.

RIBEIRO, V.M. A promoção do alfabetismo em programas de educação de jovens e adultos. In: Educação em debate. Ano 3, n 2. Mauá: Secretaria de educação de Mauá. Junho de 2002, p 45-54.

SOLÉ, Isabel. Estratégias de Leitura.. 6 ed. Porto Alegre: Artes Médicas, 1998, 194p

NOTAS:
1. Letramento, aqui, é entendido como produto da participação em práticas sociais que usam a escrita como sistema simbólico e tecnologia. São práticas discursivas que precisam da escrita para torná-las significativas, ainda que às vezes não envolvam as atividades específicas de ler ou escrever. Dessa concepção decorre o entendimento de que, nas sociedades urbanas modernas, não existe grau zero de letramento, pois nelas é impossível não participar, de alguma forma, de algumas dessas práticas. (PCNS, vol. 2. p. 23)

2. Os Gêneros são determinados historicamente. As intenções comunicativas, como parte das condições de produção dos discursos, geram usos sociais que determinam os gêneros que darão forma aos textos. O termo gênero é utilizado aqui como proposto por Bakhtin e Schneuwly.
( 2004);

3. Uma estratégia de leitura é um amplo esquema para obter, avaliar e utilizar informação. As estratégias são recursos para construir significados enquanto se lê. Estratégias de seleção possibilitam ao leitor se ater apenas aos índices úteis, desprezando os irrelevantes; de antecipação permitem supor o que ainda está por vir; de inferência permitem captar o que não está dito explicitamente no texto e de verificação tornam possível o “controle” sobre a eficácia ou não das demais estratégias. O uso dessas estratégias durante a leitura não ocorre de forma deliberada – a menos que, intencionalmente, se pretenda faze-lo para análise do processo. (PCNS, p. 53)


DADOS SOBRE A AUTORA:

Mestre em Estudos Literários (UFMS); Especialista em Língua Portuguesa (UFMS); Especialista em Gestão Escolar (UNICAMP); Professora da Rede Pública do Estado de São Paulo; Assistente Técnico Pedagógico de Português, atuando com formação de professores; Professora de Ensino Superior.

ÁREAS DE INTERESSE:

Educação – Letras

E-mail: celia_ada@terra.com.br

Blogs:

1. http://leiturizarte.blogspot.com/
2. http://firblogleitura.blogspot.com/


[1] Letramento, aqui, é entendido como produto da participação em práticas sociais que usam a escrita como sistema simbólico e tecnologia. São práticas discursivas que precisam da escrita para torná-las significativas, ainda que às vezes não envolvam as atividades específicas de ler ou escrever. Dessa concepção decorre o entendimento de que, nas sociedades urbanas modernas, não existe grau zero de letramento, pois nelas é impossível não participar, de alguma forma, de algumas dessas práticas. (PCNS, vol. 2. p. 23)
[2] Os Gêneros são determinados historicamente. As intenções comunicativas, como parte das condições de produção dos discursos, geram usos sociais que determinam os gêneros que darão forma aos textos. O termo gênero é utilizado aqui como proposto por Bakhtin e Schneuwly. ( 2004)
[3] Uma estratégia de leitura é um amplo esquema para obter, avaliar e utilizar informação. As estratégias são um recurso para construir significado enquanto se lê. Estratégias de seleção possibilitam ao leitor se ater apenas aos índices úteis, desprezando os irrelevantes; de antecipação permitem supor o que ainda está por vir; de inferência permitem captar o que não está dito explicitamente no texto e de verificação tornam possível o “controle” sobre a eficácia ou não das demais estratégias. O uso dessas estratégias durante a leitura não ocorre de forma deliberada – a menos que, intencionalmente, se pretenda faze-lo para análise do processo. (PCNS, p. 53)

domingo, 20 de maio de 2007

LIBERTAR: A PARÁBOLA DA CORDA [1]



Se estar certo é teu objetivo,
acharás erros no mundo,
e procurarás corrigi-los.
Mas não esperes por paz de espírito.

Se paz de espírito é teu objetivo
procura pelos erros em tuas crenças e expectativas.
procura mudá-los, não mudar o mundo.
E estejas sempre pronto para estar errado.

Uma mente apegada a suas crenças é como um homem agarrado a uma corda.
Ele se agarra à corda para preservar sua vida, pois sabe que, se soltá-la, cairá para a morte. Seus pais, seus professores e muitos outros lhe disseram que assim é; e, quando olha em volta, ele vê que todos fazem o mesmo.
Nada o induziria a soltar a corda.
E o sábio se aproxima. Ele sabe que é inútil agarrar-se à corda, sabe que a segurança oferecida é ilusória e apenas nos mantém onde estamos. Assim, procura um modo de dissipar as ilusões daquele homem e ajudá-lo a libertar-se.
Fala da segurança real, da alegria mais profunda, da verdadeira felicidade, da paz de espírito. Diz-lhe que ele pode provar tudo isso; basta soltar um dedo da corda.
“Um dedo”, pensa o homem. “Um dedo não é muito para arriscar por um gostinho do êxtase”. E concorda em fazer sua primeira iniciação.
E sente o gosto de maior alegria, felicidade e paz de espírito.
Mas não o suficiente para lhe trazer realização duradoura.
“Podes ter ainda maior alegria, felicidade e paz”, diz o sábio, “basta soltares um segundo dedo.”
“Isso”, pensa o homem, “já vai ser mais difícil. Será que eu consigo? Será que é seguro? Será que eu tenho coragem? “ Hesita, flexiona o dedo, sente como seria se soltasse a corda um pouco mais...e se arrisca.
Está aliviado por descobrir que não caiu para a morte; pelo contrário, descobre maior felicidade e paz interior.
Seria possível ter ainda mais?
“Acredita em mim”, diz o sábio. “Não deu certo até agora? Conheço os teus medos, sei o que tua mente está a te dizer – que isso é uma loucura, que vai contra tudo o que aprendeste – mas, por favor, confia em mim. Olha pra mim, não sou livre? Prometo que estarás a salvo e conhecerás ainda maior felicidade e contentamento.”
“Será que realmente quero tanto a felicidade e a paz interior”, pergunta-se o homem, “para arriscar tudo o que tanto amo? Em princípio, sim; mas como posso ter certeza de que estarei a salvo, de que não cairei?” Com uma pequena prece, ele começa a olhar para seus medos, a considerar a fonte de seus medos e a explorar aquilo que realmente quer.
Vagarosamente, sente que seus dedos perdem a tensão e relaxam. Ele sabe que pode fazê-lo. E sabe que precisa fazê-lo. É apenas uma questão de tempo até soltar a corda.
E, quando a solta, uma sensação de paz ainda maior flui através dele.
Ele pende agora por um único dedo. A razão lhe diz que já deveria ter caído há um ou dois dedos atrás, mas ele não caiu. “Há algo errado em agarrar-se?” , ele se pergunta. “Eu estive errado o tempo todo?”
“Esse último dedo depende apenas de ti mesmo”, diz o sábio. “Não posso te ajudar mais. Mas lembra, teus medos não têm razão de ser.”
Confiando em sua calma voz interior, ele aos poucos solta o último dedo.
E nada acontece.
Ele fica exatamente onde estava.
E então percebe por quê. Ele estava com os pés no chão o tempo todo.
E, ao olhar para o chão, sabendo que nunca mais precisará agarrar-se à corda, ele encontra a verdadeira paz de espírito.


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Milenarmente, o homem lançado ao mundo tem sido uma sucessão de experiências, cujo objetivo maior é a autolibertação. Não no sentido físico, espacial, geográfico. O grande desafio é a consciência desperta, um estado de espírito autônomo que garanta a liberdade de ir e vir no fluxo da paz interior, livres dos medos, das algemas que nos impedem de ser.
Se a viagem geográfica é possível a quem possa garanti-la materialmente, o trânsito consciencial não é conquista que valha valor pecuniário. A livre consciência é resultado de muitas conquistas no âmbito do espírito e está diretamente subordinada aos valores e crenças individuais que nos orientam no percurso existencial.
Temos tanto medo dos nossos medos que preferimos transformá-los em única realidade possível, travestidos de verdades, que qualquer possibilidade de julgamento nos faz defensores do nosso direito de pensar e agir, negando-nos, talvez, a única possibilidade de vislumbrar uma luz na escuridão. Acionamos potencialmente nossos mecanismos de defesas, agarrando-nos as nossas cordas de tal forma que preferimos digladiar contra o mundo que nos contesta a admitir que possamos estar errados.
Imaginamos que sob os nossos pés haja um abismo impedindo-nos de soltarmo-nos da corda. Tão frágeis são as nossas crenças quanto é impossível sermos felizes verdadeiramente com elas.
O medo de sermos rejeitados, de não sermos compreendidos, de que o outro saiba o que sentimos ou pensamos; o medo de não sermos aceitos como somos; o medo de que o outro nos abandone; o medo de que percamos o espaço caso não façamos o que esperam de nós; as fantasias que criamos para camuflar o nosso verdadeiro “eu”; enfim, as alegorias que representam nossas vidas nada mais são do que cordas nas quais nos agarramos para viver. E há os que só sobrevivem porque criam ancoradouros para suas existências.
Privamo-nos da única liberdade possível: a que resulta de uma consciência tranqüila, de uma conquista interior, de uma compreensão mais espiritualizada da vida.
É comum colocarmos as possibilidades de felicidade em coisas e pessoas; do tipo: só serei feliz se conquistar uma vida confortável, sem privações; só serei feliz se estiver com quem amo etc. Depositamos algo tão valioso – a felicidade – na dependência de situações tão frágeis, pois que as coisas passam e as pessoas são falíveis. Pior ainda, atribuímos a culpa da nossa infelicidade a coisas e pessoas e nunca às nossas fraquezas e distorções da realidade: atribuirmos a alguém ou alguma coisa a tremenda responsabilidade de nos fazer felizes. Agimos com a vida de forma pueril e dependente, em que haverá sempre um culpado para nossos fracassos porque nossas crenças são frágeis e insustentáveis. Ninguém renasce com a responsabilidade de nos fazer felizes, mas para melhorar a si mesmo.
O único lugar, onde a felicidade é intransferível e legítima, é dentro de nós mesmos. É lá que devemos depositar nossas expectativas e possibilidades. Se não formos capazes de nos fazermos felizes, ninguém mais o será. É um nível de consciência difícil de ser atingido, senão sob esforços contínuos de meditação, reflexão e, necessariamente, de solidão. Nesse sentido, todos somos irremediavelmente sós; trazemos uma tarefa intransferível, no íntimo de nossas consciências: tornarmo-nos pessoas melhores, menos egoístas, mais solidárias e mais solitárias, no sentido de sermos autônomos. Termos a consciência de que somos solitários não significa dizer, existencialmente falando, que tenhamos de nos sentir sozinhos, tampouco nos isolarmos do mundo. Estar consigo mesmo já é uma conquista tremendamente difícil, no sentido de se pertencer, não ser joguete de crenças e influências dispersas. Pertencermos-nos é o grande desafio para o qual nos deixamos perder tantas vezes. Pertencermos-nos significa ter a consciência do que somos, do que fazemos aqui, qual o nosso dever no percurso da existência. Significa compreender qual é o nosso limite de amar o outro como nos amamos; em última instância, compreender o que significa amarmo-nos. Viver significa empreender a maravilhosa jornada do autoconhecimento, do auto-amor.
O sábio da parábola da corda representa as tentativas que aquele que aprendeu faz para mostrar os caminhos a quem ainda reluta em se agarrar a corda de suas crenças fragilizadas, embora haja chão para pisar.
Nesse sentido, não estamos sozinhos, haverá sempre aquele que volta no caminho para mostrar como podemos caminhar; e haverá sempre um ponto do percurso em que deveremos decidir sozinhos, pois faz parte do aprendizado da autonomia. E haverá sempre um sábio a se voltar para trás e observar o que fizemos de nossa decisão.

Célia Firmino


[1] RUSSSEL, Peter. Libertar: a parábola da corda. In: O Buraco branco no tempo:nossa evolução futura e o significado do agora. São Paulo: Aquariana. 1992. p. 143.

domingo, 29 de abril de 2007

O caminho das borboletas: uma metáfora do crescimento humano

A angústia que nos oprime é a mesma que nos sublima.
As algemas que nos prendem são as mesmas que nos libertam.

A lagarta, cansada de rastejar-se, se sujeita à solidão de um casulo, como caminho de sublimação. Silenciosamente, olvida o mundo exterior e volta-se para o mundo que, em si mesma, lateja pedindo transformação. É a lei natural. Renuncia, portanto, à flor que desabrocha; ao perfume que aspira. Não contempla o sol que nasce, tampouco lhe busca os raios que aquecem. Não mais sente a grama orvalhada pela noite, nem experimenta o aconchego da relva macia. Não ouve o canto dos pássaros, o murmurar de um riacho ou a melodia da natureza em festa. Tudo é silêncio.
No entanto, sob aparente letargia, um universo agita-se, revoluciona. As mutações pulsam, sente nas entranhas e angustia-se, já que não sabe bem o que virá depois. Sabe apenas que não pode e não deve fugir sem comprometer o porvir.
Entrega-se inteira às angústias do momento, às experiências buriladoras. Permite-se sentir, intensamente, as turbulências interiores, as incertezas do que há de vir. Adivinha apenas, que algo mágico lhe acontece. Sente que cresce; sente que vive. Percebe que uma força nova, intimamente se agiganta, fragiliza o casulo e ele se rompe. Movimentos lentos denunciam o despertar, a superação dos limites, o transpor das barreiras. Asas triunfantes ornam-lhe o corpo. A princípio, titubeante, não sabe bem o que vai fazer com elas e, talvez, nem consigo mesma.
Nesse belíssimo instante, a lagarta cede lugar à borboleta, abandona a casca e ensaia o primeiro vôo. No início, vacilante. Insiste. Sabe que é capaz, que é preciso. Posteriormente, exercita-se mais segura, como quem já tem certeza de onde quer chegar.
Quer pousar a flor, agora mais bela, pela poesia que a angústia lhe devolveu; sentir-lhe o perfume, descobrir novos jardins. Quer transparecer à luz do sol, aquecer-se. Quer sentir o orvalho da noite em uma pétala macia. Quer ouvir cantar os pássaros, insetos...Quer contemplar a lua, talvez, contar as estrelas. Quer partilhar a vida, as visões delicadas do mundo, há muito esquecidas. Quer viver...
***
Reconhecemos na metáfora da lagarta a trajetória do crescimento humano. Enquanto permitirmo-nos rastejar, limitamos nosso espaço à poeira do chão, impedidos de alcançar as estrelas.
Num dado momento, sem dia e hora marcados, somos chamados ao casulo, oficina onde laboramos, angustiosamente, a vida íntima, a descoberta de nós mesmos. Nesses momentos, centramos nossas atenções ao que somos, ao que podemos e devemos ser. É um trabalho que requer recolhimento e serenidade, a semelhança da lagarta, cuja casca abriga, pacientemente, a metamorfose.
As nuanças da vida exterior tornam-se refratárias aos nossos sentidos mais profundos. Seqüestram-nos a poesia de contemplar as estrelas, ou a flor que desabrocha; o pôr-do-sol ou o mar que se arrebenta nas rochas; a lua ou as estrelas no firmamento; até mesmo a melodia suave do vento que sopra ou da tempestade que devasta. Como se poesia e realidade fossem, necessariamente, inconciliáveis com o ser que amadurece. Vivemos, intensamente, as angústias de um crescimento que dói.
Voltamo-nos, contudo, para o ser interior e descobrimos que algo mágico também acontece: geramos a força capaz de nos conduzir às nossas bem-aventuranças. Rompemos lentamente o nosso abrigo, nossas defesas, sem saber muito bem o que virá. Movimentos vacilantes, insistentes...seguros. Superamos nossos limites. Descobrimo-nos capazes de dar vida aos nossos sonhos, por um processo divino que faz existir os caminhos. Recuperamos a poesia; estamos prontos para voar.
Neste momento tão significativo de sua vida, em que o casulo está prestes a romper, após um longo período de laboração, permita-se viver a magia de quem conquistou asas e se prepara para voar, com a certeza de quem sabe onde quer chegar.
O seu limite? O universo, sem pólos. Você é o universo.
Descobre o encanto de dar-se, se no casulo aprendeu a pertencer-se. Esse é o caminho de todos os caminhos, de todas as direções. Vence os seus medos e receios. Não se permita rastejar, portando asas.
Segue e confia “que as portas se abrirão, lá, onde você não sabia que havia portas.”

Célia Firmino

sábado, 14 de abril de 2007

Literatura, História e Sociedade: nas tramas da narrativa


Veja tudo, de vários ângulos e sinta, não sossegue nunca o olho, siga o exemplo do rio que está sempre indo, mesmo parado vai mudando. O senhor veja o efeito, apenas, imagine; veja o jogo de luz e sombra, de cheios e vazios, de retas e curvas, de retas que se partem para continuar mais adiante, de giros e volutas, o senhor vai achando sempre uma novidade. Cada vez que vê, de cada lado, cada hora que vê, é uma figuração, uma vista diferente. O senhor querendo, veja: a casa ou a história. (Autran Dourado)

Na história da humanidade, a narrativa universalizou-se como uma das formas mais utilizadas para enredar o homem nas teias lúdicas da arte da palavra, para segredar-lhe verdades através da mentira, para situá-lo na existência como um contemplador da própria história vivida pelo outro - homo fictus, e nele se determina como consciência desperta a caminho de si mesmo.
Barthes
1 lembra que a narrativa começa com a própria humanidade, naturalmente, numa variedade de gêneros, como se toda matéria fosse boa para o homem confiar suas narrativas. Nela estão presentes os heróis lendários, divinos ou humanos, o mito, a lenda, a epopéia, o conto, a novela, o romance, a comédia, a tragédia, a pantomima, a pintura, a história, o cinema, as histórias em quadrinhos, a conversação. Em todos os tempos, em todos os lugares, em todas as sociedades, em todas as culturas, nas mais variadas manifestações da linguagem, a narrativa está aí, como a vida e, na tessitura do enredo, o homem, convertido em herói, graças ao olhar perscrutador do homem-autor.
O homem está, portanto, no centro da arena onde trava sua mais árdua luta: constituir-se como sujeito de sua história. Aí, ele age e reage perante a dor e o sofrimento, submete-se, impõe-se, sofre, cresce, transforma, progride, inserido numa realidade que se apresenta ao artista literário como um conjunto multiforme de componentes para acabamento estético, sobretudo verbal, já que a palavra é o seu instrumento de trabalhar o mundo. Mas o homem é também a matéria-prima do historiador que investiga a história das sociedades, busca elementos para entender o presente e quais os possíveis reflexos no futuro. O ir-e-vir através de contextos marcados pelas desigualdades, pelas diferenças sócio-culturais, econômicas, políticas, enfim, constrói o tecido histórico da humanidade.
Entre Arte, História e Sociedade, um ponto comum: o homem. O que faz então a diferença entre narrativa literária e narrativa histórica?
Para Bakhtin2, a diferença reside, sobretudo, na perspectiva ou no ponto de vista em que se coloca o artista e, por extensão, o historiador:

O artista é precisamente aquele que sabe situar sua atividade fora da vida cotidiana, aquele que não se limita a participar da vida (prática, social, política, moral, religiosa) e a compreendê-la apenas do seu interior, mas aquele que também ama do exterior – no ponto em que ela não existe para si mesma, em que está voltada para fora e requer uma atividade situada fora de si mesma e do sentido. A divindade do artista reside em participação na exotopia suprema.


Aproximar-se da vida pelo lado de fora é condição sine qua non para que o artista crie uma visão de mundo absolutamente nova. O ato estético caracteriza-se justamente pela possibilidade de engendrar uma nova existência, um novo plano de valores do mundo, um novo plano do pensamento do homem sobre o mundo. Se o artista trabalha a realidade situada fora da vida cotidiana, dando-lhe uma nova forma plástico-visual, concebida pela liberdade criadora, o historiador situa-se dentro da vida, e colhe do cotidiano a matéria de sua produção. Ao contrário do artista, seu procedimento é “empírico”. O historiador investiga, analisa, interpreta a realidade tenta estabelecer relações com o contexto sócio-cultural-histórico em estudo, utilizando para o seu ofício referenciais que permitam a construção científica do documento cuja análise deve possibilitar a reconstituição ou explicação do processo histórico. Para tanto, as obras de arte, além de outras, são fontes importantes como coloca Le Goff3:

Com freqüência, o historiador era apenas um viajante que contava o que vira. Agora, a história é uma enciclopédia; é preciso enfiar tudo nela, desde a astronomia até a química, desde a arte do financista até a do manufator, desde o conhecimento do pintor, do escultor e da arquitetura até a do economista, desde o estudo das leis eclesiásticas, civis e criminais até o das leis políticas.

Embora o artista e o historiador participem do acontecimento existencial, o historiador não pode criar uma realidade nova, um novo plano de valores, um homem novo; sua atividade baseia-se na construção de significados históricos de um determinado contexto, estabelecendo relações com contextos mais amplos. Narrar, portanto, refere-se à atividade artística e historiar no sentido científico do termo, concerne ao historiador da História.
História e Literatura, embora as especificidades, são tangenciais e devem contribuir, solidariamente, para o enriquecimento cultural de qualquer sociedade. Não se pode separar a Literatura do resto da Cultura, tampouco não se pode justificá-la somente pelo contexto histórico como é prática corrente.
Para estabelecer elo entre a História e a Literatura, seria necessária uma outra disciplina que historiasse a Literatura nos referidos contextos de época - a História da Literatura que, em vez de elucidar as especificidades e minimizar os conflitos entre os campos, acabou se perdendo enquanto natureza e finalidade no emaranhado de níveis que as três ciências entrelaçam. O pensamento de Lajolo4 reflete essa problemática:

O texto literário como documento da história ou a história como contexto que atribui significado ao texto literário são caminhos que podem colidir no congestionamento da mão única por onde se enveredam. Nesse sentido, reflexo, expressão, testemunho, articulação, influência e termos similares são o léxico que costuma vincular o texto literário ao que há de coletivo e social para aquém e para além de suas páginas. Aliás, a escolha de um e de outro termo já implica não só menor ou maior grau de entrelaçamento postulado entre literatura e história, como também e, sobretudo, o modo como postula tal entrelaçamento.

O conceito de obra de arte apresenta-se como o ponto nevrálgico, responsável pela confusão entre a História Literária, História da Literatura e História. Se tal questão não está clara para o historiador da Literatura, o objeto do seu trabalho confunde-se como produto da história enquanto processo e como conseqüência natural desta concepção é a arte submetida à perspectiva histórica em detrimento da apreciação do nível estético da obra, prática muito comum nas escolas secundaristas e veiculada por grande parte dos livros didáticos.
Além das escolas e dos manuais didáticos, a tendência de alguns historiadores da Literatura é exercer a mesma atividade do historiador da História, ou seja, tratar os textos literários como documentos da história, como, por exemplo, justificar a obra pelo contexto histórico de que ela provém. Assim, a história é supervalorizada em detrimento do aspecto artístico. Este problema é discutido por muitos críticos e estudiosos de questões de estética, entre eles destacamos Picon5:

Ainda é pouco afirmar que a história se afasta dos valores: ela os recusa. O essencial da análise histórica tende a ligar a obra às causas de que ela provém: a história vê na literatura um conjunto solidário e homogêneo, em que todas as obras se confundem, enquanto expressões de uma época e cadeias de ampla causalidade. Desse ponto de vista, todas as obras se equivalem: não importa ao historiador qual seja a literatura. Poderosa força de nivelamento, a história, desde há um século, não cessa de multiplicar estudos sobre os escritores, dos quais tudo o que se pode dizer é que foram escritores.

Evidentemente, o historiador se aproxima da literatura enquanto prática social consolidada na obra. Para ele, a obra é, dentre outras fontes, importante pelo testemunho que oferece sobre uma época e pelo papel que representou em seu tempo.6 Neste sentido, compreende-se porque a História da Literatura, como desdobramento da história, enveredou pelos mesmos rastros do historiador da História, colocando entre parênteses a Estética, “traduzindo-se em obras que apresentam a literatura como continuun de autores e obras que, ao sucederem-se no tempo, agrupando-se em conjuntos(...)que encontram sustentação em diferentes instâncias, intra ou extraliteratura”, denuncia Lajolo (1994, p. 22).
Assim como a tendência de grande parte dos historiadores é afastar-se da Literatura, não é incomum encontrar historiadores da Literatura distanciarem-se da arte para curvar-se sobre a obra apenas para classificar, sem subordinar, nem excluir, por gerações, por gêneros, por temas de inspiração, por momentos históricos. Eles restringem o seu trabalho ao exercício de catalogação dos nomes, das obras, dos períodos, dos movimentos literários a que pertencem, atribuindo à obra o valor correspondente ao seu lugar na história. E se a obra ganha um lugar na história, obscurece-se em sua natureza e finalidade, ou seja, ser obra literária, portadora de uma essência que a caracteriza como Arte, com sua realidade estética.7
Em virtude disso, a Estética enquanto ciência do valor8 reivindica seu espaço para solidarizar com a História da Literatura, restituindo à obra de arte, não apenas o seu lugar na História, mas, sobretudo, atribuindo-lhe um valor que a eterniza e a transcenda no tempo e espaço históricos.9 À Estética cabe a função de assumir e justificar os valores verticais da obra que não prescinde, é claro, dos valores horizontais da produtividade histórica, aos quais, todavia, não se lhe deve submeter.
Estabelecido o conflito e sem desmerecer o valor de cada categoria ainda por legitimar-se enquanto natureza e função, rendamo-nos às evidências e às impotências: a História da Literatura sem a História Literária, não dá conta de explicar os fenômenos estéticos da obra de arte. A Literatura sem História não teria epígonos.
Cabe, portanto, à História Literária entrelaçar a Literatura e a História, solidarizando a relação entre ambas, ressignificando a obra enquanto objeto de uma experiência, de um sentimento e de juízo de valor inesgotáveis e, portanto, de fruição estética; obra vinculada (e não restrita) a um tempo determinante da produtividade histórica e, por isso mesmo, passível de justificar a escolha do material que o artista usou para dar forma e representar a consciência que ele tinha da realidade. Neste contexto, é possível conceber a obra de arte não apenas como fruição, ela se oferece ao espírito como objeto de interrogação, de pesquisa e de perplexidade, de intuição. A obra surge como um enigma a ser inesgotavelmente desvelado, um acontecimento de expressão literária, justificado pelo grau de função poética presente no texto, em virtude do domínio lingüístico do escritor.
O duplo plano no qual é preciso estudar a obra de arte enquanto acontecimento estético e histórico implica duplo critério para os juízos de valor: o artístico e o histórico, cada qual com seus critérios e níveis discursivos específicos. Ambos, de acordo com as suas especificidades, devem dar conta tanto das relações humanas no seu campo de ações e reações, quanto do potencial criador dos indivíduos, quando superam suas limitações na tentativa de criar o mundo em que vivem. Esta consideração coloca um dos principais problemas de toda a história, tanto literária quanto da literatura: o problema das ideologias e sua relação objetiva com a literatura do ponto de vista estético e histórico.
Considerando esse aspecto, o estudioso literário, consciente dos perigos que o subjetivismo pode impor ao procedimento científico e para que não se perca em abstrações vazias de comprovações, deverá esforçar-se por encontrar coerência entre a teoria e prática, buscar a realidade concreta, ainda que saiba não poder alcançá-la a não ser de uma maneira parcial e limitada, e para isso integrar no estudo da obra literária o estudo dos fatos de consciência, à sua localização histórica e à consciência criadora do artista, relacionando assim o que até então foi teorizado: a história filtrada pela estética.
Assim, do ponto de vista estético, o artista, impregnado de todos os valores da história, alimentado de suas diferenças e de sua coerência permite-se compor, enquanto consciência artística de uma realidade objetiva filtrada por um jeito novo de “olhar” a vida de fora, imagens que transcendem a significação humana, imagens da arte, do homem para o homem.
É na trama narrativa, seja no conto, romance ou novela, que vamos reencontrar a densidade de uma realidade que transcende a si mesma como obra de arte, graças ao ato estético. A vida está, assim, para sempre preservada e aberta à experiência estética dos que buscam, mais do que um exercício produtivo para a memória, ver para além do homo fictus, a nossa própria consciência latejando vidas conquistadas e redimidas, protagonistas de uma história que, graças a arte, não pode jamais ser esquecida. Quem enfatiza tal pensamento é Picon (1969, p. 235), cujas imagens poéticas inserimos aqui para finalizar estas reflexões iniciais:

As imagens da arte não exaltam apenas em nós, como a verdade do conhecimento e a eficácia da ação, o orgulho de ser homem: elas nos fazem ceder a um universo onde invertem todas as fatalidades humanas – uma resplandecente compensação a nosso destino. A “pátria dos quadros” e dos poemas, dos romances e das sinfonias, nos abre o refúgio triunfante de uma humanidade para sempre inocente; de um mundo onde existe seja a dor, seja a alegria, onde o sangue e a morte não são esquecidos, mas onde perderam seu odor de derrota por se terem convertido em seu próprio canto.

Profa. Célia Firmino

1 BARTHES, Roland, 1973, p. 1.
2 BAKHTIN, Mikhail, 1997, p. 204-5.
3 LE GOFF, Jacques, 1990, p. 39.
4 LAJOLO, Marisa, 1994, p. 21.
5 PICON, Gaëtan, 1969, p. 155.
6 “ ... as obras ‘representativas’ são as prediletas do historiador, porque nelas descobre menos a arte do que a história, e porque a hierarquia das obras parece-lhe assim subtraída a todo arbitrário, e tão segura quanto uma cronologia bem estabelecida” ( PICON, idem, p. 158).
7 “A estética não é, na obra de arte, um elemento entre outros: ela é a essência da obra, o que nela atrai, prende – intriga. É integralmente que a obra é realidade estética: tudo nela é tentativa de valor. E, não se trata somente da obra bem sucedida: toda obra que tem a pretensão de ser arte é, de ponta a ponta, realidade estética – valor a medir: forma, cuja única mira é a eficácia da estética” (PICON, op. cit. p. 146).
8 A estética é conceituada por Picon como ciência da valor, já que a experiência estética é precisamente, em face de uma obra concreta, uma investigação do seu valor.
9 “A história também admite que o valor de uma obra possa estar em algo diverso de sua ação sobre outras obras: em sua presença permanente, sua sobrevivência histórica – sua duração. Essa duração, no entanto, segundo o historiador, não é o resultado de um incerto juízo de valor: ele a concebe como uma realidade tangível, indubitável, como uma coisa que pesa sobre nosso julgamento. A oposição do juízo e da duração é, para o historiador, fundamental; em nome desse mesmo princípio, ele designa a permanência de uma obra como sinal de seu valor e recusa ao julgamento o direito de se pronunciar sobra a arte que se está fazendo” (PICON, Ibid. p. 165).
10 TACCA, Oscar, 1978, p. 30.
11 DALCASTAGNÈ, Regina, 1996, p. 15.
Referências Bibliográficas:

ARISTÓTELES. Arte retórica e arte poética. Trad. Antônio Pinto de Carvalho. Rio de Janeiro: Tecnoprint, 1966.

BARTHES, R. Introdução à Análise Estrutural da Narrativa. Trad. Maria Zélia Barbosa Pinto. 4. ed. Petrópolis: Vozes, 1976.

BAKHTIN, Mikhail Mikhailovitch. Estética da criação verbal. Trad. Maria Ermantina Galvão G. Pereira. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1997.

____________1993. Questões de.Literatura e de Estética: a teoria do romance. Trad. Aurora Fornoni Bernardini et all. 3. ed. São Paulo: Unesp.

____________1981. Problemas da Poética de Dostoievski. Trad. Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense Universitária.

DALCASTAGNÈ, Regina. O espaço da dor: o regime de 64 no romance brasileiro. Brasília: UNB. 1996.

DOURADO, Autran. Ópera dos Mortos. 12.ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves. 1995.

LAJOLO, Marisa. Literatura e História da Literatura: senhoras muito intrigantes. In: MALLARD, Letícia et al. História da Literatura: ensaios. Campinas: Unicamp. 1994.

LE GOFF, Jacques. A história nova. Trad. Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 1990.

PICON, Gaëtan. O escritor e sua sombra. Trad. Antônio Lázaro de Almeida. São Paulo: Editora Nacional e Editora da USP, 1969.

TACCA, Oscar. Las voces de la novela. 2.ed. Madrid: Editorial Gredos. 1978.


sábado, 7 de abril de 2007

Currículo e Cultura: Gestão de Saberes

Diego não conhecia o mar. O pai, Santiago Kovadloff, levou-o para descobrir o mar. Viajaram para o Sul.
Ele, o mar, estava do outro lado das dunas altas, esperando.
Quando o menino e o pai enfim alcançaram aquelas alturas de areia, depois de muito caminhar, o mar estava na frente de seus olhos. E foi tanta a imensidão do mar e tanto o seu fulgor, que o menino ficou mudo de beleza.
E quando finalmente conseguiu falar, tremendo, gaguejando, pediu ao pai: - Me ajuda a olhar!

Eduardo Galeano

O homem, por natureza, produz cultura. Desde que nasce, busca compreender o mundo em que vive, cria formas de comunicação e expressão com tudo o que o cerca. Historicamente, é um ser que produz saberes que lhes possibilitem inserir-se no meio em que vive favorecendo-lhe a participação social e, portanto, o crescimento pessoal através de novas experiências. Na relação com o mundo, o convívio com as diferenças, com outros tantos saberes, o embate com os discursos alheios, materializados em pontos de vista e modos de ação, ampliam os referenciais e, conseqüentemente, os saberes se transformam, construindo novas formas de compreensão da vida e de ação sobre a realidade. É neste contexto de interação com o mundo, movido pelas necessidades inúmeras, que o homem se constitui em sujeito pela linguagem, ao mesmo tempo em que a transforma, plasticamente, como matéria prima da comunicação e da expressão. Portanto, a linguagem constitui-se a idéia-chave de todas as manifestações humanas e culturais que compõem a história da sociedade em todas as épocas. E à escola cabe a missão de preservar este arcabouço, como guardiã institucionalizada deste percurso histórico, social e cultural. Assim, partindo destes pressupostos, a linguagem será o fio condutor destas reflexões que devem centrar-se na presença ou ausência de uma consciência, no espaço escolar, sobre a linguagem[1] como instrumento de ensino e aprendizagem.
Neste contexto, é possível dimensionar o significado da escola, como espaço socialmente organizado, onde circulam e são transmitidos conhecimentos diversos, materializados em múltiplas linguagens, e sua responsabilidade social frente à educação de gerações presentes e futuras. Responsabilidade que deve concretizar-se num currículo como resultado de reflexões sobre o contexto sócio-histórico no qual esta escola está inserida e, sobretudo, sobre as reais necessidades educativas da população escolar. Algumas perguntas são imprescindíveis para se repensar o percurso a seguir. De que maneira os professores compreendem a linguagem? Quais as características que ela assume nos diferentes componentes curriculares, não sendo mais possível falarmos em linguagem, mas em linguagens, no plural, pelas demandas sociais que o presente século marcado por transformações globais vem gerando: linguagem matemática, linguagem artística, linguagem verbal, linguagem cartográfica, linguagem corporal, linguagem científica, linguagem? Como elas circulam e dialogam entre si? Como são tratadas didaticamente? Como os saberes que as crianças trazem dialogam com os saberes que a escola detém?
É importante considerar que, o grande desafio que a escola enfrenta neste contexto, é encontrar caminhos de ensino e aprendizagem significativos para as crianças. Em muitas experiências no trabalho com formação de professor, diagnosticamos que as práticas escolares, muitas vezes, estão distantes das práticas sociais das crianças. São práticas descontextualizadas, como os próprios professores admitem, porém, sem conhecimentos sólidos que provoquem mudanças. Ora, é necessário considerar que, ao referirmo-nos a práticas sociais que as crianças desenvolvem e trazem para a escola, estamos, essencialmente, tratando de um conceito relativamente novo para a escola, mas que é o resultado natural de inserção nesta sociedade grafocêntrica em que vivemos: o letramento[2]. Um fenômeno que se desenvolve naturalmente pelo contexto social, mas do qual a escola não pode alienar-se sob o risco de comprometer sua principal função: ensinar a ler e a escrever para a cidadania. Significa dizer que, apesar da escola, a leitura e a escrita se impõem como necessidade social. Mas a que leitura e escrita nos referimos? A escolar, alfabética ou a social ? O que significa ler e escrever? Apropriar-se do código ou construir sentidos para as diferentes linguagens de circulação social? Quais os conteúdos que a escola considera ao construir o seu currículo? Leite[3], ao citar Soares, analisa que apropriar-se socialmente da escrita, através de seus usos sociais, é diferente de aprender a ler e escrever, no sentido do domínio do código, ou do domínio da tecnologia da escrita. É possível, portanto, em falarmos sobre diversos níveis de letramento se considerarmos as inumeráveis áreas de produção de linguagens. Por exemplo, há muitas crianças que trazem um nível de letramento em informática muito além do que o próprio professor conhece. É comum encontrarmos estudantes que dominam o uso manuais de jogos eletrônicos, montagem e operação sem que a escola ensinasse; apropriam-se de conhecimentos práticos sobre uso de vídeo, auxiliando, não raras vezes, o professor. Crianças, filhos de feirantes, que com facilidade operam a matemática de forma prática por auxiliarem os pais nas feiras livres. Crianças que compreendem jargões das usinas de álcool, para citar um exemplo de nossa região, sabem como a cana-de-açúcar se transforma em combustível sem terem nunca assistido a uma aula de química. Todos estes exemplos são práticas de letramento e, portanto, de linguagens aprendidas no cotidiano de suas vidas e que a escola pouco tem considerado em seu currículo.
Considerar o que as crianças já sabem sobre práticas sociais de leitura e escrita auxiliaria significativamente a escola a articular os conhecimentos escolares com os saberes das crianças. É, na verdade condição sine qua non para a contextualização do que está sendo ensinado, dispondo a criança a aprendizagem, otimizando as possibilidades de interação dela com os novos conhecimentos dos quais deve se apropriar. Mais ainda, a escola tornaria a criança protagonista de sua aprendizagem, o que modifica substancialmente sua relação com o ensino.
Para tanto, é necessário que a escola ultrapasse os muros virtuais que a separam da vida, já que os muros reais não impedem que a vida venha até a escola, materializada no enorme contingente de problemas sociais que aí circula, apesar dela e que, via de regra, constituem-se em conteúdos de aprendizagem, se considerados. É imprescindível que ela – a escola - se constitua em um espaço real de aprendizagens significativas, considerando reais também os sujeitos das aprendizagens, com saberes e experiências histórica e socialmente construídas. A escola não pode negar, sob pena de implodir-se que, estes sujeitos são portadores de sentimentos e valores que são expressos em diferentes linguagens: a mudez, o grito, a raiva, a indisciplina, o choro, a evasão, a recusa... são tantas as formas de expressão e, quase nunca de comunicação, na medida em que a escola se recusa a escutar, a ver. Neste sentido, é impossível pensar em um currículo se a escola continua sendo a do silêncio. É fundamental que a escola seja um espaço de escuta de si mesma e do outro: um diálogo que se desenvolve através de múltiplas linguagens.
Pensar um currículo para a educação do século XXI, requer que a escola seja um espaço de comunicação e de expressão; um espaço em que as múltiplas linguagens dialoguem entre si, de forma significativa, dinâmica, protagonista. A organização curricular deve propor conteúdos de forma desafiadora, para além dos conteúdos repetitivos, memorizados, artificializados, superficializados e reduzidos a tarefas estanques mais voltadas para a avaliação do que para ensino e aprendizagem, pois que, sem articulação progressiva da construção do conhecimento que se pretende novo. Para tanto, o que as crianças já trazem como saberes deve ser o ponto de partida para a crescente espiral da aprendizagem que nunca se fecha em si mesma, mas sempre avança a cada marco da aprendizagem inicial.
Favorecer a comunicação e a expressão em todos os sentidos, em um ambiente acolhedor no qual a criança se sinta a vontade para falar, discutir, conversar, é fundamental a fim de conhecermos, de fato, as potencialidades que temos na escola e, por que não dizer, medir as distâncias a percorrer para que se efetive a cidadania protagonista. Para que a escola seja um espaço real de escuta e da palavra, é imprescindível que se organize situações didáticas de leitura de textos de diferentes gêneros[4], de apreciação de obras artísticas, de expressão corporal, através de jogos e brincadeiras, de leitura de imagens, de jogos teatrais, de raciocínio matemático em situações significativas de resoluções de problemas; enfim, é preciso propiciar o contato destas crianças com diferentes linguagens para que, possam ir-se revelando em suas potencialidades; possam dizer muito de si mesmas, como pensam, o que sentem, suas dúvidas, angústias, esperanças, frustrações. E ouvindo-se, possam conhecer-se, e nós, ouvindo-as possamos conhecê-las; escutando-nos uns aos outros, possamos nos desvelar mutuamente, numa aprendizagem em que se fundem, porém não se confundem, quem ensina e quem, de repente, aprende, como já poetizava Guimarães Rosa.
Assim, estas crianças poderão perceber que o mundo é um lugar sem fronteiras, tão imenso como o mar. É preciso ajudá-las a olhar. Olhar as diferentes possibilidades de compreender o universo; ajudá-las a ler as múltiplas linguagens que permeiam o contexto social e a se relacionar com elas de forma autônoma; torná-las, enfim, sujeitos e protagonistas de sua própria história. É um processo imbricado de ensino e aprendizagem, em que a sala de aula, mais do que um lugar de circulação de conhecimentos, transforma-se num espaço de aprendizagem real do humano. Esta é a utopia necessária ante os múltiplos desafios do futuro: tornar a educação um trunfo indispensável à humanidade na sua construção dos ideais da paz, da liberdade e da justiça social. (DELORS, p. 11, 2001)
Profa Msc. Célia Firmino


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
DELORS, J. Educação: Um tesouro a descobrir. Relatório para a UNESCO da Comissão Internacional sobre educação para o século XXI. 6 ed. São Paulo: Cortez, 2001.

LEITE, S.A.S. Notas sobre o processo de Alfabetização Escolar. Disciplina: Gestão, Currículo e Cultura. Campinas: Unicamp, 2006.

MEC (1999). Parâmetros Curriculares Nacionais: ensino médio: Linguagens, Códigos e suas tecnologias. Brasília: MEC/Secretaria de educação Média e Tecnológica, 1999.

SCHENEUWLY, B.; DOLZ, J. Gêneros Orais e escritos na escola. Trad. e org. Roxane Rojo e Glaís Sales Cordeiro, Campinas, SP: Mercado de Letras, 2004.

SOARES, M. B. (1988) Letramento – um tema em três gêneros. Belo Horizonte: Ceale/Autêntica.
[1]Tratamos aqui a linguagem como “capacidade humana de articular significados coletivos e compartilha-los em sistemas arbitrários de representação, que variam de acordo com as necessidades e experiências da vida em sociedade”. (PCNEM, p. 125)
[2] Letramento como o resultado da ação de ensinar ou aprender a ler e escrever, ou seja, estado ou condição que adquire um grupo social ou indivíduo como conseqüência de ter-se apropriado da escrita (Soares, 1988).
[3] Doutor em Psicologia, Professor da Faculdade de Educação da Unicamp. Coordenador do grupos de pesquisa ALLE – Alfabetização, Leitura e Escrita.
[4] Conceito de gênero: são “famílias”, grupos de textos que te origens semelhantes, ou seja, nascem em situações de comunicação que ocorrem em uma mesma área de produção de linguagem. (SCHNEUWLY, p.25-26, 2004)

quinta-feira, 1 de março de 2007

Ideologia e Discurso: uma introdução

Célia Firmino[*]


O termo Ideologia foi criado por Destutt de Tracy em 1796 para denominar, a princípio, ciência cujo objeto é a gênese das idéias. Com o desenrolar do processo histórico e social, o termo assumiu concepções tão variadas e, às vezes, antagônicas, e pejorativas que a clareza do conceito, por força da necessidade de adaptar-se aos novos tempos, perdeu-se nas rupturas, continuidades e descontinuidades do pensamento ocidental.

Para Durozoi e Roussel
1, o sentido mais freqüente do emprego contemporâneo vem do marxismo, em que a ideologia designa a representação falseada do mundo imposta pela classe dominante para seu próprio interesse à classe dominada, a primeira acreditando eventualmente que ela corresponde à realidade. A ideologia é desse modo uma espécie de mentira coletiva mais ou menos involuntária proveniente de uma ignorância da determinação das superestruturas intelectuais e espirituais pela infra-estrutura econômica, submetendo aos seus poderes todos os domínios do pensamento humano. Pejorativamente, o conceito designa discussão vazia de idéias sem correspondência com a realidade.
A fim de tentar desmistificar o conceito, livrá-lo das malhas confusas de interesses partidários, particulares, institucionais, a-científicos, e restituí-lo ao campo dialético da interlocução científica, Terry Eagleton propõe delinear a história do conceito de ideologia e, refletir sobre as confusões que o enredam, além de posicionar-se a respeito da questão.
O primeiro conceito abordado por Eagleton é o da ideologia como idéia de reificação, coisificação ou “materialização”, não, porém, identificável pelos sentidos físicos como o tato, paladar, ou visual, mas uma reificação toda própria. O termo ideologia é uma forma de classificar em uma única categoria uma porção de coisas que fazemos com os signos. E signos, conforme conceituação saussureana, é elemento material da linguagem.
Neste sentido, como entender a ideologia em termos de consciência e de idéias, como tradicionalmente se convencionou formular, considerando a idéia de reificação? Ora, a “consciência” é também um tipo de reificação, uma abstração de nossas efetivas práticas discursivas. A revolução lingüística do século XX trouxe-nos a possibilidade de deixar de pensarmos nas palavras em termos de conceitos para pensarmos em conceitos em termos de palavras, e pensar em palavras significa utilizar-se de signos. Construir um conceito, portanto, é mais uma prática, um exercício discursivo, que um estado mental.

Entre pensar a ideologia como idéias sem corpo ou considerá-la apenas como uma questão de padrões de comportamento, Eagleton apresenta uma terceira vertente: a ideologia como um fenômeno discursivo ou semiótico. Esta perspectiva é desenvolvida pelo filósofo soviético V.N. Voloshinov, em 1929, na obra Marxismo e Filosofia da Linguagem. Para ele, sem signos não há ideologias. Signos e ideologias são co-extensivos, logo, a consciência só pode surgir na corporificação material dos significantes, e como esses significantes são em si mesmos materiais, não são apenas “reflexos” da realidade, mas uma parte integral dela. A lógica da consciência é a lógica da comunicação ideológica, da intenção semiótica de um grupo social. Portanto, a palavra é o fenômeno ideológico por excelência, e a própria consciência é a internalização de palavras, um tipo que nos constitui inteiramente. Se a ideologia não pode ser divorciada do signo, o signo não pode ser isolado das formas concretas de intercâmbio social. O signo e sua situação social estão inextricavelmente fundidos, determinando a partir de dentro a forma e a estrutura de uma elocução, ou seja, a condição social determina a escolha das palavras ou frases que conduzirão a forma de expressão numa determinada sociedade. Inicia-se aí, a luta de interesses sociais e antagônicos no nível do signo, pois o signo social particular é puxado de um lado para outro por interesses sociais em competição. Estabelecendo a visão de ideologia como luta de interesses, Voloshinov constitui-se precursor da “Análise do discurso” que acompanha o jogo do poder social no âmbito da própria linguagem.

Pêcheux, autor de Language, Semantics and Ideology (1975), desenvolve as idéias de Voloshinov, propondo, no entanto, ir além da distinção saussereana entre langue (o sistema abstrato da língua) e parole (elocuções particulares) como os conceitos de processo discursivo e formação discursiva.
Uma formação discursiva, segundo Pêcheux, pode ser vista como um conjunto de regras que determina o que pode e deve ser dito a partir de certa posição na vida social, e as expressões têm significado apenas em virtude das formações discursivas em que ocorrem, mudando de significado quando são transportadas de uma para outra. Uma formação discursiva constitui uma ” matriz de significado” ou sistema de relações lingüísticas dentro do qual são gerados processos discursivos efetivos. Cada formação discursiva, seria portanto, um interdiscurso no qual está encerrada a formação ideológica que contém tanto práticas discursivas quanto práticas não discursivas. No entanto, a identificação do sujeito falante com a formação discursiva ocorre de maneira acrítica, uma vez que ele não tem a consciência do processo. O ocultamento da posição da formação discursiva se dá por uma espécie de “esquecimento”, dando ao falante a impressão ou “certeza” de que os significados são evidentes e naturais. Ele esquece, então, que é apenas a função de uma formação discursiva ou ideológica e, assim, vem a reconhecer-se erroneamente como autor de seu próprio discurso.

Assim, o papel de uma semântica discursiva será o de examinar como os elementos de uma formação específica estão ligados para formar processos discursivos em relação com o contexto ideológico.
Tanto o trabalho de Voloshinov quanto de Pêcheux, estabelecendo a perspectiva lingüística de análise, abriu uma nova dimensão para uma teoria da ideologia tradicionalmente mais interessada na “consciência” do que no desempenho lingüístico, mais nas idéias que na interação social.


A partir da década de 1970, surge uma nova corrente de investigação que caracterizou o pensamento europeu de vanguarda, com uma proposta diferente sobre a linguagem e ideologia.
Para essa corrente européia, associada à publicação francesa Tel Quel, a ideologia é essencialmente uma questão de “fixar” o processo de significação em torno de certos significantes dominantes com os quais o sujeito individual pode então identificar-se. No processo de forjar “representações”, cada significante está sujeito a um “fechamento” arbitrário, restringindo o jogo livre do significante, responsável pela produtividade da linguagem, a um significado adulterado e determinado que então pode ser recebido pelo sujeito como natural e inevitável. O significante, reduzido a uma unidade imaginária, detém a linguagem no mundo selado da estabilidade ideológica.

Paralelamente ao “esquecimento” de Pêcheux, essa corrente entende que a ideologia reprime o trabalho da linguagem pelo processo de “fechamento” no significante, i.é., o processo material da produção subjacente a esses significados coerentes são limitados a sentidos específicos, direcionados e mascarados, impondo ao sujeito uma aceitação passiva como se fosse a ordem natural das coisas.
Eagleton questiona esta “fixação”, ao ponderar que as ideologias consumistas do capitalismo avançado têm encorajado o sujeito a viver provisoriamente, deslizar de signo para signo, conforme os interesses imediatistas dos quais ela se nutre. É preciso considerar o contexto discursivo e ideológico para concluir se tal fechamento é positivo ou negativo, já que este modo de análise, centrando o foco no sujeito, tende a negligenciar tais fatores.

Uma outra contribuição semiótica, esclarecedora para esta área, é a ideologia como “naturalização”, desenvolvida por Roland Barthes, em Mitologias (1975).
Barthes estabelece que mito (ou ideologia) é o que transforma a história em natureza emprestando a signos arbitrários um conjunto de conotações aparentemente óbvio, inalterável. “O mito não nega as coisas, pelo contrário, sua função é falar sobre elas; simplesmente ele as purifica, as torna inocentes, lhes dá justificação natural e eterna, lhes dá clareza que não é a de uma explicação, mas de uma afirmação de fato.”
Conforme o pensador, há dois tipos de signos: o saudável e o insano. O primeiro é aquele que não estabelece vínculo auto-evidente entre ele e o que representa, permitindo possibilidades de desnivelamento. O segundo, seria aquele que, paralelamente ao “fechamento” do significado ao significante da corrente européia de 1970 e ao “esquecimento” de Pêcheux, suprime o trabalho semiótico que o produziu e, assim, permite que o recebamos como “natural” ou “transparente”, contemplando através de sua superfície inocente o conceito ou o significado, ao qual nos permite o acesso magicamente, sem o esforço de atribuir significados; é uma naturalização adulterada.
Toda ideologia é uma naturalização falsificada da linguagem. Essa afirmação de Paul de Man é enfatizada em The Resistance to Theory: “ideologia é precisamente a confusão de realidade lingüística com realidade natural, de referência com o fenomenalismo”.
Eagleton critica tanto Barthes quanto De Man, quando analisa que ambos cometem falha quando pressupõem que todo discurso ideológico opera por meio de tal naturalização. Ambos pecam pela ausência de argumentação e pela desconsideração de outras facetas da questão. Alerta que quase sempre, na crítica da ideologia, um paradigma particular de consciência ideológica é colocado a serviço de todo um leque de formas e dispositivos ideológicos, sem considerar que há outros estilos de discurso ideológico que não o organicista.


A perspectiva pós-estruturalista ou pós-modernista concebe o discurso como um jogo de desejo e de poder, um campo de lutas, de interesses, cuja arma é a linguagem, através de uma elocução competente, e neste sentido, toda a linguagem é tida como retórica.
Eagleton posiciona-se esclarecendo que a ideologia é a luta para unir conceitos verbais e intuições sensoriais, mas a força do pensamento verdadeiramente crítico - “ou desconstrutivo” - é demonstrar como a natureza insidiosamente figurativa, retórica do discurso sempre se interpõe para romper esse casamento auspicioso. Todo discurso tem como objetivo a produção de certos efeitos em seus receptores e é emitido a partir de uma “posição subjetiva” tendenciosa, e, nessa medida, podemos concluir, juntamente com os sofistas gregos, que tudo o que dizemos é realmente uma questão de desempenho retórico no qual questões de verdade ou cognição estão estritamente subordinadas. E vai além, se toda linguagem articula interesses específicos, então, aparentemente, toda linguagem seria ideológica. Retoma o conceito clássico de ideologia considerando que neste âmbito, a ideologia não se limita ao discurso interessado ou à reprodução de efeitos persuasivos; refere-se ao processo pelo qual os interesses de certo tipo são mascarados, racionalizados, naturalizados, universalizados, legitimados em nome de certas formas de poder político, e há muito a perder politicamente quando essas estratégias discursivas vitais são dissolvidas em alguma categoria indiferenciada e amorfa de interesses.

John Plamenatz diverge do ponto de vista clássico assumindo que um discurso pode codificar certos interesses, por exemplo, mas não pode ter a intenção de promovê-los ou legitimá-los diretamente, e os interesses em questão, de qualquer modo podem não ter nenhuma relação crucialmente relevante para a sustentação de toda uma ordem social.
Eagleton, não pretende esgotar todas as teorias que tentam conceituar ideologia, mas expondo os diversos ângulos sob os quais ela é vista, considera que todas têm pontos relevantes, mas não bastam a si mesmas, uma vez que, se satisfizeram a uma determinada época, já não resistem intocáveis ao processo histórico, responsável pela tessitura de diferentes contextos. Lidar com ideologia, afirma ele, é lidar com uma rede sobreposta de “semelhanças de família” entre diferentes estilos de significação. É preciso cautela e até mesmo um certo ceticismo ao refletir sobre os vários argumentos essencialistas a respeito de ideologia. Tanto o argumento historicista de que a ideologia é a visão de mundo coerente com um “sujeito de classe” forjado pelas estruturas econômicas em uma rede de contradições, quanto a visão sociológica, para a qual ideologia provê o cimento para uma formação social ou o mapa cognitivo que orienta seus agentes para a ação, pode provocar um efeito despolitizador, esvaziando o conceito de ideologia de conflito e contradição. Por isso, ambas as concepções apresentam falhas se analisadas isoladamente, assim como, ambas contém vertentes coerentes com o processo de construção de um conceito que suporte o confronto com a realidade.

De acordo com Eagleton, a ideologia deve afigurar-se como uma força social organizadora que constitui ativamente sujeitos humanos nas raízes de sua experiência vivida e busca equipá-los com formas de valor e crença relevantes para suas tarefas sociais específicas e para a reprodução geral da ordem social. O sujeito deve ser considerado parte importante do processo, porém, a ideologia não pode ser centrada nele, isto é, não se pode reduzir–la à questões de subjetividade, já que existem operadores ideológicos institucionais, processos políticos impessoais mais relevantes do que o sujeito, confundindo quase sempre causa e efeito.

A complexidade das relações entre discursos ideológicos e interesses sociais são complexas, variáveis que, é perfeitamente aceitável considerar o significante, às vezes como pomo de discórdia entre forças sociais conflitantes e, outras vezes, como uma questão de relações mais internas entre modos de significação e formas de poder social.
A ideologia é mais uma questão de discurso que de linguagem, contribui para a constituição de interesses sociais e legisla a existência de tais posições por sua própria onipotência. Ela não deve, portanto, ser igualada a formas de partidarismo discursivos, discurso ‘interessado” ou viés retórico.
Nesta perspectiva, o conceito de ideologia tem como objetivo revelar algo da relação entre uma enunciação (o ato de dizer) e suas condições materiais de possibilidades vistas à luz de certas lutas de poder centrais para a reprodução (ou contestação) de toda uma forma da vida social; entre as formas de luta, a luta política será, efetivamente, o lugar em que as formas de consciência podem ser transformadas.

O trabalho de Eagleton reflete legitimamente o que significa um campo de contradições, lutas “ideológicas” – pelo direito a um espaço de existência de um conceito; pelo direito de ser discutido, questionado, confrontado. Vários teóricos estiveram sob um teste de resistência e sobrevivência de suas concepções para fazer valer o teor científico de seus trabalhos. A ciência cujo objeto é a gênese das idéias, é ideologia, segundo Tracy. Neste sentido, Eagleton é um ideólogo – e seu texto, ideologia. Da interlocução tecida por ele, emergiu um campo complexo de domínios conceituais, cujas contradições a ciência humana ainda não logrou superar.
De todos os percalços enfrentados na intelecção do texto, não seria sensato retomar aqui, em forma de síntese, a diversidade e complexidade dos raciocínios gestados pelo autor que, vale dizer, registrados aqui em nível de superfície, por ser um tema de sentidos tão polêmicos quanto inesgotáveis.
Todavia, no que se refere ao conceito de ideologia, ressalta-se as considerações do próprio Eagleton quando estabelece que o valor de uma teoria da ideologia está nas dimensões afetivas, inconscientes, míticas ou simbólicas com as quais constitui as relações vividas, aparentemente espontâneas do sujeito com uma estrutura de poder e provê a cor invisível da própria vida cotidiana. Uma teoria da ideologia só tem valor se contribuir para a libertação das consciências das crenças letais que submetem homens e mulheres ao jugo de um poder que os escraviza às suas próprias limitações em nome de uma “lei natural.”


[*] Resenha apresentada como trabalho parcial da disciplina “Análise do Discurso”, sob a orientação da Profa. Dra. Sílvia Helena Barbi Cardoso, no curso de Pós-graduação Strictu Sensu em Estudos Literários, da UFMS – Universidade Federal de Mato do Grosso do Sul, em 1998.

1 Duroi, G., Roussel.ª Dicionário de filosofia. 2. d. Campinas, S.P. Papirus. 1996, pág.244


REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

Eagleton, Terry. Ideologia. Uma Introdução. São Paulo. Unesp. 1997 (trad. De Ideology. Na Introduction, 1991)

Gérard, Durozoi; Roussel, André. Dicionário de Filosofia. Campinas, S.P. Papirus. 2.ed. 1996.


quarta-feira, 21 de fevereiro de 2007

Platão e o Simulacro: sentidos possíveis em Deleuze



Célia Firmino[*]


Ser ou não ser, eis a questão. A proposta de Hamlet remete-nos ao diálogo sobre o SOFISTA, em Platão, cuja questão central é tentar uma definição sobre sua arte – a arte do simulacro, ou mimética do ilusionismo. Até que ponto é possível unir ou “entrelaçar o ser e o não-ser na distinção da coisa ou “objeto” e suas imagens, o original e a cópia, o modelo e o simulacro?

A fim de filtrar a verdade do erro, o projeto da divisão é o método proposto, empregado para encurralar o sofista, o justo pretendente à verdade. Partindo de exemplos simples, busca a pesca como primeiro conceito do que é arte, definindo-a como arte de aquisição e arte da captura, referindo-se a esta como ardilosa, já que se utiliza de subterfúgios como arpão, anzol para capturar a sua caça. A metáfora da pesca, portanto, é o mais significativo conceito atribuído ao sofista, por agir como um pescador na captura de sua presa – espíritos inadvertidos que se deixam fisgar por discursos insinuosos, em outras palavras, simulacros de verdade. O sofista seria, assim, um produtor de imagens, habilidade desenvolvida na arte do simulacro.

É importante considerar, inferindo-se do método da divisão exemplificado na pesca e em todo o desenvolvimento do diálogo, que a dialética platônica não é a dialética da contradição, como é o pressuposto hegeliano, mas, a dialética da competitividade, da rivalidade, cujo objetivo é a seleção da linhagem, uma forma de hierarquização estabelecida para aproximação do que é original e do que é cópia, ou seja, as pretensões são julgadas criteriosamente pela moralidade de intenções, em virtude do que Platão considera semelhança (ou essência), a fim de distinguir o verdadeiro do falso pretendente.

Esta dialética permeia a teoria de Platão, cuja base reside na existência do mundo das idéias, mundo inteligível (da essência) e o mundo fenomênico, dos objetos físicos, mundo dos sentidos, sensível (das aparências). Não é uma dualidade que se contrapõe, mas partes constitutivas de uma mesma realidade, ou melhor, o mundo das aparências seria a “materialização” do mundo das idéias, das formas primitivas, dos modelos, da originalidade. Em outras palavras, tudo o que é fenomênico, sensível, aparente, com realidade projetada no plano material, seria uma imitação do que já existe, antes, no mundo inteligível, o das essências. Portanto, os objetos físicos aparecem como cópias imperfeitas dos arquétipos ideais, incorpóreos, cujos modelos seriam as idéias eternas. Estabelece-se, aí, nesta primeira divisão, a distinção do que é original e do que é cópia.

Daí, conceituar a arte como mimética – imitação -, já que tem como proposta a representação de mundo das essências nas formas das aparências, respectivamente de seres e não-seres, subdivididas em mimética da cópia e mimética do simulacro. A primeira - a arte de copiar tem na cópia, por meio do processo seletivo de hierarquização da linhagem, a candidatura a primeira à fidelidade e autenticidade em relação ao original. A segunda - a arte de simular a cópia ou simulacro -, estaria, em relação a imitação, em um nível de distanciamento maior do que a imitação, ou seja, as imagens produzidas seriam cópia da cópia e, portanto, uma pretensão à arte da qual o sofista se faz porta voz. Assim, temos novamente a competição, a pretensão à legitimidade enquanto obra de arte, segundo maior ou menor autenticidade em relação ao modelo original.

Para analisar a questão, reportemo-nos ao conceito platônico de Imagem, como o segundo objeto, copiado do verdadeiro, do modelo. A imagem é dividida em duas formas:
1. A cópia bem fundamentada, possuidora, em segundo lugar, de semelhança, entendendo-se semelhança como a essência interior – a idéia, a “alma” do objeto, o que levou Platão a chamar de cópia-ícone.
2. O simulacro: a imagem destituída de semelhança (de essência), simulação da cópia, construída a partir da dessemelhança, uma espécie de imagem “esfumaçada” da segunda cópia, também chamada de cópia-fantasma.
Importa ressaltar que efeito de ilusão é obtido, não apenas pela habilidade do ilusionista, mas também pela inclusão de um ponto de vista diferenciado do espectador que, dependendo das proporções da obra e do posicionamento desfavorável em que se coloca não é capaz de alcançar plenamente proporções tão vastas. Neste sentido o espectador faz parte do simulacro, já que a obra se transforma e deforma segundo o seu ponto de vista.
Assim, a diferença fundamental reside na observação de que, enquanto no simulacro há a perda da existência moral, entrando na realidade estética superficial – apenas das aparências -, na cópia bem fundamentada, o artista preserva a semelhança – a essência -, assegurando a possível vitória da cópia sobre o simulacro como pretendia Platão. Assim, os conceitos de cópia e de simulacro coloca em questão outro conceito, não menos importante: o de usuário, produtor, imitador.

Platão coloca que o usuário seria aquele que se posiciona do alto da hierarquia. Detentor de um saber julga sobre os fins e dispõe sobre a ideia ou modelo. O produtor, quando realiza uma cópia fundamentada, assegurando-lhe a essência espiritual e interior imita o modelo, caracterizando, portanto, sua obra como uma verdadeira produção. Quando, no entanto, a imitação não passa de mera simulação da cópia, cujo efeito de semelhança é apenas aparente, o valor conceitual passa a ter um sentido pejorativo, porque produzido a partir da disparidade, ou seja, obtido por um ardil ou subversão do sofista em relação ao espectador e a obra.
Como se observa os conceitos platônicos pressupõem ponto de vista privilegiado, capaz de julgar com competência o falso do verdadeiro, a cópia do simulacro, tendo como base o ser e não-ser, a essência e aparência, imagem e semelhança. Sabe-se que tais conceitos fundamentaram um conceito de arte como representação de mundo das ideias e dos sentidos, constituindo-se cânones orientadores para selecionar o que seria arte pura e arte simulada ou “não arte”.
No entanto, o mundo está num ininterrupto processo de devir (vir- a – ser,) em que as disparidades, as multiplicidades são a base da totalidade, ou seja, o todo é o resultado de múltiplos elementos; em que a estética inclui o observador (e pontos de vista) como elemento importante para a “re-produção” do sentido, possibilitando leituras de mundo diversificadas e diferenciadas. A arte é entendida também como experiência do real, o que implica representação de um mundo (de essência e aparência) cuja totalidade é também o resultado de disparidades, multiplicidades de experiências vividas na relação produtor, obra, leitor.

A arte pressupõe a criatividade, o que implica dizer que, a simulação de realidades, os pontos de vista como resultado de experiências vividas ou diferenciadas visões de mundo, não são necessariamente falsas ou simulacros. A linguagem da arte, construída a partir de plurissignificação do signo linguístico, não são simulacros da verdade, mas formas diferentes de representação das realidades.
Deste ponto de vista, o ser e o não-ser platônico (entendido como vir-a-ser no plano existencial) são entrelaçamentos indissociáveis. Consequentemente, o simulacro, construído sobre as bases de essência e aparência, semelhança e diferença deve ser analisado, uma vez que não se sustenta mais o ponto de vista privilegiado capaz de julgar e definir o verdadeiro do falso. Pensar a diferença a partir da similitude, pensar a similitude como produto de uma disparidade é pressuposto indispensável à construção de um sentido para o simulacro capaz de elevá-lo de cópia degradada à condição de cópia criativa, multifacetada das verdades diversas dos modelos representacionais da arte, portando níveis variados de essências e, portanto, também arte.

Situar o simulacro na modernidade, talvez não seja tarefa apenas da arte, mas essencialmente da filosofia. Não mais a Filosofia da Academia, mas a filosofia comprometida com as disparidades sociais, das ruas, das favelas. É possível, neste aspecto, uma reversão do platonismo, não pretendida por Nietzsche como abolição do mundo das ideias e do mundo das aparências, ou seja, a destruição de modelos para dar lugar ao caos, mas a restauração do simulacro como um “caos organizado” a partir do qual é possível repensar o ser e o não-ser, construindo um mundo em que a imagem, submetida à semelhança resulte em modelos que seja possível a reprodução da integridade humana.


Bibliografia:

1. DELEUZE. G. “Platão e o simulacro”. In: Lógica do sentido. São Paulo: Perspectiva, 1974
2.PLATÃO. Diálogos. O Banquete/Fédon/Sofista/Político.Textos de José Américo Pessanha; traduções e notas de José Cavalcante de Souza, Jorge Paleikat e João Cruz Costa.-2 ed. – São Paulo: Abril Cultural,1983.

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[*] Resenha apresentada como proposta parcial de trabalho para a disciplina de Tópicos Especiais em Correntes da Crítica Literária, sob a orientação do Prof. Dr. Paulo Sérgio Nolasco dos Santos, do Curso de Pós Graduação em Estudos Literários da UFMS, 1999.

terça-feira, 20 de fevereiro de 2007

Blade Runner: paródia ou paráfrase da divina comédia humana?
“O homem criou o homem à sua imagem e semelhança...
Agora o problema é seu...”

Célia Firmino[*]


“Em chamas, os anjos caíram...trovões ecoando ao redor de suas praias queimando com os fogos de Orc.” O discurso do líder replicante, louro, olhos azuis, auto suficiente, o mais belo dos arcanjos, cópia esteticamente perfeita para os supostos padrões de beleza humanos, reflete nitidamente a imagem bíblica, arquetípica, do anjo decaído.
Não tendo podido apropriar-se da glória celeste pela excessiva ambição de pretender ser humano, esforça-se por implantar seu reino na terra. Para preencher a distância infinita que separa a sua imagem da essência pretendida, quer unir-se à divindade reunindo em si elementos da natureza divina e humana: direito às emoções, à vida, à uma história, ao medo, à morte imprevisível. “O criador pode consertar a criação? Eu quero mais vida.” Roy Batter é Lúcifer, o herói da epopéia, bela forma, mas de existência moral inferior ao homem do século XXI. Na impossibilidade de ser homem ou anjo, prefere ser o parodístico reverso – o demônio. Projetado para ser ou parecer à imagem do homem que, por sua vez, é a pretensa imagem e semelhança de Deus e, insatisfeito por ser apenas criatura, com limitações impostas pelo código genético, reveste-se de um poder antagônico, isto é, utiliza-se das habilidades recebidas ou desenvolvidas – habilidade para o combate e auto suficiência - para rivalizar com o criador, Tyrell, o pai da obra.

Resguardados os limites das representações, o texto fílmico, interdiscursivamente, dialoga com o mito bíblico da criação, a mais evidente paródia da divina epopéia humana. Protagonistas e antagonistas revestidos de competência, rivalizam entre o ser e o não ser, ter ou não ter o direito de existir. De um lado, Tyrell, o gênio criador, humano e divino em sua genialidade. De outro, Roy Batter, sua obra prima perfeita (o mais humano possível), o herói parodiado: pensa, mas não existe; tem emoções como ódio, chora diante da morte, deseja vingança, destrói, mas não é humano. E na disputa por ser e não ser real e/ou verdadeiro, a dialética platônica traz a tona o discurso do sofista e a questão do simulacro.
Os simulacros, segundo Platão, são como falsos pretendentes, construídos a partir de uma dissimilitude, implicando uma perversão, resultado da imagem (aparência), superficial sem semelhança (essência Interior) em relação ao modelo. No jogo de quem é quem, o líder replicante figura como o falso pretendente à condição de humano, belo efeito de ilusionismo, no estilo parece que é, mas não é, porém pretende ser. No que se refere ao jogo da disputa, vale tudo, até mesmo atitude edipiana de matar o pai, por amor à vida. Discurso dissimulado, insinua, recobre a dessemelhança assim como um desequilíbrio interno. Se a pretensão é justa ou não, falsa ou verdadeira, cabe à Filosofia argumentar. A imitação necessariamente não deve ser má, pode ser uma boa cópia, contudo pode tomar um sentido pejorativo na medida em que não consegue passar de uma dissimulação , refletindo um efeito de semelhança apenas exterior, formal, sem essência ou de conteúdo pervertido.
Na dialética da rivalidade em Platão, os pretendentes competitivamente buscam a legitimidade de ser cópias bem fundamentadas, disputam em nível de igualdade a posição da qual se julgam legítimos herdeiros. Em Blade Runner, o líder replicante renuncia, à condição que lhe foi dada ou imposta, às bem aventuranças de ser um andróide feliz em seus quatro anos de vida sem emoções, à juventude permanente sem longevidade para lutar pelo direito de ter as mesmas características do modelo, de “ser igual”, embora as diferenças.

A eterna dualidade entre criador e criatura, essência e aparência, imagem e semelhança, ser e não ser, cópia e simulacro são dialogadas em Platão. Quem somos? De onde viemos? O que fazemos aqui? Para onde vamos? Para tentar um resposta para estas e outras tantas questões existenciais, a filosofia platônica divide o mundo em duas dimensões: o da essência ou das idéias – o mundo primitivo -, do qual todos originamos e voltaremos após as experiências vividas , num círculo contínuo de eterno retorno e o mundo fenomênico, o das aparências, da materialização do mundo das idéias, definido como cópia imperfeita deste mundo. Objetivo: ascendermos do primitivismo à angelitude, através de experiências sucessivas, necessárias à purificação do espírito. Estabelece assim, os discutidos conceitos de originalidade e modelo, cópia, imitação, simulacro, hierarquia, moralidade e perversão, deformidade e perfeição, bases para a filosofia da dualidade que terá reflexos na formação do pensamento ocidental bem como nos conceitos de arte em suas diversas expressões.
O ser pressupõe o não-ser e nesse entrelaçamento de realidades e verdades perdem-se os limites do modelo e da imitação, do original e da cópia. Como recurso possível para as necessárias delimitações, pensar em “re-produções”, remete-nos não para além do simulacro, mas para uma das suas representações – a paródia. Pensar em paródia significa pensar ainda em paráfrase, já que, ora o produto reafirma o modelo, ora constitui-se-lhe a projeção invertida, simulada.

Considerando o mundo fenomênico como cópia imperfeita do mundo das idéias, da essência, campo de manifestações de sentimentos como ambição, ódio, orgulho, vaidade, vingança, destruição, as deformidades de caráter em geral, enfim, este palco em que se encenam diariamente as mais variadas tragédias, poder-se-ia dizer que seria a mais perfeita paródia do Criador?
Ser ou não ser humano, paródia ou paráfrase, eis a questão. A imagem reivindica direito à semelhança. A imitação pretende ser cópia, cópia pretende ser modelo. Réplica pretende ser unidade. Simulacro pretende ser verdade. Pretender a reversão do simulacro é pretender a conversão da paródia em paráfrase: ascender o suposto pervertido à reafirmação das qualidades do pretenso modelo, cópia do original. Ser ou não ser possível, agora é a questão.
Do silogismo: o homem foi criado por Deus “à sua imagem e semelhança”, o homem cria o homem à sua imagem e semelhança, logo o homem quer ser “deus”, infere-se um outro conceito platônico na hierarquia do processo de “re-produção”– o de usuário, já que este se posiciona do alto da hierarquia e, detentor de um saber, julga sobre os fins e dispõe sobre idéia ou modelo. Quando imita o modelo, assegurando-lhe essência espiritual e interior, realiza uma verdadeira produção porque bem fundamentada. É o caso de Rachel, a replicante especial, cópia bem sucedida, já que tem assegurada em si a existência moral. No entanto, quando se realiza uma cópia de cópia, cujo efeito estético simula a semelhança, mas não a assegura, provoca ilusionismo e, portanto, simulacro. É o que se apreende da aplicação desses conceitos à produção dos replicantes da série Néxus 6.

A imitação pode ser uma boa cópia, mas pode tomar sentido pejorativo na medida em que não consegue passar de uma dissimulação e reflete um efeito de semelhança apenas exterior e improdutivo, obtido por um ardil ou subversão.
Cópia, simulacro, paródia. Bem estreitos são os limites que as separam. Para o sofista, uma “arte – manha” de desviar da imagem real o ponto de vista do observador, atingindo um efeito de subversão. Paródia é uma ode que perverte o sentido de outra ode. Simulacros: aquilo a que pretendem, o objeto, a qualidade, etc. Pretendem-no por baixo do pano, graças a uma agressão, de uma insinuação, de uma subversão. Neste ponto, as fronteiras se diluem. Diferem-se, todavia, quando a paródia propõe também a possibilidade de uma inversão positiva, de uma ascensão, ao contrário do simulacro que assume sempre o sentido pejorativo da imagem projetada. Equivale dizer que a paródia pode conter imagem sem semelhança, imagem e semelhança sem, no entanto, deixar de ser paródia. Pretender a condição de legítimo herdeiro pressupõe por à prova a identidade . O princípio de alteridade, do Outro como modelo e através do Outro, o Mesmo que se reafirma como determinação abstrata do fundamento é o modelo platônico. A semelhança é a essência da cópia, corresponde à similitude, à “igualdade” na diferença. Se a cópia, a imitação preserva essa essência, torna-se legitimamente exemplar, com direito à segunda posição em relação ao modelo na escala hierárquica. Identificar quais são os elementos essenciais à preservação da semelhança é o grande desafio.

Os replicantes não deveriam ter passado, já que este é a base para as emoções, reafirmação do essencial à condição de ser humano. A memória temporal e a memória emocional são o suporte para a ressignificação do momento presente. As experiências vividas são ressignificadas pelas lembranças implantadas que seriam o traço mnemônico, viabilizador da identidade, de individualidade. Ora, não há identidade sem a chancela social que a legitima, já que a identidade é um processo de construção de imagem por meio do outro. Portanto, o modelo é a base de todas as variantes através das quais a identidade se faz representar. Se tais representações são humanas ou divinas, pervertidas ou reafirmadas, eis o que determina a distinção entre paródia e paráfrase. No entanto, o procedimento comparativo entre modelo e imitação, forma e conteúdo é imprescindível ao discernimento das fronteiras que dividem este complexo universo de seres e não seres.
Os replicantes sabem quanto tempo lhes resta e lutam por prolongá-lo, reivindicam esse direito de seu “criador”, querem mais, existir de fato, possuir identidade, emoções, uma história de vida, o que lhes é negado. Utilizam-se de uma história artificial representada pelas fotos que mostram padrões de vida humanos. Uma espécie de memória armazenada, construída a partir de modelos sociais. Evidenciando, portanto uma visão Antropológica e Sociológica de que a identidade só é possível de ser atribuída , mantida e só transformada socialmente. É também, a partir de Deckard (o Outro) que Rachel passa a existir; é ele que a “humaniza”, que a aproxima do modelo, cria-lhe uma memória emocional movido por um sentimento de amor ou desejo, uma emoção virtual e paradigmática do anjo, introjeta-lhe os elementos de identificação, os mesmos que os aproximam, garantem-lhe a existência moral , elaborando, portanto, uma representação parafrásica do modelo. Roy Batter, de imagem parafrásica, porque reafirma a forma do modelo e de semelhança parodiada, já que subverte, antagoniza a essência - representa a possibilidade de convivência de dois tipos de “re-produção” num mesmo continente – o “texto”.

Mas o ser humano não é, por definição, um texto em que antagonizam virtudes e imperfeições, bem e mal, certezas e incertezas, amor e ódio, em busca constante do equilíbrio, da individuação, da identidade, do ser? Em outras palavras, as respostas para o que somos, o que devemos ser, o que é a vida, para onde vamos? Todos, de alguma forma, não buscamos a paráfrase da perfeição e, para tanto, não percorremos dialeticamente o caminho do não-ser? Daí, Platão dizer que “nada de falso é possível sem condição de supor o não-ser como ser”. E acrescentaríamos que nada de verdadeiro é possível sem a condição de experienciar o falso, a realidade do não-ser. A arte de separar, de dissociar o melhor do pior é condição sine qua non da “purificação”, da preservação da boa cópia, da imitação bem fundamentada.

O que há de paródia e o que há de paráfrase na criatura, na “reescritura”?
Roy Batter é o filósofo . Convive com a arbitrariedade da duração da vida, com a experiência de saber-se finito, com a precisão do tempo medido materialmente – 4 anos. É a luz que brilha o dobro, mas que deve arder a metade do tempo, com muito brilho. É a representação da imagem que busca em tempo irrisório construir a sua semelhança, a sua identidade. Para ele, não há a decrepitude acelerada de um corpo transitório que marca, imprecisamente, a aproximação do fim. Há o tempo preciso, exatamente quatro anos, e um código genético que não pode ser alterado. Quatro anos apenas para reverter a paródia, o simulacro, em perfeita paráfrase de ser e de existir, não apenas porque pensa, mas porque ama, odeia, tem medo e esperanças. O suposto simulacro, candidato a pretendente quer a identidade. Talvez, para ele, ser humano significasse ter direito às mesmas perguntas sem respostas. A semelhança pressupõe, necessariamente, a existência do Outro, já que não é possível ser semelhante sozinho, como é incoerente ser dessemelhante sem relação à coisa alguma. A imitação sobrevive por causa do modelo. O espelho só tem razão de ser porque reflete a imagem. “Há um pouco de mim em vocês” – diz o projetista. O líder replicante quer a reversão: “O criador pode consertar a criação?” O código genético que não pode ser alterado é a essência, a identificação. Quem vive afinal? Apenas isto bastaria para torná-lo humano, “igual”. Mas quer deixar também um pouco de si mesmo no Outro. Sabe que o preço da semelhança de uma cópia imperfeita é a morte da imagem. No momento em que precisa decidir sobre deixar viver ou morrer uma vida “ao fio da navalha”, as últimas diferenças diluem-se como lágrimas na chuva. Sublima a própria agonia e deixa-se morrer suavemente como pássaro que se liberta. Neste sentido, a reversão torna-se possível .

[*] Artigo produzido em 1999, sob a orientação do Prof Dr. Paulo Nolasco, no curso de Pós-Graduação, em nível de mestrado da UFMS – Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, pela mestranda Célia Firmino.

BIBLIOGRAFIA
DELEUZE, G. “Platão e o simulacro”. In: Lógica do sentido. São Paulo: Perspectiva. 1974.

PESSANHA, José Américo Motta. “Sofista”. In: Platão. Diálogos. Traduções e notas de José Cavalcante de Souza, Jorge Paleikat e João Cruz Costa. 2. ed. São Paulo. Abril Cultural, 1983.
SANT’ANNA, Affonso Romano de. Paródia, Paráfrase & Cia. São Paulo. Ática.1991.